Por Mario Sales
“Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.”
Fernando Pessoa in
“Tabacaria”
Sempre
achei curiosa além de infantilmente arrogante o hábito maçônico de conferir o
título de mestres aos que atingem o terceiro grau de loja.
A
palavra deveria ser reservada àqueles que realmente tem algo a ensinar, ou que
se dedicam a esta nobre arte de passar, de modo compreensível, o conhecimento
das eras, nem que seja para evitar que cresçamos para ter medo de vacinas ou
achar que a Terra é plana.
Tal
comportamento anticientífico deveria ter desaparecido da face de um planeta que
se supõe tecnologicamente avançado, mas bem sabemos que estes não são os fatos.
Carl Sagan já tinha previsto esta combinação nefasta de muita tecnologia nas
mãos de quem não consegue compreendê-la, e que supõe, de modo ingênuo, que
nossas conquistas cientificas foram simples e fáceis e realizadas em uma
década, ou menos até.
Tal
como crianças pequenas que não sabem os esforços e o cansaço envolvidos em
mantê-los aquecidos, saudáveis e alimentados, grande parte da humanidade se
comporta, nas palavras de um pensador contemporâneo, como se tivesse apenas
direitos e não deveres.
Voltando
ao tema, muitos querem da mesma forma ser mestres sem ter o que ensinar a
alguém, sem estarem prontos para assumir a responsabilidade por um ou muitos
discípulos. Esta relação, que configura um laço, um envolvimento que ata
professor e aluno, torna esse exercício difícil, às vezes angustiante. Pode
ser, entretanto, extremamente gratificante, se redunda em algum tipo de
retorno, se o mestre divisa na face do aluno aquele lampejo que denuncia ter
ele compreendido e absorvido o conceito estudado, fato em si suficiente para
fazer o dia ou a semana de qualquer professor.
A
maestria é, pois, um serviço, uma função social e humana, uma profissão. Não
deveria ser um instrumento de vaidade, algo para aumentar o ego de quem não tem
um conteúdo solido sobre nada.
Hoje,
após seis décadas nessa encarnação, sei como é bom ser discípulo, como é
confortante ter alguém que nos auxilie e inicie nos conhecimentos ainda
desconhecidos. Sei também, com absoluta clareza, que não tenho merecimento nem
para ser discípulo, e quando falo em merecimento não me refiro a aspectos éticos
ou morais, mas à um conjunto de condições neurológicas que me permita absorver
de modo rápido e eficiente os ensinamentos necessários acerca de qualquer
assunto estudado.
Essas
condições são docilidade ao receber a informação, capacidade de
concentração suficiente, uma mente pragmática, uma memória
privilegiada, energia e determinação para reler os textos e
rever os conceitos ainda não totalmente compreendidos.
Sempre
fui um analítico nato, e embora isso me confira um caráter reflexivo me faz, da
mesma forma, um argumentador incontrolável, que, pelo menos no passado colocava
em estado dialético cada ideia, cada informação. A docilidade citada acima
permitiria que primeiro a informação fosse absorvida para depois ser analisada,
como a comida só pode ser digerida depois de ser deglutida.
Hoje
posso dizer que graças ao amadurecimento já não discuto tanto com as
informações como antes, já mastigo mais as ideias e as engulo com calma, sem
desconfianças ou rejeições automáticas, sistemáticas.
Embora
não possa dizer que dominei a arte de escutar, hoje escuto mais do que falo.
Tenho sincero desejo de compreender o interlocutor, quando a sua fala me causa
interesse ou curiosidade. No caso de nem uma coisa nem outra, aprendi a ser
polido e não contra argumentar.
Isso
já foi um grande alívio, psicológico e emocional.
Repito,
estou me esforçando para aprender a arte de ser discípulo, não mestre. Querer
ser mestre é uma bobagem. Ser um bom aluno, isso sim é uma meta factível,
sensata.
“Não
sou nada, nunca serei nada…” lembrava brilhantemente Pessoa. E completava que
“à parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo”.
Sim,
todos temos em nós a natureza da água do oceano, gotas que somos, mesmo assim
somos apenas gotas, aprendendo a manifestar a água em nós, libertando-nos da
impressão falsa de que somos algo mais que água ou diferente da água.
A
capacidade de se concentrar é outro aspecto delicado. Principalmente quando a
emoção mostra seus dentes, manter-se focado é difícil. Como agora em que
escrevo enquanto no quarto ao lado meu idoso pai, doente, parece ter desistido
de lutar e piora dia após dia, o que embora não me surpreenda, me entristece.
Não é a morte física, a saída de um corpo já inadequado, que me aborrece, mas o
desconforto logo antes disso.
Aos
96 anos ninguém deveria sentir dor ou falta de ar. A vida física deveria
extinguir-se lenta e delicadamente, sem sofrimento. Nem sempre no entanto é
assim. Nestes dias de peste, muitos amigos nos deixaram sufocando nos leitos de
hospitais. Notícias chegam a todo momento de pais de amigos internados,
desencarnando. Meu pai não tem COVID, mas está triste, diabético, com o coração
fraco, e triste pela morte de minha mãe mês passado, ela sim de complicações
tardias do COVID.
É
um período difícil, como são todos os períodos no corpo.
Dentro
desse contexto, escrever esse artigo exige capacidade de manter o foco
independente de outros acontecimentos como monitorar as necessidades de um pai
doente.
A
mente pragmática, terceira condição do discipulado, é aquela que sabe das
dificuldades e dos problemas a serem enfrentados, mas enfrenta-os um de cada
vez dentro de suas possibilidades, dividindo as tarefas cartesianamente em
partes para depois ir eliminando uma a uma. Se for interrompida, deixa marcada
a fase em que parou de onde poderá retomar o trabalho quando puder.
Esse
tipo de comportamento não pressupõe apenas capacidade intelectual, mas antes de
tudo serenidade interior para seguir os passos um a um, independente das já
citadas distrações que a vida nos traz.
Nem
todo discípulo aceito pelos mestres da Fraternidade Branca eram portadores
dessa serenidade. Quem ler Cartas dos Mahatmas, livro teosófico que narra os primórdios
da Sociedade Teosófica, verá que Blavatsky teve serias crises emocionais em
função das falsas acusações de que foi vítima e que caíram por terra apenas 100
anos depois de terem sido feitas, por intermédio da mesma instituição que as
tinha feito.
Mesmo
assim era ela uma das discipulas aceitas por Morya porque sua lealdade e
determinação eram indiscutíveis e ao que tudo indica, estas eram as mais
importantes qualidades para eles naquela época.
É
claro que em um cenário ideal não deveria ser assim, mas devemos ter em mente
que somos seres humanos, não conceitos.
Nossa
vida e nosso karma, via de regra, não são uma linha reta, mas um traçado
instável, oscilante, em que equilibrado é aquele que oscila menos e não aquele
que não oscila.
Quanto
a memória, quando a classifico em privilegiada, não me refiro a característica comum
de reter dados e evocá-los quando necessários.
Por
privilegiada refiro-me a qualidade de não repetir erros de natureza emocional e
psicológica uma vez que tenhamos sofrido com eles.
Aliás,
o sofrimento, este sim é um grande mestre, pois fixa em nossos engramas os
eventos que nos causaram dor e desconforto para que instintivamente fujamos de episódios
semelhantes. O que sucede é que muitos, por não aprofundarem suas avaliações
íntimas, por não, digamos assim, fazerem o dever de casa, acabam se enredando
em situações afetivas semelhantes seja no relacionamento com terceiros, seja no
relacionamento consigo mesmo. Essa pessoa não terá a tal serenidade citada
antes por não ter resolvido questões de caráter íntimo e não por lhe faltarem qualidades
intelectuais.
É
privilegiada a memória daqueles que erram uma única vez, já que a “desgraça dos
homens é esquecer”.
Já
energia e determinação no estudo são qualidades que andam lado a lado, já que
uma depende da outra.
Lembro-me
quando era uma criança no subúrbio que ficava fascinado com pessoas que tinham
bicicletas com um dínamo atrelado ao pneu da frente. O movimento do pneu fazia
com que a borracha roçasse o dínamo que então girava levando energia elétrica
para o farol da bicicleta.
A
energia e a determinação em pedalar andavam juntas e sem um movimento contínuo
do ciclista o pneu não rodava e o dínamo não funcionava, mas se fosse o
contrário a luz do farol ia bem longe e o caminho era mais seguro.
Textos
esotéricos, como todo texto obscuro, demandam paciência e calma em sua interpretação.
Sem energia a luz sobre estes textos não brilhará. Só pela leitura repetitiva e
contínua conseguimos gerar condições de compreensão. Muitas vezes, uma
repetição monótona, mas absolutamente necessária, como o movimento dos pedais
da bicicleta.
Docilidade, capacidade de concentração , pragmátismo,
memória, energia e determinação , somados, levam inevitavelmente
à discrição e à humildade. Discrição porque são tantas e tão especificas as
informações que poucos serão aqueles com quem o discípulo poderá dialogar
satisfatoriamente e humildade porque qualquer um que se dedique de maneira
sincera ao estudo perceberá eventualmente o tamanho de sua ignorância. Por mais
que leia, por mais que estude, jamais imaginará este disparate de que se tornou
um mestre ou coisa que o valha mesmo que muitos possam considerá-lo como tal.
Todas
as pessoas sensatas conhecem a armadilha psicológica por trás dos elogios e dos
títulos e talvez o de mestre seja um dos mais perigosos, já que o tolo se supõe
no direito de exigir daquele que ele considera um mestre um comportamento e uma
infalibilidade inexistente entre seres humanos, mesmo entre os altos iniciados,
os Devan Choan.
A
Adulação precede a cobrança e a cobrança, não satisfeita, leva à frustração e
ao ódio. Lembrem-se, o ser humano infantil, como disse, é alguém que acha que
tem apenas direitos e não deveres.
Por
isso a discrição. Não se trata de querer esconder o que em si não pode ser
ocultado. Trata-se de fugir dos equívocos e das armadilhas dos relacionamentos
humanos, talvez a pior delas aquelas em que milhares de pessoas querem um
mestre pra chamar de seu e para ele transferir a responsabilidade de viver por eles
aquilo que é obrigação de cada um passar.
Todos
temos nossa dor, mas é exatamente ela que nos ensina e nos motiva, que nos
empurra para a frente e nos aperfeiçoa. Em silencio, sem drama, o desconforto
vai nos manipulando e moldando nossa personalidade, tornando-nos mais e mais
flexíveis. Como a água que se adapta a diferentes recipientes.
Não
somos nada a não ser água, uma mera gota d’água com a presunção de ser
independente da massa do oceano da qual salta e para a qual retorna.
Não
sou nada, nunca serei nada. Contentar-me-ia entretanto em ser um bom discípulo,
um dia, quando assim for possível.
Paciência.
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