Por Mario Sales
"Acreditar é mais fácil do que
pensar. Daí existem muito mais crentes do que pensadores."
Bruce Calvert
Estava assistindo há pouco um vídeo de Luiz Felipe Pondé,
publicado hoje no YouTube, que pode ser visto em https://www.youtube.com/watch?v=Gop0glAD_AA
quando lá pelas tantas, ele traz a reflexão de que em função
do mal estar da civilização “quer se associar física quântica em
espiritualidade”.
Embora repetitivo, trata-se de um tema que não me parece ter
ainda atingido o núcleo das mentes envolvidas, seja como espectadoras de um
discurso equivocado de associação arbitraria entre ambas as coisas, seja como enunciador
desse discurso.
Não vou dizer que quem ouve e crê em tal disparate tenha
má-fé. Sofre apenas da proverbial ingenuidade crítica acerca do papel da ciência.
O autor do discurso, sejam os que veiculam via internet este
conceito absurdo, sejam aqueles que lucram financeiramente em encontros de fim de
semana com títulos pomposos onde a palavra “quântica” assume o papel de
adjetivo polivalente de coisas etéreas e pouco claras, qualquer um que use tal
interpretação, nada tem de ingênuo. Talvez não conte nem pra si mesmo que está
apenas trabalhando sua habilidade com as palavras para iludir a boa fé de
incautos disponíveis, mas o fato, a rigor, é que se trata de um charlatão, de
um canalha se me permitem o termo, que sabe muito bem como manipular a
ignorância ou a fé alheia.
Não existe nada que proíba o uso da interpretação de
conceitos de forma livre e plural. É da natureza da consciência humana atribuir
sentido as coisas do mundo, como lembrava Edmund Husserl.
O que me aborrece profundamente é ver, por um lado, pessoas
mal intencionadas iludindo pessoas de pensamento pouco crítico, e por outro,
pessoas de boa índole sendo iludidas por estes charlatães.
Existe, desde há muito, uma certa impaciência entre pessoas
de pensamento pouco elaborado.
Elas querem, como todos queremos, respostas. Mas a diferença
entre mentes cientificamente educadas e outras mentes não é, como alguns crêem,
a cultura específica, não é a erudição, mas sim a capacidade de suportar a própria
ignorância e a perseverança em buscar fatos que sustentem de modo indiscutível,
suas suposições.
Um cientista, digno desse nome, precisa de duas qualidades
fundamentais para exercer sua profissão: determinação na busca por informações
e paciência para suportar o tempo da busca.
Um homem ou mulher de ciência não pode ser uma pessoa
precipitada, alguém que aceita com rapidez e docilidade quaisquer ideias como
expressões da verdade. O pensamento crítico não é uma barreira contra o
conhecimento, mas a peneira que separa o ouro da areia nas águas da informação.
Os místicos não estão isentos da responsabilidade de pensar.
Os místicos não podem se permitir uma tal irresponsabilidade.
Dócil deve ser o espirito apenas à vontade do altíssimo, não
às afirmações arbitrárias de quem quer que seja, principalmente daqueles que
tem habilidades discursivas, que falam bem e aparentemente possuem encadeamento
de idéias.
A língua se movimenta como a serpente, de forma as vezes
rápida, as vezes lenta, mas em oscilações constantes. Essa, a meu ver, deveria
ser a associação simbólica com a serpente do éden, no mito judaico da criação
no Éden.
A palavra é a verdadeira manifestação da magia.
Encantamentos, feitiços, na história do ocultismo, sempre foram pronunciados,
falados, e a associação, do ponto de vista representativo, é perfeita.
Contra o poder mágico da palavra surge a verificação
experimental, a paciente busca por comprovações práticas ou ao menos
matemáticas das afirmações que saem, sem esforço, pela boca.
É por isso que bons e maus ocultistas têm essa conhecida
inveja da ciência. Atacam-na permanentemente, chamam-na de lenta,
demasiadamente cética, acusam-na de ateísmo e de falta de flexibilidade. Partem
do princípio, ingênuo, de que a natureza humana permite que olhemos o mundo sem
cuidado, que não verifiquemos todas as informações que nos chegam, na maioria
das vezes como produto de crenças pessoais descritas com beleza as vezes, com elegância
linguística, o que necessariamente não significa que tragam em si a verdade.
E por ser a promotora da melhoria da qualidade de vida
social com a tecnologia e os procedimentos médicos que geram saúde e a maior
quantidade de seres humanos vivos simultaneamente na historia conhecida, graças
aos antibióticos e os avanços da higiene, a ciência, esta paciente senhora, é
atacada mas também invejada, a ponto de que, sabedores da importância que ela
transfere às suas informações e afirmações, todos, ocultistas sérios e
charlatães, querem dar as suas próprias elaborações aspecto científico, seja
afirmando que tem “provas” do que afirmam, seja atribuindo aos seus delírios nomes
oriundos do trabalho cientifico, como “relatividade”, “quântica”, e outros.
Mais: é comum vermos uma vitimização dos místicos em relação
aos cientistas, alegando que esses “seres insensíveis” não crêem em suas
informações apenas por falta de compreensão. Às vezes mesmo alegam que são
perseguidos por suas crenças.
Essa tolice não se sustenta. Homens ligados ao ocultismo,
mas com formação cientifica, como Papus, o medico Gerard Encause, já em 1900 lançava
já por terra a noção de que, para a ciência contemporânea, interesse perseguir
algum místico, como nas épocas de séculos atrás, da inquisição católica.
Dizia Papus: “Não importa que um não iniciado tenha acesso a
textos esotéricos. Se os ler, não se interessará; se se interessar, não compreenderá
o que está escrito; se compreender, não acreditará.”
Assim, embora a ideia de que alguma força real ameaça a prática
e o estudo místico seja atraente e romântica, hoje a única coisa que nos cerca
e, ao mesmo tempo que nos combate, nos protege, é o desprezo pelo discurso místico
esotérico, considerado por alguns obsoleto e por outros totalmente descabido e
absurdo.
Isto não quer dizer que não exista uma enorme multidão
disposta a crer em qualquer coisa que pareça verossímil, desde que não implique
muitos anos de estudo ou muitas leituras. De preferência explicações e soluções
fáceis para problemas complexos, que pareçam retirar de nós o ônus de viver e
assumir nossas responsabilidades kármicas, intelectuais e sociais.
Atacar a ciência, mas parecer científico, este é o lema.
Algumas nobres ordens buscaram romper com essa estratégia,
mas aos poucos sucumbiram ao apelo fácil de vender crenças, não conhecimento.
Essa é a suprema iniciação, conseguir aliar em um só
individuo capacidade reflexiva e docilidade espiritual, que não são como querem
nos fazer crer os charlatães praticas incompatíveis.
Crer, por crer, sem qualquer critério analítico, é apenas
ser ingênuo, um religioso, não um místico, o que não é em si certo ou errado,
pois o verdadeiro religioso em êxtase na sua adoração ao Ser Divino, não
procura iludir os outros pela palavra, mas vive o seu exemplo em sua própria vida,
como Jesus, Paulo apóstolo, Lahiri Mahasaya, ou Ramana Maharishi.
O místico esoterista, entretanto, herdeiro dos alquimistas,
dele se espera mais discernimento, mais seriedade, tanto no que fala como no
que considera certo escutar e repassar adiante.
Discernimento é aliás exigido de todos, desde os tempos
imemoriais do início da prática da Yoga, e tem inclusive um termo em sânscrito
que o designa: Viveka.
Esta piada de mau gosto do “misticismo quântico” ou de que ciência e misticismo são inimigos, precisa acabar.
PS: Agradeço a contribuição de Flavio Bazzeggio que manda o link de comentário de Marcelo Gleiser pertinente ao assunto tratado: https://youtu.be/ckPQT6wLEf4
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