Multi pertransibunt et augebitur scientia (Muitos passarão, e o conhecimento aumentará).

quarta-feira, 2 de dezembro de 2020

CLARICE


Por Mario Sales



 

“De manhã na cozinha sobre a mesa vejo o ovo. Olho o ovo com um só olhar. Imediatamente percebo que não se pode estar vendo um ovo. Ver o ovo nunca se mantêm no presente: mal vejo um ovo e já se torna ter visto o ovo há três milênios. – No próprio instante de se ver o ovo ele é a lembrança de um ovo. – Só vê o ovo quem já o tiver visto. – Ao ver o ovo é tarde demais: ovo visto, ovo perdido. – Ver o ovo é a promessa de um dia chegar a ver o ovo. – Olhar curto e indivisível; se é que há pensamento; não há; há o ovo. – Olhar é o necessário instrumento que, depois de usado, jogarei fora. Ficarei com o ovo. – O ovo não tem um si-mesmo. Individualmente ele não existe. Ver o ovo é impossível: o ovo é supervisível como há sons supersônicos. Ninguém é capaz de ver o ovo. O cão vê o ovo? Só as máquinas vêem o ovo. O guindaste vê o ovo. – Quando eu era antiga um ovo pousou no meu ombro. – O amor pelo ovo também não se sente. O amor pelo ovo é supersensível. A gente não sabe que ama o ovo. – Quando eu era antiga fui depositária do ovo e caminhei de leve para não entornar o silêncio do ovo. Quando morri, tiraram de mim o ovo com cuidado. Ainda estava vivo. – Só quem visse o mundo veria o ovo. Como o mundo o ovo é óbvio. O ovo não existe mais. Como a luz de uma estrela já morta, o ovo propriamente dito não existe mais. – Você é perfeito, ovo. Você é branco. – A você dedico o começo. A você dedico a primeira vez”.

Clarice Lispector, in “O Ovo e a Galinha”

 

Foi por esse texto, “O Ovo”, que conheci Clarice, lá se vão 45 anos.

Sua relação peculiar com a percepção, essa forma estranha de olhar as coisas, imediatamente me encantou.

E aí qual seria o próximo passo? Mergulhar em seus textos, Perto do Coração Selvagem (1943), O Lustre (1946), A Cidade Sitiada (1949), A Mação no Escuro (1961), A Paixão segundo G.H. (1964), Uma Aprendizagem ou O Livro dos Prazeres (1969), Água Viva (1973), Um Sopro de Vida (1978).

Nestas quatro décadas, no entanto, tudo se resumiu aquele primeiro encontro, àquele primeiro impacto, e mais nada. Dialoguei com outros estudantes da percepção, principalmente da área psicológica e filosófica, Freud, Rogers, Alexander Lowen, Osho; Kant, Schopenhauer e Nietzsche.

Por algum motivo que so posso atribuir a minha habitual descontinuidade em projetos de médio e longo prazo, Clarice dormiu em uma prateleira por mais de 40 anos.

Mesmo na área poética outros ocuparam um lugar mais destacado, como Fernando Pessoa, Vinicius de Morais, Manoel de Barros, Cora Coralina e Adelia Prado. Clarice não.

E agora, como por acaso, a Rocco publica um volume denso com correspondências pessoais dessa ucraniana recifense, que até a sua morte carregou o sotaque típico pernambucano, como mostra em sua última entrevista gravada e disponível no YouTube. (https://www.youtube.com/watch?v=ohHP1l2EVnU)

Neste livro, “Todas as Cartas”, pode-se testemunhar o carinho e a relação afetiva entre ela e suas irmãs, seu namorado, depois marido, seus amigos.

Cartas assim eram documentos perigosos. Elas eram reveladoras porque escritas a mão.

 


Havia na época pré teclados um vagar na elaboração da idéia que os textos digitais hoje às vezes nos roubam. 

As cartas eram redigidas com prazer e relaxamento, já que não havia a necessidade do rigor dos textos racionais, principalmente aquelas dirigidas aos nossos entes queridos. 

O afeto e o carinho nos deixam desarmados, sem defesas. Escrevemos com uma sinceridade inocente, principalmente quando escrevemos a mão. E então, cartas são exercícios de associação livre de ideias, bem ao estilo da psicanálise primitiva.

Passamos de uma ideia a outra, eventualmente tocando, como que sem querer,  no coração de nossas questões mais importantes, no centro de nosso amago.

Foi assim com este livro.

As cartas de Clarice revelam, sem o desejar, o lado mais profundo de seu ser, sua alma e corpo, sua região abissal.

E uma única linha perturbou-me demasiado.

Está na carta a Tania Kaufmann, escrita na Fazenda Vila Rica, no Estado do Rio, em 1942.

Começa de modo prosaico, com o habitual “Alô queridíssima”, e algumas linhas abaixo explode em uma constatação que para mim foi como “um tapa na testa”, como diria um leitor de Masaharu Taniguchi, o fundador da Seicho No Iê. 

Diz ela: “…Cheguei mesmo à conclusão de que escrever é a coisa que mais desejo no mundo, mesmo mais que amor.”

Exato. É exatamente assim que sinto.

 

Estátua de Clarice no Recife

Tal identidade de intenções tem a característica dos pertencimentos, das especificidades que criam entre os seres humanos nichos em que grupos de pessoas que talvez nunca venham a se encontrar ou se conhecer, habitam, simultaneamente ou não.

É isso que chamamos Dharma no hinduísmo, a missão de nossa vida, aquilo que viemos fazer no mundo.

Não podemos trair o Dharma sem que isso nos traga dor, sofrimento. Existe outro nome para Dharma, desta vez na filosofia grega: physys. Diz, sobre este conceito, Miguel Spinelli: "tudo o que nasce está destinado a ser o que deve ser e não outra coisa.”

Isto é a natureza verdadeira da existência e de cada ser

Isto é Dharma. O caminho. Seu caminho. 

E existe um caminho determinado para cada indivíduo, cada espécie biológica, cada manifestação cósmica.

Para Clarice, o Dharma era escrever.

Eu entendo isso. 

Existem sim, coisas que dão sentido à existência e que, quando as fazemos, sentimos uma intima satisfação, certos de que estamos cumprindo nosso papel, explicitando aquilo que está em potencial dentro de nós.

Identifico-me com essa ideia. Meu Dharma é o mesmo. Parafraseando Elis Regina, a maravilhosa intérprete brasileira que desapareceu de modo tão precoce, “não vejo graça em mais nada na vida” senão em escrever.

É quando me sinto desarmado, calmo, sereno, produtivo, realizador, sem receios de críticas ou avaliações. 

Escrever, pra mim, seja sobre o que for, traz a atmosfera que descrevi no ato de redigir cartas a mão como Clarice em 1942, ou eu mesmo, até 30 anos atrás, antes destas modernidades informáticas, que me livraram do horror da minha caligrafia, mas, de forma sutil, tornaram, salvo equivoco, meus textos mais frios, menos emocionais.

Talvez seja coisa da idade essa falta que sinto do barulho dos tipos batendo no papel nas antigas máquinas de escrever, as mecânicas, claro, não as elétricas.

Teclados de computador são educados, polidos.

Não existem ruídos de impacto, não existe o som da campainha tão bem representado por Jerry Lewis em uma sátira famosa no cinema.

Escrever agora, é um ato silencioso, “clean”.

Clarice não viu essas contemporaneidades.

Morreu em 1977, quando eu estava no primeiro ano da faculdade de medicina, em Campos dos Goytacazes, no norte do Estado do Rio.

De repente, lendo suas cartas, e essa linha que destaquei, sinto sua falta, dessa companheira de Dharma e amiga querida que nunca conheci e cuja mão nunca apertei, mas que sabia, como eu sei, que “escrever é a coisa que mais desejo no mundo”.

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