Por Mario Sales
A comunidade rosacruz no mundo comunga valores comuns quanto
a busca do aperfeiçoamento do caráter de seus membros, quanto ao aumento de
conhecimento sobre as leis naturais e universais e sua aplicação ao cotidiano
e, finalmente, a vivência de uma fraternidade indiscutível entre os membros da
Ordem e a Humanidade.
Estes pontos de ligação, no entanto, não devem ser
entendidos como marcas de homogeneidade mental ou comportamental.
Se existe uma lei acerca dos seres humanos, sejam iniciados
ou não, é a lei da diferença, da heterogeneidade. Somos, nós, rosacruzes,
peculiares, individualmente, com preferencias e tendencias singulares que nos
identificam entre nossos pares.
Alguns de nós são extremamente céticos, outros intensamente
crentes. Uns seguem a linha dos místicos religiosos, outros a linha de trabalho
dos alquimistas que ao sabor do dito “ora et labora”, consagravam a Deus seu
trabalho e rezavam através do empirismo laboratorial.
É destes alquimistas, que colaboraram com seu oficio para a
forma e estrutura atual dos laboratórios contemporâneos de química e biologia,
que vem a linhagem com a qual, dentro da rosacruz, me identifico.
Por ignorância ou falta de maturidade, muitas pessoas
julgam, senso comum, que existe uma incompatibilidade natural entre ciência e
devocionalidade e que um indivíduo ligado ao trabalho científico não pode ser
um crente ou alguém que sinta em si a presença do eterno.
Ledo engano. O físico Marcelo Gleiser, agnóstico, cético
metodológico, em mais de uma oportunidade mostrou que tal visão é equivocada, e
que muitos homens de ciência seus conhecidos admitem francamente crença em um
ser indefinível, ou se preferirem, divino, sem que isto em nada interfira com
sua objetividade científica.
Em 1915, quando a Ordem voltou a atividade visível pelas
mãos de Harvey Spencer Lewis, esse grupo de rosacruzes que representa o
pensamento alquímico, empírico, laborioso no mundo material tanto quanto no
mundo espiritual, estava representado. Nosso antigo imperator era um amante da
ciência e da pesquisa.
Preocupou-se em montar um sistema de ensino a distância,
antecipando os métodos contemporâneos de aulas remotas. Construiu um pavilhão
para estudo das estrelas no parque de San Jose, na California, aos moldes dos nossos
planetários de estudo e ensino.
Criou aparelhos na tentativa de estabelecer a ponte entre os
ensinamentos esotéricos e a demonstração dos princípios rosacruzes, na
esperança de achar este Santo Cálice (Hole Graal) do encontro experimental
destes dois Universos.
Faltava-lhe infelizmente tecnologia para sustentar tanta
ambição, como de resto, a todo o planeta. Não seria a primeira vez que um
visionário perceberia realidades ainda impossíveis de serem reveladas ou
tornadas de domínio público por falta de estrutura empírica.
Hoje ainda não temos a tecnologia necessária para atravessar
este vazio entre nós e amanhã, mas muitas condições antes ausentes tornaram o
estudo do invisível, do antes indetectável, mais viáveis.
Os recursos empíricos necessários para a detecção do muito
pequeno se ampliaram. A sensibilidade dos nossos aparelhos, entretanto, para
energias muito sutis ainda é baixa.
Não conseguimos ver aura, salvo se formos videntes. Não
conseguimos detectar o Ki dos acupunturistas, que flui segundo eles por canais
ao longo do corpo, e por não conseguirmos ver, muitos supõem ser apenas uma
superstição, uma fantasia, se bem que ninguém nunca viu o “inconsciente
coletivo” junguiano, ou mesmo o espaço tempo einsteiniano, mas aceitam sua
existência em função de “evidências empíricas indiretas verificáveis”, como o
desvio da luz visto nos eclipses.
Isto para a ação de deformação do espaço tempo como
manifestação da gravidade. Para o conceito de inconsciente coletivo junguiano
nem esses dados experimentais indiretos temos, o que não abala aparentemente
sua dita cientificidade.
Porque então falamos em pseudo ciência quando nos referimos
a conceitos que se baseiam em energias ainda não detectáveis, independente de
seus efeitos terapêuticos demonstrados, dados empíricos indiretos portanto, e
ao mesmo tempo aceitamos como plausível uma rede de interligação entre os
subconscientes de todos os seres humanos, sem tanto pudor?
Vejam que aqui eu não estou falando a favor ou contra esse
conceito, o qual inclusive tem minha simpatia.
Verificável, no entanto, ele não é, e portanto, muito menos
cientifico. A psicologia junguiana se sustenta na habilidade como escritor e
descritor de seu fundador e na pratica de seguidores apaixonados de seu
pensamento, mas sob o ponto de vista ortodoxo, cientifico, baseado no modelo
matemático-empírico, só podemos classificar a psicologia não experimental como
um conjunto de crenças, boas ou más, porém crenças, já que não são passíveis de
verificação, assim como os canais de acupuntura, hoje ainda invisíveis, como
por séculos foram invisíveis os microorganismos na ausência de um simples
microscópio.
Por isso, o diálogo tão decantado em prosa e verso, entre
esoterismo e ciência é inviável. Falta-nos, como faltava para Spencer Lewis,
tecnologia que sustente com evidências empíricas demonstráveis, as afirmações
dos esoteristas.
Assim a rosacruz se viu em um impasse. Os experimentos
elaborados por Spencer Lewis para enriquecer o ensino dos nossos principios
tornaram-se cada vez menos expressivos dado o enorme avanço da ciência no
século XX. Pelo menos, foi o entendimento do grupo que assumiu a direção dos
trabalhos administrativos da Ordem a partir dos anos 90, dando uma forte
guinada para o enfoque devocional, forte porém sutil, de maneira a não explicitar
o abandono do ideal empírico de Lewis. Seu nome, suas palavras, seus discursos
ainda estão lá, mas a Ordem que ele imaginou já não existe.
A alquimia rosacruz ainda é estudada, mas como uma
curiosidade histórica e simbólica, substituindo o aspecto pratico experimental
pela vertente do estudo semiótico.
Embora sejamos a mesma Ordem da qual foi membro o criador do
ceticismo metodológico, Renée Descartes, a maioria dos rosacruzes
contemporâneos não perceberam estas mudanças. Leais aos seus juramentos templários
de respeito as decisões de nossos oficiais superiores, deixamos que década após
década, a AMORC fosse transformada em uma associação com forte caráter religioso
em detrimento do cientificismo de Lewis. Não que Lewis não fosse, ele mesmo, um
devoto cristão. Nunca, entretanto, usou do apelo da religião para fomentar o
trabalho rosacruciano.
Sua norma e, salvo engano meu, seu maior objetivo, era criar
uma organização internacional de esoteristas capazes de como ele fez, atualizar
por métodos científicos os conhecimentos esotéricos recebidos dos guardiões da
tradição. Havia nele, Lewis, uma urgência em transformar conhecimento em
técnicas que poderiam ser aplicadas por qualquer individuo em situações as mais
corriqueiras, aquelas que dizem respeito a vida cotidiana.
Assim, com seu maravilhoso poder mental, sintetizou todos os
antigos meios mágicos na arte da visualização criativa. Mais do que isso não
era necessário para mostrar os efeitos diretos sobre a realidade do poder
mental de cada indivíduo, um poder desconhecido e pouco usado, mas Lewis queria
mais, queria poder demonstrar de modo empíricos outros princípios, mas como
disse faltavam recursos, faltava tecnologia.
A vertente rosacruciana dos devotos assumiu e expandiu a
Ordem com o discurso da crença e da devoção, o que não vai contra a natureza rosacruciana,
mas, tenho para mim, não era o objetivo de Lewis lá nos anos de reabertura da
Ordem.
Dentro deste espírito devocional, aconteceu o fortalecimento
da Ordem Martinista, uma Ordem de origem maçônica, baseada na teurgia do século
XVIII, que não tem por objetivo a verificação empírica dos poderes latentes,
mas o desenvolvimento de uma sensibilidade religiosa nos moldes do cristianismo
ocidental, com insinuações de práticas mágicas que via de regra não se
concretizam, já que a teurgia prática, dentro da Tradicional Ordem Martinista,
foi esvaziada e pasteurizada, num reconhecimento tácito de sua inadequação ao
momento histórico atual. Embora fale-se em “caminho do coração”, qualquer
martinista sabe que a TOM é fundamentada em exaustivos estudos teóricos, textos
e mais textos, sobre assuntos que a atualização feita no início do século XX
por Lewis, dos antigos ensinamentos da tradição, a meu ver tornou obsoletos.
Pode-se dizer em defesa do Martinismo que foi o próprio
Lewis que resolveu abrigá-lo dentro da AMORC, mas a ênfase que ele recebeu a
partir dos anos 90, foi indiscutivelmente mais intensa.
O Martinismo, temo, é apenas uma curiosidade histórica.
Pessoalmente acho que foi um equivoco tentar mante-lo já que trata-se de uma
Ordem que tende ao desaparecimento historicamente.
Assim foi após a morte de Martinez de Pasqualy. Assim foi
com o surgimento do Rito Escocês Retificado criado por Vilermoz em ambiente
maçônico. Assim também ocorreu com o Martinismo primitivo, de Louis Claude de
Saint Martin que jamais desejou uma escola de graus separados, mas a livre
iniciação que hoje, na TOM é tratada como prerrogativa de alguns e não de todos
os Superiores Incognitos, como sonhou o fundador.
O modelo de Papus, em Paris, com graus e com ênfase no estudo da Cabalá, ao que parece da Cabalá Cristã, e não da Hebraica, era fomentar um esoterismo genuinamente francês que se opusesse ao trabalho da Teosofia Blavatskiana, que à época, dominava o cenário e com a qual Papus rompeu ligações em 1890, um ano antes da morte de Helena Petrovna. Como os teósofos, os martinistas de Papus davam ênfase ao estudo teórico, e não ao estudo prático, se bem que alguns enveredassem por este caminho, de modo particular.
A TOM é um reflexo não da Ordem imaginada por Saint Martin,
mas da Ordem como desenhada pelos esoteristas franceses do final do século XIX,
Augustin Chaboseau, Stanislas de Guaita, Lucien Chamuel, Charles Barlet,
Maurice Barrès, Joséphin Péladan, Victor-Émile Michelet e alguns outros.
A Ordem que Lewis abriga, via FUDOSI, dentro da AMORC, é o
Martinismo de Papus, com a estrutura educacional própria da época, um
esoterismo de enciclopédia, com muita informação e pouco foco pragmático. O
inverso, portanto, do ideal rosacruciano de empirismo e aplicabilidade
cotidiana dos princípios esotéricos.
É difícil entender qual o objetivo de Lewis ao tomar essa
decisão de abrigar a escola de Papus dentro da estrutura da AMORC. Talvez tenha
se deixado encantar pela proposta de uma ordem que refletia o espírito dos
ideais de cavalaria do século XVII e XVIII enriquecidas por um ambiente
cristão. Não percebeu eu estava abraçando um empreendimento que nada tinha a
ver com a proposta de AMORC para os séculos XX e XXI, e que de forma alguma
representava o perfil dos alquimistas rosacrucianos, se bem que ali estivessem
ecos da cabalá cristã que os rosacruzes tão bem conheciam na linha de Pico de
laMirandola.
Depois desta demorada digressão, que visa dar um panorama
histórico da evolução de AMORC pré e pós anos 90 do século XX, volto a questão
inicial. Perdemos, na minha opinião, nosso caráter eminentemente empírico e
pragmático, pelo menos do ponto de vista da proposta descrita nas monografias
como qualquer artesão como eu leu nos anos 60 e 70.
E isso inviabiliza o tal diálogo desejado entre os homens céticos e metodológicos, ao espirito do rosacruz Renée Descartes, também francês, que a rosacruz contemporânea esqueceu ao longo de sua caminhada.
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