Por Mario Sales
Coleóptero iniciando o voo: as asas internas se desdobram,
enquanto os élitros se erguem.
Para quem milita na arte de escrever, palavras às vezes,
como armadilhas, nos prendem inesperadamente. Fascinam-nos, de modo
indiscutível, obrigando-nos a orbitá-las como satélites, presos a sua
gravidade, tão mais forte quanto mais peculiar e desconhecido for o termo.
Se existe um autor onde podemos garimpar palavras inusuais,
curiosas e eruditas, a um só tempo, este autor é Bachelard.
Ele escreveu entre 1932 e 1961 obras que ocupam lugar certo
entre as mais belas da literatura francesa. Entrei em contato com este ilustre
professor da Sorbone quando li “O direito de Sonhar”, traduzido para o
português pelo meu professor, José Américo Motta Pessanha, em 1985, o mesmo que
me chamou a atenção para a beleza deste autor.
Era um autor dialético, já que possuía toda uma obra
dedicada ao pensamento científico, positivista, com raciocínios cartesianos,
claros e distintos, ao mesmo tempo que construiu, quase como compensação,
outro conjunto de textos dedicados a contemplação artística do mundo, à poesia,
à imaginação.
Àquele, objetivo, científico, costuma-se chamar o “Bachelard Diurno”; este, sutil, fenomenológico, inspirado, classifica-se geralmente de “Bachelard Noturno”. Entre as obras do período noturno estão, em ordem cronológica de tradução, pela Editora Bertrand Brasil: “A chama de uma de uma Vela”, (1989); pela Editora Martins Fontes: “A Poética do Espaço”, (1989); “A Terra e Os Devaneios da Vontade”, (1991); “A Poética do Devaneio”, (1998); “A Água e os sonhos”, (1998); “Psicanálise do Fogo”, (2008); “O Ar e os Sonhos”, (2009).
Não vou citar as
obras do Bachelard Diurno porque dizem mais respeito ao pesquisador epistemológico,
uma área específica do campo filosófico.
A nós neste espaço interessa mais as suas linhas dedicadas a
sensibilidade artística e poética do mundo ,pois nada está mais próximo do
misticismo no mundo não iniciático, do que a arte.
Recorrendo a uma profunda sensibilidade no olhar e à
valorização do sonho e da imaginação, Bachelard modifica nossa visão do comum,
do hodierno e banal, dando-lhe novas significações, novas perspectivas.
No momento releio “A poética do espaço”.
É encantador um simples ninho, uma concha ou os cantos de uma casa ganharem importância nos capítulos de seu texto.
E talvez dada a sua
erudição, como também a de seu tradutor, meu antigo mestre, (além de estarmos
falando de um autor da primeira metade do século XX), deparamo-nos com um sem
número de termos inusitados, de uso pouco comum ou já raro, o que embeleza a
narrativa e valoriza nossa língua.
É o caso dos verbos bramir (gritar) e fremir, que tem
sentido igual. Ou do adjetivo “álacre” (alegre, vivo, animado). Ou mesmo do
verbo “ressumar” (gotejar).
Este ensaio começou, entretanto, por causa do termo Élitros.
A palavra, por alguma razão, me hipnotizou.
Sua etimologia é grega, pesquisei.
Deve ser de uso corrente no jargão de biólogos, entre estes, particularmente os entomologistas.
Élitro vem do grego Élytron, que significa estojo,
envoltório. Refere-se, no texto bachelardiano, as asas externas de um
besouro, de uma joaninha, aquelas que guardam, como em um estojo, as asas
internas do animal.
No momento em que ela surge no texto, Bachelard está fazendo considerações sobre os cantos de uma casa. Na sua analise de regiões ou espaços de habitação, depois de contemplar "A casa e o Universo", "a gaveta, os cofres e os armários", "os ninhos" e "a concha", entra agora na topologia dos cantos de uma casa, que ele considera dignos também de uma avaliação.
Diz: “…todo canto de uma
casa, todo ângulo de um quarto, todo espaço reduzido onde gostamos de encolher-nos,
de recolher-nos a nós mesmos, é, para a imaginação, uma solidão, ou seja, o
germe de um quarto, o germe de uma casa.”
Curioso que eu mesmo me sinta mais confortável quando durmo
encostado à parede, no canto do quarto, em uma manifestação simbólica, talvez, de
proteção e apoio. Mesmo assim, nunca me ocorreu escrever sobre os cantos de
minha própria casa da mesma maneira que Bachelard consegue construir todo um
capítulo apenas trabalhando esta parte habitualmente desprezada de nossas
habitações.
Ele cita um livro de Sartre sobre Baudelaire, aonde um trecho de um romance de Hughes é estudado. Lemos lá que: “…Emily brincava de fazer uma casa para si mesma num recanto na proa do navio…fatigada desse brinquedo, ela caminhava sem rumo em direção a popa, quando de repente, lhe veio o pensamento fulgurante de que ela era ela…”. Bachelard conclui que, “saindo de sua casa (no recanto do navio) a criança encontra o pensamento fulgurante de ser ela mesma”. Segundo sua perspicaz observação, identifica na narrativa a expressão da dualidade interior-exterior, do introvertido-extrovertido, conceitos tão caros ao psicanalista.
É a saída do canto, a exteriorização, o ato que antecede a auto percepção, a consciência de si. Uma “explosão” na “direção do exterior, talvez como uma reação contra concentrações num canto do ser”, pensa ele.
Poucos poderiam somar erudição e discernimento para
trabalhar trechos aparentemente banais com tamanha riqueza de interpretações o
que só pode ser explicado por uma imaginação ativa e vigorosa, um devaneio
dirigido e orientado por um poderoso intelecto, em uma potencialização de efeitos
literários e práticos belíssimos.
Bachelard serve como modelo ao místico que indaga como usar a imaginação na consecução de seus objetivos.
Ele demonstra como dirigir nossos
sonhos de forma voluntaria, atribuindo ao real significado, sentido, moldando
nosso presente e, se assim o desejarmos, nosso futuro.
Bachelard não é o sonhador descompromissado, se bem que dê liberdade às suas imagens e associações que, embora fluam rápido, não estão
inteiramente livres, tal como um falcão treinado para a caça, que voa com suas
próprias asas ao mesmo tempo que tem um objetivo definido (capturar sua presa) e um condicionamento
intimo de voltar ao punho de quem o liberou para agir.
A imaginação, é esta a elaboração que faço, deve sim ser
intensa em sua manifestação, mas todo o tempo deve ser controlada para não se
transformar em mera fantasia.
O Bachelard Noturno procurou em seus textos compensar a
frieza e objetividade epistemológica do Bachelard Diurno, mas foi graças ao seu aspecto
Diurno que ele conseguiu criar uma obra reflexiva e poética com um
comportamento orientado e objetivos claros, definidos.
Mesmo o sonho deve ter um sentido claro e distinto.
Sonhos
demasiadamente esotéricos são inúteis e improdutivos como uma imaginação
descontrolada.
Sonhar e devanear com intenção, direção e sentido definidos
tornam o sonho um instrumento para o místico, para o poeta e para o filosofo,
que a partir daí, produzem uma realidade bela e artística.
Todas estas reflexões estavam guardadas neste estojo, neste Élitro de idéias que é este pequeno e fecundo livro, “A Poética do Espaço”.
Nenhum comentário:
Postar um comentário