por Mario Sales,FRC, SI, MM
Ontem, aconteceu mais uma reunião da confraria do Vinho “In
Vino Veritas”, a reunião semanal que fazemos todas as quintas, lá em casa. Ao
final, os meus queridos confrades, demonstrando a gentileza característica deste
relacionamento fraterno, dispuseram-se a me ajudar a retirar as taças da mesa.
Argumentei.
Tentei explicar que este momento imediatamente após a saída
de todos, em que fico arrumando a sala, lavando as taças de vinho, de água, e
as pequeninas de vinho do Porto, me garantem alguns instantes de meditação e
paz.
Não me entenderam nem me escutaram.
Certos de que estavam fazendo um bem, rapidamente tiraram da
mesa todas as peças daquele ritual pagão abençoado e que tanta alegria nos
traz.
Depois que já tinham ido, enquanto lavava e limpava o
Decantador e os outros vidros, meditava como nossas intervenções na intenção de
causar o bem seguem razões e compreensões absolutamente pessoais, que quase
nunca estão em harmonia com os fatos ou com a realidade da pessoa pela qual
fazemos a intervenção.
Uma vez, discutindo com pacientes do serviço de geriatria
sobre dor e sofrimento, comentava com eles que a demência protege o demente, já
que a angústia de quem testemunha a decrepitude progressivamente mais intensa e
devastadora daquele que antes era uma professora de piano ou um empresário é sempre mais intensa do que a da vitima da doença, incapaz de perceber sua situação e estado
mental.
Ou seja, dizemos: “-Meu Deus, como sofre este coitado.” quando
na verdade o sofrimento é nosso ao vê-lo ou vê-la naquele estado.
Da mesma maneira, achamos que sempre que retiramos um fardo
das costas de alguém, mesmo que seja o trabalho de retirar uma mesa de uma
reunião da confraria, estamos necessariamente ajudando o anfitrião.
Esquecemos que este momento pode ser uma parte tão
importante do ritual de confraternização quanto a reunião em si, exatamente o
momento em que, só, vigiado pela minha Cocker, lavo metodicamente cada taça,
cada prato, com a mente vazia durante o processo.
Nestes momentos, medito. Estou em estado de paz, feliz pela experiência
de convivência social recém terminada e mergulhado no silencio da casa, o
silencio após os risos, o silencio pós gargalhadas, o mais fabuloso silencio
que um ser humano pode experimentar.
Este é um momento Zen. O trabalho segue mecânico, enquanto a
mente repousa no deleite do estado de depois.
O “depois” sempre será o momento da reflexão ou do desfrute
porque sublima a experiência, absorve-a como lembrança, como processo mental,
devorando a matéria e metabolizando-a em puro espírito.
A mente ficará satisfeita e alimentada de mais imagens, de
mais memórias, de mais conteúdo metafísico de felicidade.
É um ritual.
Não meus queridos confrades.
Deixem que seu irmão arrume a mesa, não me ajudem, não tirem
as taças, não desfaçam este altar pagão.
Este ritual pertence a quem de direito, o anfitrião, o
sacerdote desta missa, que desfrutará, tanto quanto desfrutou o encontro, o
período de depois do encontro, aonde no silencio da madrugada que começa, pode
mergulhar, exatamente por causa desse simples trabalho doméstico, em estado de
meditação serena e feliz.
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