Multi pertransibunt et augebitur scientia (Muitos passarão, e o conhecimento aumentará).

sábado, 13 de novembro de 2021

QUANDO É NECESSÁRIO SER ESOTÉRICO


Por Mario Sales

 





“A Suprema Personalidade de Deus disse: Ao falar palavras cultas, você está lamentando pelo que não é digno de pesar. Sábios são aqueles que não se lamentam nem pelos vivos nem pelos mortos. Nunca houve um tempo em que Eu não existisse, nem você, nem todos esses reis; e no futuro nenhum de nós deixará de existir. Assim como a alma encarnada passa seguidamente, neste corpo, da infância à juventude e à velhice, da mesma maneira, a alma passa para um outro corpo após a morte. Uma pessoa sóbria não se confunde com tal mudança. Ó filho de Kuntī, o aparecimento temporário da felicidade e da aflição, e o seu desaparecimento no devido tempo, são como o aparecimento e o desaparecimento das estações de inverno e verão. Eles surgem da percepção sensorial, ó descendente de Bharata, e precisa-se aprender a tolerá-los sem se perturbar. Ó melhor entre os homens [Arjuna], quem não se deixa perturbar pela felicidade ou aflição e permanece estável em ambas as circunstâncias, está certamente qualificada para a liberação. Aqueles que são videntes da verdade concluíram que não há continuidade para o inexistente [o corpo material] e que não há interrupção para o existente [a alma]. Eles concluíram isto estudando a natureza de ambos. Saiba que aquilo que penetra o corpo inteiro é indestrutível. Ninguém é capaz de destruir a alma imperecível. O corpo material da entidade viva indestrutível, imensurável e eterna decerto chegará ao fim; portanto, lute, ó descendente de Bharata. Aquele que pensa que a entidade viva é o matador e aquele que pensa que ela é morta não estão em conhecimento, pois o eu não mata nem é morto. Para a alma, em tempo algum existe nascimento ou morte. Ela não passou a existir, não passa a existir e nem passará a existir. Ela é não nascida, eterna, sempre existente e primordial. Ela não morre quando o corpo morre.”

Bhagavad Gita, capítulo 2, versículos de 11 a 20

 

 

A questão foi ventilada na reunião de ontem. Imagine que um individuo mentalmente desiquilibrado e impressionável lesse este trecho do Gita e entendesse que alguém que seja baleado, esfaqueado ou degolado, na verdade continua vivo, já que a alma é imortal.

Tal pessoa poderia supor que estaria autorizada por um livro sagrado a matar quem quer que fosse já que, segundo Krishna, ninguém morre.

Na India, Kali, energia companheira de Shiva, geralmente é representada como tendo vários braços, símbolo padrão da multiplicidade de poderes da deusa. Em um deles, ela segura uma adaga e no outro, a cabeça de um homem. Para o simbolista, a cabeça significa o orgulho, o ego, e “cortar a cabeça” refere-se a aumentar a humildade dos homens.

Mesmo assim, uma seita terrorista instalou-se no final da dominação inglesa, com o nome de filhos de Kali, que tinham por hábito cortar a cabeça de soldados ingleses como maneira de tornar real o era apenas simbólico.

Interpretações equivocadas, literais, seja por ignorância ou má fé, sempre aconteceram a partir dos textos sagrados ou profanos.

Profanos sim. Basta lembrar o uso dos textos de Nietzsche pelos nazistas como se o filosofo apoiasse suas insanidades.

Conhecer a verdade espiritual não implica “ler” sobre ela, mas compreendê-la com o coração.

Para isso é preciso, além de evolução moral e nobreza ética, maturidade psicológica e saúde mental.

Certos assuntos e temas, por fazerem abordagens delicadas, pertinentes a visão espiritualista, porém de interpretação peculiar e diferenciada, devem ser evitados pela grande maioria dos seres humanos.

Para eles, tais temas devem permanecer em segredo e só grupos de pessoas diferenciadas pelas virtudes acima citadas podem discuti-los.

Aí sim o esoterismo se impõe, esoterismo baseado na peculiaridade do ensinamento e não em uma informação especifica que precisa ser ocultada.

Um exemplo didático vem da filosofia.

Na Republica Platão ataca a Democracia, como uma forma equivocada de organizar o poder. A ideia de cada homem ter um voto nunca lhe pareceu sensata.

E ele explica que se em um navio precisamos de um capitão competente, não vamos consegui-lo fazendo uma eleição entre os marinheiros, absolutamente incapazes de julgar a competência técnica de um capitão. Se colocarmos o tema em discussão neste ambiente o eleito será o mais simpático aos interesses do grupo, o menos exigente talvez, mas não o mais tarimbado para o metier.

Para saber quem deve ser o melhor capitão, só outros capitães podem decidir entre um grupo de possíveis e habilitados candidatos.

A democracia é, portanto, terreno para demagogos, aqueles que discursam para a turba e que usam da retorica, a técnica de falar bem, para manipulá-la.

Para os manipuladores, não há interesse em que o mais preparado seja escolhido. Seu objetivo é apenas o poder.

Se considerarmos o que acontece hoje em nossos países, democráticos, vemos que o filosofo não estava enganado.

A partir desta constatação, que atitude devemos tomar? Acabar com o modelo de governo baseado em eleições? Banir a democracia de nossas vidas por causa de suas evidentes imperfeições?

As opções não são tão fáceis.

Além disso, precisamos decidir sobre o que colocaremos no lugar do sistema político que descartaremos.

Esta é a grande questão.

Como na parábola da assembleia dos ratos, sabemos que precisamos colocar um sino no pescoço do gato só que não temos ninguém que tenha coragem ou habilidade para fazê-lo.

Impasses metodológicos como estes são bem mais comuns do que parece.

Quando Krishna diz a Arjuna que Aquele que pensa que a entidade viva é o matador e aquele que pensa que ela é morta não estão em conhecimento, pois o Eu não mata nem é morto, ele parece autorizar qualquer desequilibrado a matar quem quer que seja já que ninguém pode ser realmente morto.

Estes assuntos devem ser tratados com pudor e prudência. Só os prudentes devem discuti-los para que ilações indevidas não brotem de uma leitura inadequada e de uma interpretação mais inadequada ainda.

Este é o drama da linguagem. Ler é um processo de dois movimentos: entender e interpretar.

É no segundo passo que mora o perigo.

A luta, como lembra o Dalai Lama, nunca foi entre o Bem e o Mal, mas sim entre o conhecimento e a ignorância.

Oremos, vigiemos, e guardemos sigilo das coisas que devem ser mantidas entre poucos.

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