Multi pertransibunt et augebitur scientia (Muitos passarão, e o conhecimento aumentará).

domingo, 6 de novembro de 2011

ELI,ELI,LAMAH SABACTANI OU A FALTA QUE AS PULGAS FAZEM


Por Mario Sales, FRC.:,S.:I.:,M.:M.:



O Sagrado sempre foi o Separado.
As Religiões responsabilizaram-se por consagrar esta situação. E sejamos justos, não me refiro apenas aquelas de denominação cristã. Judeus, Islâmicos, e mesmos os Budistas do Norte, ao contrário do Zen, constituíram estruturas de separação entre aquilo estava embaixo e o que estava em cima, no Alto, no Altar.
Ao que parece esta estratégia não era só um movimento de poder; tinha a ver também com as características educacionais e psicológicas da própria humanidade.
No entanto o gênero humano, graças aos céus, não é homogêneo. Se fosse assim, todos os seres humanos deveriam ter a mesma distância do Sagrado. Não é assim entretanto.
Existe uma classe de seres, os místicos, que não pensam nem sentem desta forma as coisas sagradas. E guardadas as devidas diferenças regionais, sua posição sobre isso é bem homogênea. Rosacruzes, Yogues, sufis, não importa, sua perspectiva como místicos, em relação a este tema, é inteiramente diversa daquela dos religiosos.
Para o místico o Sagrado é difuso, não localizado; não pode ser posse de um ou mesmo de alguns, mas pertence e está em todas as pessoas, mesmo naqueles que não tenham noção de sua presença.
O ministério cristão traz demonstrações disto.

Jesus não era Cristão, não pertencia a nenhuma religião, se bem que fosse judeu de nascimento. Embora respeitasse e conhecesse os textos de seu povo, não seguia regulamentos morais de outros a não ser de sua própria consciência, como quando curava aos sábados, dito um dia de recolhimento.

Poucos iluminados foram tão felizes em demonstrar a fusão do divino e do humano como o Mestre Jesus.





Seu primeiro milagre não ocorreu em uma cerimônia religiosa mas em uma festa de casamento; pregava em toda parte, em praças, embaixo das árvores e em festas na casa de um coletor de impostos judeu, visto com desdém até pelos seus. Fez questão de mostrar piedade por uma mulher adúltera, a qual sem a sua intervenção seria apedrejada até a morte; fez também a sua mais devota seguidora uma simples prostituta, Madalena, dizendo que ela demonstrou por ele mais carinho do que outros, ditos sem pecado.

Mais: tomado de fúria, ele, um homem de paz, chutou o pau, não de uma, mas de muitas barracas, às portas do templo em Jerusalém, enquanto açoitava quem se arriscasse a ficar perto, num episódio que embaraça até hoje os exegetas, os quais tentam justificar seu desatino com as mais estapafúrdias explicações, como se o Cristo precisasse delas.

Homens e mulheres que vivem por sua própria consciência são assim. Têm um senso todo próprio de justiça, despertaram em si o contato direto com o Altíssimo e assumem atos e palavras que soam com extrema autoridade àqueles que os escutam.
Não precisam mais das tolas explicações humanas para seus atos e para suas palavras.
E mesmo aqueles que se tornam seus discípulos, que recebem seu toque pessoal como os apóstolos receberam em Pentecostes, não conseguem acompanhar seu ritmo. Pedro, por exemplo, anos depois da Ascensão do Mestre aos Céus, em Atos dos Apóstolos, quando levado por anjos a casa de um centurião honrado que queria ouvir a palavra de Deus, diz, como que surpreso com sua descoberta: “Vejo que Deus verdadeiramente não faz acepção de pessoas.”



O Sagrado, portanto, está em toda parte, no Cristo e no Centurião, na Prostituta convertida e no pescador simples que se torna o primeiro papa. Nos templos, sim, mas também nas praças, nas festas de casamento e nas reuniões as mais mundanas.

O Sagrado não pede permissão para entrar em nossas vidas e, se não se revela, na maioria das vêzes é porque aguarda o momento certo para poder se revelar, aquele momento no qual sua manifestação plena não nos fará mal, pois até a luz em excesso pode nos cegar.
Só que uma vez manifesto o Sagrado não nos torna menos humanos.
O Divino em nós apenas modula nossa Humanidade, bem como o Humano em nós modula nossa Divindade, regula a expressão desta divindade em busca de um equilíbrio psicológico e de uma homeostase espiritual a mais adequada possível.
Por isso homens e mulheres mesmo iluminados podem sofrer como humanos, desejar, comover-se, temer, suar sangue de ansiedade, enfurecer-se, porque não perderam sua condição humana ao se divinizarem.

Sempre foram ambas as coisas, mesmo quando não sabiam disso.
Deus não está nem nunca esteve ausente de nenhuma parte de nós, nem em nosso corpo, nem em nosso espírito. E o comportamento desses iniciados, divinos e humanos, em essência e em manifestação, deve ser aceito tal como é, sem tentativas de explicações para os seus atos ou para suas palavras. Porque como eles só os compreenderemos quando os testemunharmos com nossos corações, quando os ouvirmos com nossos corações e não com nossos cérebros. Só o intelecto pode elaborar explicações, tentando adaptar sua história aos nossos valores e idéias de mundo, nossos preconceitos enfim, mesmo que achemos nossas idéias as mais nobres possíveis e as nossas intenções as mais justas. Principalmente se formos membros da comunidade mística mundial.
Sim, se existe um grupo de pessoas que teoricamente compreende bem o papel do invisível no visível, que sabe como perceber a luz que vem dos Mestres, este grupo não é o dos religiosos, mas dos místicos. Ou deveria ser. Por que como vemos às vêzes, mesmo aqueles que tem um convívio próximo com as Luzes do Mundo não conseguem ultrapassar suas próprias limitações de compreensão.

Foi assim com Pedro e o Cristo; e recentemente com Blavatsky. É no mínimo curioso que ela , secretária não de um mas de três Grandes Mestres Cósmicos, pudesse ecoar uma tentativa de explicar, justificar, em suma, de salvar a imagem do Cristo que, na crucificação, no auge da dor e do sofrimento, se desespera e clama : "Eli, Eli, lama sabactani", o início do salmo 22, traduzido por “Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste?”.

Toda iniciativa intelectual parte de um pressuposto moral, de uma convicção. E o que deu o ponto de partida para o raciocínio justificativo de Blavatsky (negando o direito ao Cristo de desesperar-se e que está exposto em seus escritos escolhidos), fica implícito, é a crença de que o Cristo, o Filho de Deus, não poderia ter dito uma coisa dessas. Como seria possível, na concepção de Blavatsky e de outros, que o Iluminado Jesus pudesse se desesperar ou pronunciar quaisquer palavras de desespero, ou mesmo por um breve momento, de falta de fé?
Nada nesta análise blavatskyniana considera o lado humano do Cristo, sua alegria nas festas, sua fúria contra os comerciantes do templo, seu suor de medo e ansiedade no Monte das Oliveiras, antes da prisão iminente e já sabida, reações e comportamentos absolutamente humanos.

Não, o Divino e ao mesmo tempo humano Jesus não poderia ter se desesperado, não poderia após toda dor, toda a humilhação e após os açoites aos quais foi submetido ter um mísero momento de desespero antes da morte a ponto de dizer, como qualquer um de nós teria dito, Deus meu, Deus meu por que me desamparastes.
Não, não ele, que para ela, ao que parece, não era um homem, mas uma espécie de super homem. Ele, que ao longo de toda a sua vida tinha dado uma série de sinais de que era tão humano quanto divino; mas não: seria inaceitável. Ele não poderia ter dito tal coisa.
Alguns religiosos apressaram-se a explicar que não era isso, que a palavra não era essa, esquecendo que o salmo não oferecia outro contexto. Blavatsky concorda com estes preconceituosos comentários.

Por isso, lemos nos escritos de HPB:
“Por dez anos ou mais, sentaram-se os revisores (?) da Bíblia, um conjunto  imponente e solene dos maiores sábios da terra, grandes conhecedores do hebraico e do grego, estudiosos da Inglaterra, pretendendo corrigir os erros e erros, os pecados de omissão e de comissão de seus antecessores menos preparados, os tradutores anteriores da Bíblia.
Será que nenhum deles viu a diferença gritante entre as palavras hebraicas azabvtba-ni, em Salmos, 22 e sabachtbani em Mateus? Será que não estavam cientes desta falsificação deliberada?” (http://www.theosophy-nw.org/theosnw/world/christ/xt-aed.htm)
Digamos que houvesse um erro e que no salmo a palavra não fosse sabactani, abandonastes, mas azabvtba-ni, glorificastes: se a frase for a mesma do salmo de Davi, não faz sentido. Pois o salmo não fala de um homem glorificado, mas de um homem que se queixa da falta de resposta as suas preces, ou seja, alguém desesperado. Isto está descrito com clareza na análise do Dicionário Bíblico Universal de A.R.Buckland e Lukyn Willians, tradução de Joaquim Figueiredo, 4ª edição, ou no Livro dos Salmos Comentado, Ed. Mayanot, traduzido por Adolpho Wasserman , pág. 27 , em português e hebraico; mas não: ela preferiu dar atenção a uma interpretação esdrúxula, complexa, que, convenhamos, partia do princípio psicologicamente ingênuo de que um iluminado não pode ter um comportamento humano comum. Mesmo depois de ter tido vários, os quais, ressalte-se, ninguém contestou.
Uma mística importante, fundamental ao trabalho dos Mestres, como Pedro foi fundamental ao trabalho do Cristo. E no entanto do mesmo modo, ingênua.

Porque o Cristo não poderia ter dito tal frase? Qual de nós já não desesperou? Qual de nós, atingido pelos flagelos de Jó ou algo que nos cause alguma dor física ou moral desproporcional , diante da inevitabilidade dos fatos e do natural silêncio do Universo, que a tudo contempla sem interferir, já não bradou aos céus: “Eli, Eli, lama sabactani?” E por que, meu Deus, deveríamos ter alguma vergonha disso?
Se um ser tomado pela Divindade como o Cristo, nos mostra o que todos sabem, que a dor do viver às vêzes parece insuportável, isto deveria ser uma lição de vida para nós e não algo a justificar.
No Homem-Deus humanizado pelo sofrimento, encontramos mais uma vez o consolo e o perdão para o nosso próprio desespero, e para olharmos para nós mesmos sem censura por sermos ou nos comportarmos de acordo com nossa natureza humana.
Blavatsky como Pedro demorou para perceber coisas óbvias da existência.
Suas considerações sobre o episódio dizem que o Cristo apenas reproduzia trechos de iniciações secretas, que não foram compreendidas por quem as ouvia. A pergunta é: qual a importância disso? Por que esta angústia em mudar este trecho da história da paixão?
Digamos que ela estivesse certa de fato. Continuaria errada de direito, pois partia do princípio, repito, que o Deus Homem, capaz da Ira, capaz da Alegria das Festas, capaz da convivência e amizade com seres de todas as espécies e classes sociais, sem distinção, capaz do medo e da ansiedade, não pudesse ser capaz do desespero característico de qualquer ser humano, de qualquer um de nós.
Como Pedro, não havia percebido, até uma idade avançada, que Deus não faz acepção de pessoas, o que dito de outra forma quer dizer, Deus não tem pré-conceitos.
Blavatsky ao tentar mudar a interpretação da frase do Cristo não atinou que estava sendo vítima dos seus preconceitos sobre como um Homem Deus, um Mestre, deve se comportar.
Preconceitos são como as pulgas dos quadrinhos em epígrafe. Embora não façam parte do cachorro, passam tanto tempo nele que quando se vão deixam grande vazio, na verdade solidão. E esta solidão dos preconceitos perdidos, embora represente avanço psicológico para quem a experimenta, não é confortável, nem agradável. Viveríamos melhor sem idéias pré concebidas mesmo que nos sentíssemos estranhos no início.
Como cães sem pulgas.

Como seres humanos comuns, mesmo que com poderes incomuns, Mestres Espirituais não são Super Homens ou Super Mulheres.
São o que são, Irmãos mais Velhos.
Não devemos lançar sobre eles nossas pulgas.
Ele já têm suas próprias pulgas para coçar.


PS: As fotos são do Filme Jesus de Nazaré, de 1976, de Franco Zefirelli. O Ator que faz o papel do Cristo chama-se Robert Powel.

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