por Mario Sales
“Qual é o significado da expressão: ´elevou-se no pensamento`? Porque não
dizemos ´desceu [no pensamento]?
De fato, dissemos: ´Aquele que fita a visão da Carruagem primeiro desce,
depois ascende`.
Usamos aqui a expressão [ de descer] porque dizemos: ´Aquele que fita a
visão (tzafiat) da Carruagem. ` (...).
Aqui, todavia, falamos do pensamento, [e, por isso, fala-se apenas de
ascensão]. Pois o pensamento não inclui visão alguma e não tem qualquer final.
E, tudo aquilo que não tenha nenhum final ou limite, não tem descida alguma.
Por isso, dizem: ´Alguém desceu ao limite do conhecimento de seu amigo`.
Pode-se chegar ao limite do conhecimento de uma pessoa, mas não ao limite de
seu pensamento. ”
Sepher Bahir, comentado por Arieh
Kaplan, 1980, Imago Editora, versículo 88, págs. 58 e 59.
Quem já se aventurou a ler “A Doutrina Secreta”, o colossal
trabalho de H.P.Blavatsky, sabe o que é estudar um texto obscuro. A linguagem
do século XIX, as características da escritora, espontaneamente prolixa e
labiríntica nas suas dissertações, as inúmeras interrupções na linha de
pensamento para longas explicações sobre trechos pouco importantes, combatem
aqueles cujo único objetivo é extrair deste vasto material alguma informação ou
sentido.
Ler o Bahir, como de resto o Sepher Yetzirá, esbarra em
problemas um pouco maiores.
Não se trata apenas de que seu autor (Isaac, O cego, ou
outro) ter ou não um pensamento claro e uma linha de raciocínio retilínea,
cujas conclusões nos pareçam coerentes com as propostas. Muitas vezes não
sabemos do que o autor está falando, o que nos remete a uma questão fundamental
ao estudante de Cabalá não judeu.
Toda a ramificação da cultura judaica tem duas raízes: de um
lado, a Torah e o Talmude; de outro lado o cotidiano da vida judaica, suas
práticas religiosas e crenças.
Aqueles que se interessam pelo estudo da Cabalá e não são
judeus, podem, obvio estudar a Torah e ler o Talmude inteirando-se de suas
imagens e conceitos; mas pelo fato de não terem vivenciado o ambiente familiar
de uma família ou comunidade judaica, sente uma forte sensação de estranhamento
ao se deparar com textos que, além da distância histórica no tempo apresentam
peculiaridades de encadeamento de ideias próprias desta cultura.
Mesmo entre judeus, nem todos têm, ou interesse, ou
capacidade para estudar Cabalá.
É preciso que, primeiramente, o interessado tenha uma forte
motivação pessoal, um perfil compatível com horas e horas de leitura e
interpretação e a paciência características dos exegetas em uma vez contemplando
um texto estranho e obscuro, não ceder à tentação de abandoná-lo, esforçando-se
em descobrir o código que o fundamenta.
Porque este código existe.
Os textos cabalísticos são difíceis de ser interpretados
primeiro porque são textos de épocas em que o espírito didático não era prioritário
ao escritor, e segundo, porque tais textos foram escritos por cima de uma
cultura fortemente baseada na Torah e no Talmude.
E ainda existe um terceiro motivo para o esoterismo de tais
textos: sua lógica interna é peculiar e em nada segue o cânone grego de
pensamento, que produziu preciosidades como “Todos os homens são mortais;
Sócrates é homem, logo Sócrates é mortal. ”
Não. As frases são caracterizadas por terem aparentemente um
nascimento semelhante ao das Sephirot, como descrito no Sepher Yetzirá, “ Dez Sephirot
do Nada”, como representação da ideia de que as Sephirot são manifestações
puramente conceituais e diáfanas, sem natureza alguma material.
Rabino Arieh Kaplan
Como no trecho acima: “Aquele que fita a visão da
Carruagem primeiro desce, depois ascende. ”
Ou na pergunta: “Qual é o significado da expressão: ´elevou-se
no pensamento`? Porque não dizemos ´desceu` [no pensamento]? ”
Salvo questões inerentes as imperfeições de tradução do
original em inglês, problema ao qual todo leitor deve estar atento, no esforço
de esclarecer este enigma, o Rabino Arieh Kaplan explica que “O conceito de
pensamento é igual ao de “acima”. Não importa o quão alto se alcance, pode-se
ir mais além. ” E conclui: “Por isso a palavra “elevar” é empregada”.
Ao longo de sua explicação[1] o
Rabino Kaplan dissertará sobre a natureza do pensamento, a impossibilidade de
compreender a natureza da mente que pensa, o simbolismo da expressão “Merkavah-Carruagem”
como um exercício de vidência espiritual,(já que se refere a esta prática pré-Cabalística
que durou do século II AC até o século VIII DC, aonde místicos judeus, baseados
na visão do livro de Ezequiel, 1, 1-28, através da meditação, se elevavam espiritualmente
a níveis que eles chamavam de Palácios, em número de sete, sendo que o sétimo
palácio representaria o encontro com a Divindade).
Sem essa explicação a expressão “fitar a visão da Carruagem...”
não parece compreensível. Ainda mais porque na publicação, a expressão vem com
o termo “visão” em letras minúsculas, e “Carruagem” em letras maiúsculas, como
se fossem coisas diferentes. Um problema da tradução e não do texto.
A expressão precisa também ser elaborada pelo leitor neófito,
entendendo e extrapolando que carruagem significa transporte,
e que na época seria um símbolo adequado do ato de transportar-se através da
meditação, à níveis mais elevados.
Explicado que “fitar a Visão da Carruagem”, portanto, é uma
expressão que designa um ato de percepção de uma expressão do divino,
conseguida durante o estado de Epifania pelos místicos judeus, o rabino Kaplan explica
a natureza do fenômeno da vidência espiritual e das Sephirot associadas ao
fenômeno.
Em nenhum momento, no entanto, ele esclarece por que o
indagador do versículo se espanta por não se usar a expressão “desceu no
pensamento”, ou porque, no versículo, é dito “Aquele que fita a Visão da
Carruagem, primeiro desce,
depois ascende. ”
Seguindo a peculiar forma de pensar dos versículos do Bahir,
dever-se-ia atentar para o significado da expressão “primeiro desce”. Isto, no
entanto, não é discutido.
As perguntas, dos discípulos que em princípio estão
interrogando o mestre Nehuniá Bem Hakaná, são tanto ingênuas quanto profundas e
suas perplexidades inexplicáveis. As respostas, da mesma forma, não são
esclarecedoras, como se esperaria de um texto que se diz “O Livro da Iluminação”.
Linha por linha, o conhecimento se oculta em um código de
conceitos e visões de mundo típicas da cultura judaica e da época em que foi
redigido, duas camadas a serem penetradas pelo leitor-interpretador, um
exercício de fôlego e paciência.
Nos comentários do Rabino Kaplan conseguimos um importante
suporte neste esforço, sem o qual seria impossível compreender o que significa
realmente o que está escrito em cada trecho deste importante texto de Cabalá.
Mesmo assim não é suficiente, como de resto nenhuma explicação conseguiria ser.
Já que se trata de um livro acerca do mais profundo conhecimento do judaísmo, a
interpretação desafia aquele que à ela se dedica, principalmente se este não
deseja, por pura precipitação, extrair sentidos equivocados do texto.
Some-se a isso a peculiar maneira de encadear ideias que
observamos ao ler passagens como esta cima.
E este não é o melhor nem o mais complexo exemplo. Há outros,
mais instigantes.
Como no versículo 79, no trecho que diz:
“O ouvido é, também, infinito, e nunca saciado. Está,
portanto, escrito (Eclesiastes 1:8): “O ouvido não se farta de ouvir. ”
E em seguida, conclui:
“Porque é assim? Porque o ouvido tem a forma do Alef.
(...). Por isso o ouvido não se farta de ouvir. ”
Uma conclusão esotérica, no mínimo, já que o ouvido não tem
a forma do Alef, fato que dá uma pálida ideia daquilo que aguarda os
bravos exploradores de textos cabalísticos.
Mais esotérico ainda é o fato do Rabi Kaplan não confirmar ou
mesmo tecer considerações sobre esta estranha semelhança declarada no texto.
Kaplan diz: “A visão e a audição correspondem, respectivamente,
a Chochmá- Sabedoria e Biná-Compreensão. Podemos apreender o Divino com compreensão,
mas não com Sabedoria. O nível mais elevado de nossa compreensão é, portanto,
Biná-Compreensão, o nível do ouvido, mas mesmo aqui existe um reflexo de
Kether- Coroa, no Alef do ouvido (Ozen).”
O que eu quero evidenciar aqui é que, mesmo seguindo os
complicados códigos da Cabalá, não se encontra um sentido ou uma relação entre
Aleph e Ouvido (Ozen) , já que, como vimos, Aleph corresponde a Keter-Coroa e o
Ouvido a Biná-Compreensão.
Para resolver a contradição, Kaplan usa um recurso no mínimo
curioso, criando uma conexão em princípio não existente com o seguinte
raciocínio:
“O nível mais elevado de nossa compreensão é, portanto,
Biná-Compreensão, no nível do Ouvido, mas, mesmo aqui, existe um reflexo de
Keter-Coroa no Alef de Ozen (do Ouvido) ”
É esta a explicação, a ligação está em um reflexo que
aparentemente saiu da cartola de Kaplan. E está feita a correlação.
A explicação, portanto, esclarece alguns pontos e deixa
outros obscuros, mesmo que estejamos falando da mais didática autoridade em seu
tempo sobre conhecimento da Cabalá.
Sua morte precoce, de ataque cardíaco em sua casa, privou
estudantes de todo mundo de sua visão e esforço para tornar estes textos
fundamentais da cultura judaica acessíveis a judeus e não judeus.
Mesmo assim, trechos e versículos dos livros clássicos sobre
Cabalá ainda carecem de uma interpretação mais completa e mais compreensível
para aqueles que como nós pensam, não como um judeu, mas como um grego.
Superemos este problema. Estas leituras, de qualquer forma,
devem ser feitas com o cérebro e com a alma, na esperança da que a intuição nos
forneça a informação que o intelecto, às vezes, não consegue dar.
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