por Mario Sales, FRC
revisto e corrigido, generosamente, por Americo Sommermann, a quem agradeço
TRABALHO APRESENTADO NA CONVENÇÃO REGIONAL ROSACRUZ DA SP3, DIA 11 DE JULHO DE 2015
Este ensaio é baseado nas duas publicações nacionais de Aurora Nascente, uma pela Editora Paulus, e outra pela Editora Polar.
O COMPARTILHAR DE IDÉIAS
São duas as formas de compartilharmos um conhecimento: mostrar e descrever.
Quando mostro, estou diante de um objeto ou imagem, e outros
comigo, e teoricamente basta que os outros olhem para o objeto para ver o que
eu vejo.
O curioso é que, quando duas pessoas diferentes olham para o
mesmo objeto, por exemplo um quadro que tenhamos pintado, teremos dois olhares
diferentes do mesmo objeto. O que implica que às vezes, precisamos ao mesmo
tempo que mostramos, descrevermos o que mostramos, já que a compreensão modifica a visão e melhora o olhar.
Ora, se diante de uma coisa que eu mostro, podem haver
divergências de compreensão do que se contempla, imagine quando descrevemos
algo; ou, pior ainda, se o descrevemos, escrevendo.
Descrevemos o que não podemos mostrar.
Tudo a partir daí fica mais complexo.
Como mostramos a outros, algo invisível? Como explicamos a
outras pessoas um conceito ou uma idéia que elas, em princípio, não conhecem?
De modo geral, lançamos mão de comparações e associações
para que, pouco a pouco, façamos com que o interlocutor visualize, mentalmente,
a forma e o conteúdo da idéia que queremos transmitir.
Desafortunadamente, descrições são feitas no ambiente de um
idioma, de uma língua.
E as limitações da fala estão, da mesma forma, na
escrita.
O texto só revela o que pode revelar, e por isso recorre a
comparações.
Se minha intenção é realmente facilitar a compreensão à
outro, manda a boa didática que eu use comparações com coisas que lhe sejam
familiares, cotidianas, o que dá conforto à mente e diminui nossa ansiedade em
compreender.
Explico algo desconhecido comparando-o com coisas conhecidas o que
facilita a exposição e a transmissão da idéia, independente das imprecisões que
possam decorrer deste método. Esta é a maneira mais antiga e mais usual, em
todas os povos da humanidade, de explicar coisas. E todos nós a usamos com
frequência.
Acredito que com Jacob Boheme foi semelhante.
Em 1589
seus pais o levaram a um sapateiro para que ele aprendesse o ofício. Uma vez,
estando a cuidar sozinho da loja, um estranho entrou e perguntou pelo preço de
alguns sapatos. Boehme, notando um olhar extraordinário no estranho, disse não
saber dos preços dos sapatos, mas o estranho, antes do que procurar o
sapateiro, disse a Boehme que, embora ele fosse de baixa estatura, se tornaria
grande entre os homens e "causaria muita admiração no mundo".
Advertindo Boehme para que permanecesse fiel ao seu voto original, o estranho
desapareceu tão misteriosamente como havia surgido. (http://www.levir.com.br/inst-037.php)
Ele passou por quatro episódios de Iluminação Divina.
Casa de Jacob Boheme
A primeira iluminação, manteve-o em êxtase por sete dias.
Ele mesmo descreveu a experiência da seguinte maneira:
"Eu vi o Ser de todos os Seres, a Superfície e o
Abismo; vi também o nascimento da Santa Trindade; a origem e o primeiro estado
do mundo e de todas as criaturas. Vi em mim mesmo os três mundos - o mundo
angélico ou Divino; o mundo das trevas,
a origem da Natureza;
e o mundo
externo, como uma substância manifestada dos dois mundos espirituais....
No meu
interior vi isto muito bem, como em uma grande profundidade; pois vi
diretamente no caos onde tudo permanece envolto, mas não pude fazer revelação
alguma. De tempo em tempo tudo isto floresce em mim como o crescer de uma
planta. Por doze anos guardei tudo comigo, antes de poder manifestar de alguma
forma externa. Até então isto abateu-se sobre mim, como uma carga que mata o
que atinge.
Escrevi tudo o que pude exteriorizar. (o grifo é meu) A
obra não é minha. Não sou mais do que um instrumento do Senhor, com o qual Ele
faz o que deseja".
Sua segunda iluminação, (segundo Américo Sommerman relata no
texto de apresentação de Aurora Nascente) Boheme a experienciou "em 1600,
aos 25 anos, quando recebeu um dom de visão através do qual podia ver a
natureza mais íntima de todas as coisas que estavam à sua volta.
Não falou a
ninguém da Luz que recebera, nem do profundo conhecimento de Deus e da Natureza
que agora tinha."
E continua o relato:
"Sua terceira iluminação" foi "em 1610 (...),
mediante a qual, aquilo que, nas duas vezes anteriores, vira fragmentariamente,
revelou-se como uma unidade, possibilitando-o ver a Ordem divina da
Natureza."
"Em 1612", continua mestre Sommerman, "para
não esquecer o que vira, pôs-se a escrever seu primeiro livro: A Aurora
Nascente!
"Em 1619 teve sua quarta iluminação, com a qual a
unidade do conhecimento dos mistérios de Deus, do Homem e da Natureza, que
despontara em 1610, atingiu o dia pleno (...).
Ora, imaginem alguém que vive no século XVII, tentando
primeiro compreender e depois descrever em texto quatro experiências místicas
desta magnitude, para si mesmo e para outros.
Que outra maneira de o fazer senão recorrendo aos elementos de
comparação do cotidiano mais imediato?
E quais seriam estes elementos? Coisas peculiares da
Alemanha do século XVII: o alimento e a bebida daquela época e da região; aspectos
da luz natural do Sol e das estrelas; sons e tons da Natureza; o fluxo das
águas nos córregos; as árvores, suas raízes, galhos, seus frutos e a dinâmica
com que esses frutos e árvores interagiam com as intempéries e os processos
biológicos, a maturação e a putrefação dos frutos, dos vegetais, seus gostos,
sua cor.
Não se esqueçam, era uma sociedade rude e primitiva, uma Alemanha
ainda sem as tradicionais batatas, já que "no final do século XVI já
existiam batatas na Alemanha, (mas) só como belas plantas ornamentais nos
jardins dos mais abastados. O verdadeiro valor deste tubérculo só foi
descoberto nas regiões sul e oeste da Alemanha durante a guerra dos 30 anos
(1618-1648)"
No século XVII, na Alemanha de Alt Seidenberg, ou Velho
Seidenberg, não existe telefone, telégrafo, rádio, televisão ou cinema. Não
existe celular ou internet, muito menos energia elétrica.
As casas são iluminadas por toscas lamparinas. As ruas estão
sempre cheias de lama e os excrementos dos pinicos dos moradores das casas são
atirados sem pudor pelas janelas durante a faxina diária. Os porcos, animais
fundamentais à dieta local, são criados livremente, nas ruas.
Banheiros só para os abastados; não existe, de modo difuso, saneamento
básico; as latrinas são apenas buracos fundos no chão.
Ouçamos Amélia Polónia, que em "Reflexões sobre alguns
aspectos da Vida Quotidiana do séc.XVI e XVII", diz, em certo trecho:
"É sabido que, no século XVI, como de resto(...), a
religião é omnipresente na vida das comunidades europeias. Ela delimita o
espaço com sua divisão entre o sagrado e o profano, e marca o tempo: a
comunidade rege-se pelo toque dos sinos que divide o dia em funções litúrgicas.
À falta generalizada de relógios, públicos ou privados (o
relógio é, ainda, um bem de luxo a que só os mais abastados podem aceder), o
sino orienta a vida de toda a comunidade. E não marca só o ritmo do dia. Marca
também os momentos festivos (os nascimentos e casamentos, as entradas nas vilas
ou cidades dos reis ou grandes personalidades), como os momentos de pesar
(mortes, incêndios ou perigos de invasão)".
Estamos, portanto, em uma época de pouca tecnologia e muita
arte.
É neste ambiente que Boheme se consolida como um artesão dos
calçados, habilidade que naquela época em nada poder-se-ia chamar de
"humilde".
Prova disso é que ele tem amigos importantes: o pastor mor e
o médico da Cidade frequentam sua casa.
Ainda assim, é um mundo de atraso e carências de toda
espécie, e é nesta realidade limitada que ele descreverá suas profundas
experiências, e lançará mão das imagens mais familiares possíveis, a si mesmo e
a todos, para descrever as complexas visões a que teve acesso.
Destas visões e conceitos que ele descreve em Aurora, talvez
o conjunto mais importante seja as chamadas Qualidades ou Forças de Deus.
Trata-se de uma idéia extremamente refinada e sutil.
Ele propõe que existem certas Particularidades ou Qualidades,
segundo sua visão, que interagem para determinar as muitas manifestações da
criação, assim como alguns pedaços de vidro criam centenas de milhares de
combinações de imagens em um caleidoscópio.
Esta é uma compreensão comum a todos os pensadores, místicos
ou filósofos, e mesmo aos físicos. O Universo, com tudo que existe, manifesta
sua complexidade através da combinação de uns poucos elementos.
Cabalistas falam de 10 sefirot somadas a 22 letras que
constituem os 32 caminhos ou elementos básicos componentes da Criação.
Os químicos falam que tudo que existe resulta da combinação
de 118 tipos de átomos em sua periódica tabela.
Físicos falam que nestes 118 átomos, podemos identificar
partículas ainda menores, no núcleo, com seus nêutrons e prótons, e dentro dos
prótons quarks, e ligando os quarks, múons.
Falam também de quatro forças, a
gravidade, a eletromagnética, a nuclear forte e fraca, as quais, juntas, mantém
a integridade do Cosmos.
No século XVI e XVII dos sinos e dos dias lentos e
arrastados, as forças que Jacob Boheme descreve são também sutis e invisíveis
e, igualmente, fundamentais.
Em Aurora são em número de sete estas forças, (ou
qualidades, ou particularidades, ou formas, ou espíritos, ou fontes, ou espíritos-fonte
ou espécies):
1.a adstringente,
2.doce (ou água suave),
3.amarga, (ou aguilhão, ou aguilhão amargo)
4. calor (ou fogo ou quente),
5.amor (ou luz),
6.som (ou tom ou mercúrio), e por último,
7.corpo (ou natureza ou corporalidade ou naturalidade ou
tangibilidade ou substancialidade).
Nos livros seguintes ele descreverá a 2a força que em Aurora
é Doce, como Amarga, e a 3a, que em Aurora é Amarga, como Angústia.
O conjunto dessas forças é chamado Salitre, (o nome de um
nitrato fertilizante da agricultura) o meio ambiente resultante da interação
entre elas.
Em outro arranjo, Boehme, pródigo em modificar suas afirmações sem
piedade, chamará Salitre não ao conjunto das forças, mas à sétima força, já que
a corporalidade, a substancialidade está manifesta no Salitre. Ele, Salitre, é
o corpo da Criação.
Em uma palestra na Loja Rosacruz Guarulhos, Américo
Sommerman citou que de todos os livros de Jacob Boehme, Aurora Nascente é
aquele que tem foco mais intenso na criação material e na Natureza, sendo que
aos outros livros foi deixado o papel de descrição do mundo espiritual. Aurora
descreve a Natureza, desde aquela Celeste até a terrestre, como a vemos e
desfrutamos, além de sua dinâmica íntima em detalhes, como só o dom permitia a
Boheme enxergar.
Em Aurora, Boheme descreve detalhadamente essas sete
qualidades ou forças, no oitavo capítulo, a partir do item 15.
Diz ele: "Olha: Aqui devem ser notadas separadamente
sete espécies de qualidades ou particularidades. Em primeiro lugar, ...há a
qualidade ADSTRINGENTE (ou SALGADA) que é uma qualidade radical (da raiz da
criação) e da essência íntima, uma aguda, penetrante e acerba (ou seja ácida,
áspera) e compactante compressão no salitre, que engendra a Dureza e o Frio. E
quando a qualidade ADSTRINGENTE é inflamada, produz uma acerbidade (uma acidez)
semelhante ao Sal."
FORÇA ADSTRINGENTE: CETRÍPETA
Ora, se transportamos a descrição de Boheme para nosso
século, a expressão que me vem a mente é "Força de Coesão".
Se
existe, como ele diz, "dureza" no Salitre, ou de outra forma,
Densidade no Universo, é por conta desta Força de Coesão que ele chama ADSTRINGENTE.
E ele detalha: dura e fria, ou seja, a rigidez é garantida pela baixa
temperatura numa notável antecipação mística da compreensão moderna
físico-quimica de que o Calor provoca a instabilidade das ligações moleculares,
tornando todas as coisas a ele submetidas, menos rígidas e no limite, líquidas.
Por isso, a força ADSTRINGENTE é "DURA e FRIA" em si.
A expressão "inflamada" presente na descrição de
Boheme, a meu ver não deve ser confundida com "incendiada". Boheme
usa o termo no sentido de aumento de energia da força, já que ele as
caracteriza em benévola ou malévola segundo sua manifestação, que pode ser serena
ou agitada.
É nesse sentido que ele continua a descrição:
"Essa qualidade (ADSTRINGENTE) é uma forma ou uma fonte
de cólera no salitre (salitter) divino. Quando ela é inflamada (o que pode
ocorrer por um grande movimento, uma violenta exaltação ou uma excessiva
reação) então um grande frio qualifica-se ali dentro, e ele é mordente e
completamente acerbo, semelhante ao sal, ou duro e muito compactante semelhante
às pedras."
Não há, aqui, nenhuma dúvida. O termo "inflamar"
antes de nos remeter a um sinônimo de "incendiar", quer aqui
significar "estímulo intenso", semelhante ao estímulo da energia
elétrica que faz o liquidificador, antes quieto e morto sobre a pia, funcionar.
Faz sentido que estimulada, a força ADSTRINGENTE gere, não
só dureza por aumento da coesão, "semelhante às pedras", mas também
"grande frio", pois quanto mais duro é o elemento, menos calor existe
nele.
Para Boheme, esta dureza tem a ver com o mundo terreno, o
mundo da densidade, ou de Lúcifer, já que só aqui na Terra a força ADSTRINGENTE
foi "acesa" ou "inflamada"(no sentido de intensificada) por
Lúcifer, de forma que, por causa deste estímulo, "ela ainda arde e arderá
até o Juízo Final".
A força ADSTRINGENTE é, pois, uma Força de Coesão,
incorporando em seu conceito quaisquer forças na natureza que possibilitem a
integridade estrutural dos corpos do universo.
É fácil, eu suponho, agora entender que é graças a qualidade
ou força ADSTRINGENTE que no céu ou na "pompa celeste", ocorra o surgimento da forma
do corpo
celeste,
onde antes existia apenas energia pura. E ele continua sua descrição: "
Pois (esta força) é a compactação, conglomeração ou formação de uma coisa, por
isso é a primeira qualidade e um início das criaturas angélicas, de todas as
configurações que estão no céu ou neste mundo, e de tudo o que possa ser
expressado ou nomeado."
O cuidado de Boheme de estender sua descrição da força
ADSTRINGENTE a coisas do céu e da terra, mostra uma vez mais que em AURORA
NASCENTE, sua preocupação é expor o funcionamento da criação, e se cita coisas
do céu, cita-as no intuito de mostrar que a Ordem Divina funciona em todos os
planos, não só no chamado plano material, e que existe uma densidade a
considerar em todos os corpos, sejam sutis ou grosseiros.
A segunda qualidade ou particularidade é a qualidade DOCE
que "opera na qualidade ADSTRINGENTE", tempera-a e torna-a
completamente agradável e suave."
"(...) Tens uma
similitude disso numa maçã" diz Boheme, comprovando minha tese de que
baseia o didatismo de sua explicação nos recursos naturais e nos alimentos da
Alemanha do século XVII." No início", continua ele, "ela (a
maçã) é adstringente ou azeda, mas quando a qualidade DOCE se eleva e
apodera-se dela, então torna-se completamente agradável e boa para comer".
E então ele conclui:" É assim que ocorre na força
divina; pois quando se fala na misericórdia de Deus Pai, fala-se de Suas
forças, de Seus espíritos fonte, das qualidades que existem no Salitre, das
quais Seu mais amável Coração ou Filho é engendrado", numa aparente alusão
ao Cristo, homem Deus, surgido no mundo, no Salitre, mas pleno de qualidade
DOCE, intensa, que venceu a rigidez (ADSTRINGÊNCIA) deste mundo, temperando-o
com sua presença, e derrotando assim, com sua doçura, a acidez, ou acerbidade.
É com uma singela maçã que Boheme resume, portanto, a
complexa luta de duas forças fundamentais da Criação.
Mas ele não é um escritor fácil. No item seguinte, (23) na
mesma página em que se lê o trecho acima, a mesma palavra, coração, aparece com
outro sentido inteiramente diferente, diferença da qual se suspeita pelo
contexto e pelo fato de que, no item anterior, quando se refere ao Cristo,
coração está escrito com C maiúsculo e aqui, neste item seguinte com c
minúsculo. Lá ele se refere ao "Seu mais amável Coração ou Filho",
num indicativo de que Jesus é uma extensão da Divindade.
Aqui, no item 23, ele escreve; "Presta atenção aqui. A
qualidade adstringente é o coração (com c minúsculo) ou núcleo da força
divina" numa referência a natureza essencial da qualidade ADSTRINGENTE na
possibilitação da existência das formas de todas as coisas. Já a
"qualidade DOCE (é) o calmante e a calidez que faz com que a qualidade
acerba e fria ou ADSTRINGENTE se relaxe e se torne delgada e branda, de onde a
água tem sua origem."
O Cristo é Homem e Deus: Homem no corpo e Deus em espírito.
Diz Boheme: "(Adstringente e Doce) Essas são as duas qualidades das quais
o Coração (com C maiúsculo) de Deus ou Filho de Deus (confirma ele) é
engendrado.
Aqui é bom ressaltar: como o Cristo é a resultante de duas
forças antagônicas, tudo na Criação, no Reino Divino ou no Reino de Lúcifer
também é resultante da interação das sete Forças ou Qualidades. Forças são
elementos básicos. Isoladamente não existem, não se manifestam ou provocam
manifestação. É preciso que interajam entre si para que o Mundo, como o
conhecemos, o Lebenswelt ou Mundo da Vida, surja.
Por isso, em nós, seres humanos, existe a "tenebrosa
obscuridade"
ao lado de uma "luz transbordante, móvel e cálida". Temos dentro de nós,
apenas para que possamos existir, o Céu e o Inferno.
É a qualidade DOCE ou ÁGUA SUAVE, que vai temperar e modular
o encontro entre as qualidades ADSTRINGENTE E AMARGA, a próxima que
examinaremos. Esta ÁGUA, que é a ÁGUA CELESTE, e nada tem a ver com a água
comum dos rios, que BOHEME chamará de ÁGUA ELEMENTAL, esta ÁGUA CELESTE terá o
poder de desfazer a dureza da força ADSTRINGENTE, tornando-a delgada e
maleável.
Muito mais poderíamos especular e trabalhar em cada uma
destas Qualidades, mas não temos tempo.
Passemos a Terceira Qualidade, talvez aquela que tenha se
tornado para mim a mais divertida. Diz Boheme: "A Terceira qualidade ou o
terceiro espírito de Deus na força do pai é a qualidade AMARGA. Ela é
penetrante, é o ímpeto das qualidades DOCE e ADSTRINGENTE, é vibrante, pungente
e ascendente."
Aqui, farei um pequeno parêntese para uma reflexão. Existem
exegetas que supõem que a erudição sempre traz a iluminação. Na exegese de
textos místicos, precisamos menos da erudição do que da simplicidade de
espírito, que aqui não deve ser confundida com mediocridade.
Simplicidade aqui refere-se a passagem de Mateus 19:14 que
diz: "Jesus, porém, disse: Deixai as
criancinhas, e não os impeçais de vir a mim; porque delas é o reino dos céus."
Ou seja, interpretar textos esotéricos requer o olhar da inocência. Fim do
parêntese.
Seguindo este protocolo, quando li o nome AMARGA,
imediatamente tentei pensar em algo amargo, como por exemplo o Jiló, para
tentar entender a imagem.
E imediatamente instalou-se um conflito: a descrição de
Boheme da qualidade AMARGA em nada e por nada lembrava a experiência de comer
um jiló. Diz ele: "...a qualidade AMARGA é penetrante e conquistadora,
pois se eleva e triunfa nas qualidades ADSTRINGENTE e DOCE."
E continua:" Ela é a fonte da alegria ou a causa do
riso". Pensei: como um jiló pode ser fonte de alegria ou causa de riso? A
experiência de comer um jiló ou algo amargo em si beira o desagradável, insulta
o paladar, a não ser que combinemos seu sabor e o diluamos em outros temperos.
O Amargo em si não pode gerar alegria pois, não por outra
razão, a tristeza, um sentimento ruim, é descrita como algo de gosto amargo.
Por dois dias pensei e meditei sobre isso, e súbito, a caminho
do trabalho, fui tomado por uma epifania: Boheme era alemão.
Na Alemanha do séc XVII como na do século XXI, existe sim um
gosto amargo que é "penetrante, ...fonte de alegria ou causa do riso"
além de poder-se dizer que "pelo triunfo (desta) qualidade amarga, uma
coisa rejubila-se e estremece de alegria e é disso que resulta a alegria
celeste".
Ora, ficou cristalino para mim que o modelo profano e
prosaico do conceito da qualidade AMARGA, e de sua capacidade em elevar o
espírito e o coração do homem à uma condição vibrante, crepitante, ..., um
triunfo e alegria" é a CERVEJA, talvez a bebida mais alemã do mundo.
Usando esse modelo tudo fez sentido. Foi, na minha humilde opinião, a partir deste mote que ele descreveu esta qualidade, dizendo :"A qualidade AMARGA é temperada ou abrandada na qualidade DOCE, que a torna amável e jovial; mas se ela se eleva em demasia e se agita até inflamar-se ( o que ocorre no excesso e na embriaguez) então põe fogo nas qualidades DOCE e ADSTRINGENTE, e torna-se semelhante a um veneno ardente (palavra de Boheme), picante e dilacerante, como quando um homem tem um tumor pestilencial que faz com que grite de dor."[10]
É óbvio que não
estou afirmando que a qualidade AMARGA é a CERVEJA alemã. Só ressalto
que provavelmente, o modelo didático de Boheme para descrição de sua refinada
visão recorreu a esta cotidiana bebida de Alt Seidenberg, pois não se explica o
Complexo pelo mais Complexo, mas sim o Complexo pelo Simples. Até para ele,
Boheme, suas visões eram altamente esotéricas e não fosse ter recebido seu
conhecimento através da experiência direta, jamais teria compreendido o que
levou toda a vida para explicar e descrever, já que não havia como mostrar.
Se eu não acompanhasse seu trajeto, dentro de sua época e de
seus valores e hábitos, com certeza, essa é a minha tese, aquele que alguns
dias atrás era para mim o mais obscuro dos autores místicos, não teria se
transformado no mais humano deles. Se essa técnica me foi útil acredito que
possa sê-lo para todos.
A qualidade AMARGA, assim, é a mais divertida. Em doses
terapêuticas, digamos desta forma, ela exalta o espírito e expande a
consciência e a existência. Em doses excessivas, ou para falar como Boheme, inflamadas,
torna-se "o violento Fogo infernal; então extingue a Luz...um sofrimento,
uma casa de tristeza, uma morada das trevas, da morte e do Inferno, um fim da
alegria..."
Boheme ainda descreve que a qualidade AMARGA "é o
primeiro espírito de onde a mobilidade tem sua origem, de onde a vida torna-se
móvel"
O senso comum pensaria no CALOR, próxima qualidade, como
fonte do movimento, mas não estamos falando de leis da física ortodoxa, embora
não devamos nos esquecer delas. Por isso, ao contrário de nossa intuição, é na
particularidade AMARGA que Boheme identifica esta característica de
"tornar a vida móvel" fazendo mais esotérica sua apreciação e
assimilação conceitual. Algo a meditar.
Essas três forças inicialmente vistas, a ADSTRINGENTE, a
DOCE e a AMARGA, são "...as três espécies ou qualidades (onde) reside o
ser criatural ou o corpo de todas as criaturas do Céu e neste mundo, seja anjo,
homem, animal, pássaro, seja qualquer espécie, qualidade e forma de vegetal,
tanto celeste quanto terrestre, como também todas as cores e
configurações."
O Salitre, ou a Criação, é descrita por Boheme em um de seus
textos como a soma dessas três qualidades ou forças, as quais garantem a
corporalidade de tudo que existe.
Daí em diante ele descreverá as qualidades mais sutis e
íntimas da Criação. Se as três anteriores ADSTRINGENTE, DOCE, AMARGA,
representam o corpo, as próximas 3 representarão o espírito das coisas, seu
conteúdo.
Começaremos pela quarta qualidade, ou particularidade, ou
espírito fonte, que Boheme nomeou de CALOR.
Diz ele:"(O CALOR) é o verdadeiro início da vida e o
verdadeiro espírito da vida. As qualidades ADSTRINGENTE, AMARGA e DOCE são o Salitre, que corresponde ao corpo.
... e o calor é o espírito ou a inflamação (leia-se ENEGIZAÇÃO) da vida, pelo
qual o espírito se faz no corpo, move-se em todo o corpo, brilha fora do corpo
e produz um movimento vivificante em todas as qualidades do corpo".
Minha tentação aqui era traduzir a propriedade ou qualidade
CALOR, pelo termo ENERGIA, pois naquela época, o conceito energia não existia e
para representar as forças do universo, usava-se costumeiramente a palavra
relâmpago, para uma descarga de energia súbita, ou Fogo, para representar uma
energia mais estável e persistente, como demonstrei alguns anos atrás em um
trabalho, disponível no Blog na área de Textos Martinistas, sobre o EIXO FOGO
CENTRAL INCRIADO, que traduzido para uma linguagem contemporânea seria ENERGIA (FOGO)
DIVINA (INCRIADO) ESSENCIAL (EIXO CENTRAL) ou NOUS, mas foi chamada Fogo porque
era assim que se falava na época, séculos XVI, XVII e XVIII.
Isso porque ninguém sabe o que Boheme viu, mas, sempre
pensando com a mente simples de uma criança, em um lance de audácia, extrapolei
se ele não teria visualizado ao perceber as coisas "em sua natureza íntima"
os chamados eixos de energia sutil que percorrem o corpo humano segundo os
videntes relatam.
A luz desses canais pareceria com um fluxo de luz e fogo
aquele que o contemplasse. E como na descrição, esse CALOR " pelo qual o espírito se faz no corpo, move-se
em todo o corpo, brilha fora do corpo e produz um movimento vivificante em
todas as qualidades do corpo".
De qualquer forma, aí Boheme refere-se já as partes mais
sutis do corpo, seja do corpo humano, seja do corpo da criação. Ele adverte que
"no corpo, (as três primeiras qualidades) estão mescladas como se fossem
uma única qualidade e contudo cada qualidade move-se e brota em sua própria
força. Cada qualidade sai de si mesma, passa para as outras, e penetrando-as,
estimula-as, com o que as outras qualidades recebem sua vontade, isto é,
experimentam a vivacidade e o espírito desta qualidade..."
E continua:" A qualidade quente ou o CALOR, inflama
(energiza) todas as qualidades, com isso a Luz se eleva em todas as qualidades,
de modo que cada uma delas vê as outras. Pois quando o calor opera na doce
umidade, então engendra a luz em todas as qualidades, o que faz com que cada
uma delas veja todas as outras".
A expressão "Veja" também é muito esotérica. Minha
compreensão é que aqui Boheme quisesse dizer "Ver", no sentido de "perceber",
"Conscientizar-se de", porque em seguida ele continua: "Dali
resultam os sentidos e os pensamentos", que são instrumentos de percepção
e compreensão do mundo material.
É a qualidade CALOR, portanto, que dá o início da vida e da
percepção no ser, e a isto podemos chamar de CONSCIÊNCIA.
A qualidade CALOR, QUENTE ou FOGO é, portanto, o sopro da
vida.
É muito poética a maneira como ele descreve as interações
entre a propriedade ou qualidade CALOR e as outras:
"Então a qualidade AMARGA na ADSTRINGÊNCIA (ou seja, a
expansão no corpo) penetra no CALOR, e a qualidade DOCE deixa-a passar
amigavelmente na água; então, através da ÁGUA SUAVE a qualidade AMARGA
estende-se pelo corpo no CALOR e faz duas portas abertas, que são os olhos, ou
o primeiro sentido."
Ver de modo intuitivo, usando aqui o sentido psicológico
desta palavra, que é olhar sem analisar, contemplar sem pensar sobre o que se
olha, é a primeira e talvez mais impactante manifestação da consciência que
desperta. A medida que vemos o mundo a partir de nós mesmos, tornamos-nos, a
partir daí a referência de nossa perspectiva. Nunca mais poderemos ver através
de outros olhos. Veremos sempre tudo que virmos através de nossos próprios
olhos, e embora isto garanta a consolidação de nossa experiência pessoal no
mundo será também a base de nossa solidão existencial. Pois que agradável seria
poder compartilhar plenamente nossa perspectiva com outros ou vice-versa. Mas a
vida na carne não o permitirá e assim, tudo que poderemos fazer será descrever,
descrever e descrever, uns para os outros, aquilo que nossos olhos e apenas
eles, percebem do mundo a nossa volta.
Para Boheme, existem dois momentos no movimento das coisas:
primeiro, um movimento inconsciente, garantido pela qualidade AMARGA, algo inerente
a matéria consolidada pela força ADSTRINGENTE. O outro movimento, um movimento
vivo, digamos consciente, mesmo que de modo incipiente, desencadeado pela ação
da propriedade CALOR, o "espírito da natureza", que traz consigo a
vida, em um dos exemplos de suas manifestações, através do CALOR do Sol, que
quando ilumina o Globo Terrestre "faz com que se movam e cresçam na terra
toda espécie de configurações de minerais, plantas, raízes, vermes e tudo que
está nela."
Continua ele:" O calor do Sol acende (ou inflama) na
terra a DOCE qualidade da água em todas as configurações; então através do
CALOR, a luz se faz na ÁGUA SUAVE." É forte em mim a sensação que a
palavra "acende" ou "inflama", como Américo Sommerman acrescenta
a título de esclarecimento de sentido, são duas armadilhas semânticas. Acender
ou Inflamar lembra o procedimento de por fogo em uma pilha de lenha ou em
conjunto de folhas secas.
Não é essa a minha interpretação. Insisto que aqui,
acender ou inflamar refere-se muito mais ao sentido de "dar energia",
energizar o que antes não possuía esta energia, que é, no caso, o que faz a propriedade
CALOR, como qualidade ou espírito-fonte, para usar apenas três dos sinônimos
que BOHEME usa para designar as forças do SALITRE.
Sigamos em frente: a próxima qualidade é a quinta, ou
"o quinto espírito de DEUS, entre os sete espíritos de DEUS, nas divinas
forças do Pai, é o santo, amável e beatífico AMOR."
O AMOR, enquanto QUALIDADE, é sem sombra de dúvida, uma
Energia. Nada tem a ver com um sentimento ou com o amor mundano, que BOHEME
compara a um "vale tenebroso". Ele o descreve como algo que flui
através das outras QUALIDADES, como sempre, contaminando-as e modificando-as,
como de ordinário, todas as QUALIDADES afetam umas às outras.
Sua descrição deste balé de forças é belíssima e
inspiradora:
"Quando o CALOR se eleva na qualidade DOCE e inflama a
fonte (ou qualidade) DOCE então esse FOGO arde na qualidade DOCE. Ora, uma vez
que a qualidade DOCE é uma fonte de ÁGUA LÍMPIDA, agradável e suave, ela
tempera ou abranda o CALOR e extingue o FOGO. A partir de então só o que resta
na DOCE fonte de ÁGUA SUAVE (ou qualidade DOCE) é a alegre LUZ, e o CALOR é
apenas suave calidez. (...) Esse amável e luminoso FOGO de AMOR eleva-se na
qualidade DOCE, na qualidade AMARGA e na qualidade ADSTRINGENTE, inflama as
qualidades AMARGA e ADSTRINGENTE, refresca e ilumina-as, torna-as vivas e
alegres. E quando a DOCE força do luminoso AMOR vem a elas, quando podem
experimentá-la e nela encontrar sua vida, AH! Então é um alegre encontro e um
triunfo, um delicioso bem-estar, um grande amor, beatíficos beijos e um celeste
sabor. Então o noivo abraça sua noiva. OH! Deleite. OH! Imenso amor. Quão suave
és! Quão doce é provar-te! Como são penetrantes teus perfumes! OH, esplendor;
OH, nobre claridade, quem pode mensurar tua beleza! Quão gracioso é teu amor!
Quão belas são tuas cores! Ai! E isto eternamente! Quem pode pronunciá-lo!? E o
que eu escreveria, eu que não faço mais que balbuciar como uma criança que
aprende a falar."
Estas bodas alquímicas descritas neste trecho falam da
iluminação, meta e objetivo último de todo o misticismo. O entendimento
espiritual deste trecho mostra que a parte mais importante deste jogo de
energias é modulação da Força da Vida, representada pela Energia CALOR pela
energia DOCE ou ÁGUA SUAVE. Se a energia CALOR fosse muito intensa, destruiria
aquele que deveria animar e tornar vivo; modulada torna-se fonte constante da
vida e ligação indissolúvel com a Fonte de Toda Vida, DEUS. Assim estão dadas
as condições para a manifestação da energia AMOR, como energia de conexão com o
altíssimo, a qual permite a troca e o intercambio entre o Eterno e seus filhos
ou criaturas. É pelo CALOR que a Forma ganha Espírito, Vida Consciente; e pelo
AMOR que o Espírito em cada ser entra em conexão permanente com DEUS PAI, fonte
primeira de todos os espíritos, de todas as energias. Para isso contribui, como
disse, o importante papel modulador da Energia DOCE, ou ÁGUA SUAVE. Esta
conexão na energia AMOR é o Casamento Alquímico, a ILUMINAÇÃO.
Lendo este lindo trecho, fiquei envolto em considerações. Aqui,
quero deixar claro, são interpretações pessoais, que em certo sentido, divergem
do pensamento de Jacob Boheme. Na minha particular visão, se acreditarmos como
fato que BOHEME realmente contemplou a natureza íntima das forças do Universo,
pelo que ele diz, independente do grau de consciência que tenhamos disto, a
Energia AMOR está presente em todos nós, fornecendo-nos, ininterruptamente, a
inspiração DIVINA, se bem que nem todos a percebamos ou reconheçamos, e mesmo,
em certos casos, o grau de inconsciência desta conexão seja de tal intensidade que
cheguemos a pensar que somos algo separado de DEUS PAI, independentes dele,
capazes de viver sem sua presença ou intervenção. Se a Natureza da criação é,
como BOHEME diz, tido que nos cerca, penso eu, (pedras, plantas, animais e
homens, assim como os anjos), não são mais do que extensões de DEUS PAI e não
criaturas, dobras em um tecido contínuo do qual o SALITRE, a CRIAÇÃO é apenas
um pequeno pedaço.
Digo que eu, e não Boheme, penso assim, por que "para Boehme, embora os seres criados
de fato sejam extensões de Deus Pai, são sim criaturas. E para Boehme há sim
criador e criaturas. E existem sim seres criados."
Para Boheme " Deus
enquanto Não-Ser primeiro revelou-se para si mesmo como Ser e, depois,
manifestou-se para si mesmo como essências, formas ou ideias, e, por fim
revelou as essências, formas ou ideias como criaturas."
Já na minha e apenas minha interpretação pessoal, por
estarmos todos mergulhados na DIVINDADE, confundidos com Ela, manifestados por
Ela, nEla e para Seu próprio deleite, não há como separarmos criador e
criatura. Pela conexão da Energia AMOR, e pela vida da Energia CALOR, somos
todos apenas Um com DEUS-PAI.
O Mal então, não poderá ser outra coisa que o Esquecer.
Quando esquecemos nossa origem divina, não deixamos de
tê-la, porém mergulhamos no equívoco demoníaco de supor-nos apenas seres
humanos comuns.
BOHEME nos adverte do engodo. "Ai de ti homem iludido e
miserável" diz ele, " porque deixas que o Demônio te cegue e cubra
teu corpo e tua alma de trevas?"
É a sensação de independência ou de falsa liberdade em
relação a Vontade de Deus que cria o Orgulho.
BOHEME novamente nos alerta " OH segurança, o Demônio
te espreita! Oh orgulho, és o fogo infernal".
Temos a chance de recuperar nossa Principesca Origem na
mudança de visão em relação a DEUS PAI. Criaturas, como quer Boheme, ou
extensões de Deus, como eu interpretei, seja como for, somos Sagrados, neste
mundo. Se supomos sermos algo diferente disso, aí está a verdadeira natureza do
Mal.
Os Rosacruzes Martinistas entenderão: se a energia do AMOR a
todos conecta, e conecta todos com DEUS, fundindo-nos em uma só energia, minha
interpretação pessoal, ao contrário de Boheme, é que não existem seres criados,
a não ser a título didático, nem nos céus, nem na Terra: na verdade, todos
somos emanados.
O sexto espírito ou qualidade é o SOM ou TOM. Diz BOHEME que
"O TOM ou MERCÚRIO toma sua origem na primeira qualidade, isto é, na
qualidade ADSTRINGENTE e DURA. (...) A DUREZA é a Fonte do Tom. Ela (a DUREZA)
não pode engendrá-lo sozinha, mas aqui ela tem o lugar de Pai e o inteiro
SALITRE é a mãe." Ao que parece o choque das forças gera uma onda que ecoa
no Salitre e torna-se SOM.
Na sua visão, BOHEME vê o SOM como produto da explosão do
Espírito AMARGO dentro do espírito ADSTRINGENTE, através de um relâmpago que
destrói sua solidez e o divide em pedaços, papel da energia AMARGA, o dividir
em muitas partes.
ADSTRINGENTE e AMARGA estimulam-se e atritam-se, segundo
ele, fazendo assim com que o CALOR se eleve no meio da qualidade DOCE ou ÁGUA
SUAVE. O aumento da energia do CALOR (o inflamar) gera o relâmpago (LUZ) dentro
da ÁGUA SUAVE, LUZ esta que se introduz assim de novo na qualidade AMARGA e por
ela é dividido em várias partes, distinguindo-se em cada uma das forças. Esta
LUZ agora difusa, em movimento, obriga o ADSTRINGENTE a abrir-se e quebra-a com
seu relâmpago, gerando o SOM, impregnado de todos os sete espíritos.
Juntos, os sete espíritos mobilizados pelo SOM formam bocas
nas criaturas, para que "quando elas quisessem falar ou emitir sons não
fossem antes obrigadas a fazer um rasgo em si mesmas".
E conclui BOHEME, esotericamente:
"por isso todas as veias, fontes e espíritos fonte convergem para a
língua, para que o SOM ou TOM possa sair doce e agradavelmente."
O SOM ou TOM, não é, pois, senão também uma resultante de
todas as energias. Independente da maneira misteriosa com que sua gênese é
descrita, nele encontramos todas as energias anteriores citadas, tanto as da
forma (ADSTRINGENTE, DOCE E AMARGA) quanto as do espírito, (CALOR E AMOR), as
quais estarão, segundo BOHEME, no SOM que sai da boca de todos, entre estes os
santos anjos, com suas melodias e canções, tornando, portanto, a palavra um ato
mágico, um ato de poder.
Para concluir a análise dessa qualidade, desafia-me o
sentido da palavra Mercúrio como sinônimo de SOM ou TOM, e cheguei a supor que
BOHEME se referia ao Mercúrio alquímico. Só que seus escritos contemplam outro
aspecto do saber esotérico, o estudo dos planetas segundo a ASTROLOGIA.
E lá,
encontramos que "Mercúrio é o símbolo da discriminação, o separador de
todo pensamento e consciência. Quando desperto, é santo e divino, mas pode
matar tão facilmente como pode criar."
Linguagem, a separadora de um pensamento em muitas partes, em muitas palavras
Esta definição (discriminador,
separador de pensamentos) me pareceu muito mais afim com a natureza do SOM, "poder Santo e Divino quando
desperto na forma da palavra, criador do
real e ao mesmo tempo, perigoso e mortal".
Passemos então a 7a e última qualidade ou espírito fonte: o
CORPUS, engendrado pelos outros seis espíritos fonte, qualidade na qual a
criação manifesta. Diz BOHEME que "ele é o verdadeiro espírito da
natureza, ou melhor, é a própria Natureza"na qual reside a apreensibilidade
ou tangibilidade e na qual, são formadas todas as criaturas no Céu e na
Terra".
E continua ele " Sim, o próprio céu é formado ali
dentro".
Isto demonstra que o CORPUS, ou Corpo, antes de um espírito
fonte, é a manifestação do conjunto das seis forças, e se as cinco forças
anteriores estão no SOM, a sexta, da mesma maneira as seis forças anteriores ao
CORPUS, manifestam-se nele, estão nele, o que o faz, como eu já disse, um
sinônimo do SALITRE. Porque então separá-lo em uma força à parte ao invés de
manter em seis o número das forças? Falávamos disto no início deste ensaio.
Boheme está descrevendo o que não pode ser visto, está tentando mostrar a outros
o invisível e explicar a si mesmo o que viu. AURORA é seu primeiro texto e ele
começa a ser escrito para que ele não esqueça o que viu nas primeiras três
iluminações. Digamos então que esta é uma primeira elaboração, que não busca
ser precisa, mas sim a mais elucidativa possível, e essas redundâncias em nada
prejudicam ou empobrecem este objetivo.
Talvez ele quisesse como tantos de sua época que as
qualidades fossem em número de sete para que respeitassem este vicio
numerologico esotérico de confundir o fato com o símbolo, de tal forma que
mesmo que o conjunto descrito seja de doze ou quarenta unidades, será descrito
como composto de sete apenas, número importante na simbologia, mas na maioria
das vezes apenas uma metáfora do real.
Dizer que a qualidade Corpo é diferente do conceito de
SALITRE é impossível quando o próprio BOHEME diz com sua boca que o Corpo
"é o verdadeiro espírito da Natureza, ou melhor, a própria Natureza."
Como o Salitre também é exatamente o mesmo, o conjunto das qualidades, ou o que
chamamos de Criação, temos sim uma redundância com a qual deveremos conviver e
aceitar. Lembremos que Natureza, aqui, para Boheme não é apenas o conjunto de
árvores, frutos, animais, Sol, Lua e estrelas, mas também o mundo celeste, com
seus Santos Anjos, já que essas qualidades descritas estão em DEUS e dele
emanam para criar TODAS, prestem atenção, TODAS AS COISAS, e não apenas as
coisas chamadas materiais e mundanas. Portanto o CORPUS lembra aquilo que foi
referido quando da analise da qualidade ADSTRINGENTE, de que ela, com suas
características centrípetas, de coesão, permitia o surgimento da forma onde
antes havia apenas energia pura. O que não quer dizer que esta forma tivesse a
mesma densidade em todas as partes do SALITRE, provavelmente sendo menos densa
nos céus e mais densa, pela ação de Lúcifer, na Terra.
Podemos sem equívoco
conceber que tanto a densidade quanto a dureza da qualidade ADSTRINGENTE obedecem
a uma intensificação energética ou "inflamação", proporcionalmente
mais alta a medida que a manifestação da existência ou da vida está mais
mergulhada no mundo terreno, e proporcionalmente menor a medida que ascendemos
ao mundo celeste. Assim a qualidade Corpo manifesta-se como estrutura
resultante do conjunto de todas as coisas da Criação, com áreas de densidade
diferentes, de acordo com o plano, celeste ou terrestre, que analisemos.
Por último, não poderia deixar de comentar algumas
sincronicidades Junguianas que percebi enquanto preparava este trabalho.
Referem-se ao fato de que, primeiro, BOHEME teve um
companheiro ilustre de século, embora não tenham sido contemporâneos.
Refiro-me a Isaac Luria, nascido em 1534 e morto em 1572,
apenas tres anos antes do nascimento de BOHEME.
Fiquei fascinado com o fato de que ambos consideraram dois
conceitos que, se não são iguais, pelo menos navegam nas mesmas águas.
O primeiro conceito refere-se aos movimentos envolvidos no
surgimento de Lúcifer, os quais estão descritos em BOHEME, em AURORA, no 13°
capítulo,
nos itens 116 e 117, aonde se lê:
"116: Quando Lúcifer adquiriu assim seu caráter real,
de modo que seu espírito elevou-se nele no ato de sua formação e configuração,
foi acolhido perfeita e amorosamente por Deus e colocado na glorificação; no
mesmo instante ele deveria ter começado sua obediência de maneira angélica, e
deveria ter se movido em Deus conforme Deus Se movera, como um filho querido na
casa de seu Pai. E foi o que ele não fez. 117: Mas quando sua luz foi
engendrada em seu coração e os espíritos fonte foram instantaneamente
impregnados e qualificados pela grande luz, eles foram tão viva e alegremente
afetados que se elevaram em seu corpo contra o direito da Natureza e começaram
uma qualificação mais alta, soberba e pomposa do que a de Deus".
E continua no item 119 e 120: "E o relâmpago poderoso,
grande e brilhante (...) atritou-se com a qualidade ADSTRINGENTE com tão
terrível força que era como se fosse despedaçar-se de tamanha alegria.Pois o
relâmpago foi tão brilhante, que era como que insuportável para os espíritos
fonte ( ou qualidades): por isso a qualidade AMARGA tremeu e se atritou tão
rudemente com a qualidade ADSTRINGENTE que o CALOR inflamou-se contra o direito
da Natureza e a qualidade ADSTRINGENTE
também secou a ÁGUA SUAVE com sua rude contração."
O que lembram essas palavras? Energia demais, resultado
desastroso. Luria também descreve um evento em que energia demais desceu de
Deus sobre os vasos das sefirot de tal forma que os vasos não suportaram a Luz
e também obtivemos desastre e estilhaçamento das luzes aprisionadas nos cacos
dos vasos rompidos, por toda a criação.
São conceitos diferentes? Sim, mas estes dois habitantes do
século XVI e XVII, por alguma razão, tentaram explicar o surgimento do Mal (BOHEME) e
a proliferação em muitas almas a partir da Alma única (Luria) por um mesmo,
vamos usar esta imagem,"erro divino": excesso de voltagem na Energia
utilizada, como se no princípio da Criação Deus estivesse testando a melhor
voltagem, e tenha usado, digamos assim, 220 volts aonde seriam necessários
apenas 110, colhendo com isso alguns acidentes de laboratório.
De toda forma ressaltemos que esta impressão é pessoal já
que "para Jacob Boehme e para a
Cabala não se tratou de um erro divino, de um excesso de voltagem, foi um
resultado da vontade livre de algumas das hierarquias criadas, que quiseram
receber a luz de maneira desmedida e não quiseram doá-la, fazendo com que os
"vasos" ou corpos espirituais "estourassem".
O outro conceito é da contratilidade.
Para ambos, Luria e BOHEME, o Altíssimo lançou mão de
energias contrácteis: BOHEME, com a descrição da qualidade ADSTRINGENTE,
centrípeta, para conseguir densidade e forma para as coisas; LURIA, com a
Contração Divina, que permite a formação do espaço da Criação, no movimento
conhecido como Tzim Tzum.
Pareceu-me curioso essas semelhanças, discretas, mas que
propõe que as imagens estavam no espaço e ambos valeram-se delas para descrever
suas visões de mundo.
Conceitos gerais sim, e talvez semelhança que esteja apenas
na minha mente, mas sem dúvida, algo curioso que não tive como deixar passar em
branco.
Enfim, esperemos que estas considerações possam suscitar curiosidade
suficiente em voces para que procurem meditar sobre os textos do Príncipe dos
Filósofos Divinos, de modo a perceber que, para BOHEME, o mistério da Vida não
é nem nunca foi, apenas, DOCE.