Multi pertransibunt et augebitur scientia (Muitos passarão, e o conhecimento aumentará).

sábado, 5 de setembro de 2015

CONSIDERAÇÕES SOBRE O ROMANTISMO NO DISCURSO MISTICO


Por Mario Sales


Nas reflexões que fiz no ensaio “Fé, Karma e Realização Pessoal”, pela primeira vez, de forma clara, percebi o dano que o discurso romântico traz ao pensamento místico. Em uma monografia de graus avançados, Spencer Lewis é claro: “O rosacrucianismo não é uma religião. ”
E, do ponto de vista psicológico, qualquer religião encarna uma romantização da espiritualidade, independente de que tal coisa seja ou não inevitável em determinada fase da aproximação de Deus, no sentido de que cria protocolos, ritos, dogmas, vestes para um fenômeno que, em si, não tem forma.
Só que a capacidade de viver um relacionamento místico com a Consciência Cósmica sem lhe dar contornos religiosos é muito, muito difícil.
Vemos isto, por exemplo, no que concerne aos chamados Mestres Cósmicos.
Muitos estudantes acreditam que seu papel em nossas vidas é semelhante aquele que os santos ou entidades simbólicas de credos religiosos os mais diversos têm.
Supõem, pois foi assim que aprenderam, que ao olhá-los, olham para seres sem passado, sem uma história humana, sem experiências pessoais e sociais, semelhantes aquelas que nos alegram ou constrangem todos os dias.
Porque assim os santos são vistos, como pessoas sem humanidade, sem erro, sem falhas.
Perfeitos, portanto. Daí sua santidade.
Esta é uma visão romantizada da construção da iluminação.
Ninguém alcança o cume sem arranhar-se em pedras pelo caminho, sem escorregar e se machucar, sem cansaço, sem crises de fé ou de impaciência.
As condições evolutivas são não só fatigantes como desgastantes. E isto nos testa, todo o tempo.
Testa principalmente nossa obstinação, nossa determinação em avançar, avançar sempre, na construção de uma realidade mais luminosa e digna espiritualmente.
A qualquer instante, diante de qualquer dificuldade, somos insistentemente convidados pelo cansaço e pelo desânimo a abandonar a subida, a desistir, a aceitar que tanto esforço assim é desnecessário e provavelmente inútil, já que os sinais de que estamos realmente progredindo não são claros nem constantes.
A voz do Adversário não é marcial, nem rude. Pelo contrário, convida-nos ao repouso, ao descanso, ao prazer. Sugere educadamente a dúvida quanto as nossas convicções.
No pensamento romântico do discípulo, do Chella, nenhum mestre atual, ou como Blavatsky os chama, nenhum estudante mais avançado, conheceu tais coisas.
Nasceu pronto, com sua luz transbordando por seus dedos, fruto de uma bênção do Cósmico, sem que houvesse um esforço de contrapartida.
É uma forma de estabelecer que jamais atingiremos esta perfeição, da mesma maneira que os religiosos apontam para o Cristo e dizem: “Ele era o filho de Deus; eu não sou. ”
A negação em entrar neste rol de personalidades que fazem esta humanidade um pouco melhor, em parte vem da preguiça, em parte vem de truques psicológicos com os quais a maioria das pessoas tentam se enganar a si próprias.
Não assumindo sua natureza divina, excluem-se da responsabilidade pelo Universo e por sua qualidade. 
São apenas, segundo sua visão romântica, seres sem importância no drama Cósmico e, portanto, não tem maiores responsabilidades senão sobreviver a cada dia dentro de suas, para eles, indiscutíveis limitações.
Como nas religiões, então, mestres e discípulos são como devotos e santos, separados pela enorme distância entre homens comuns e aqueles tocados pela graça de Deus.
Tudo assim, parece mais claro, mais definido, mais separado. Existe a área dos homens e mulheres comuns e aquela dos iluminados, e aqueles jamais tornar-se-ão estes, porque são o que são, de maneira estática e imutável.
É assim nas religiões. 
Muitos acham que no misticismo deve ser parecido.
Trata-se apenas e tão somente de um equívoco.
Todo místico é chamado a responder por toda a Humanidade, por toda a Criação e por sua qualidade.
Abster-se desta responsabilidade santa é contribuir por omissão para a piora da qualidade de vida de todos sobre a face da Terra.

quinta-feira, 3 de setembro de 2015

FÉ, KARMA E REALIZAÇÃO PESSOAL

Por Mario Sales



Fé, como confiança inabalável na intervenção de poderes divinos, é algo praticamente impossível.
Poucos seriam aqueles que poderíamos elencar entre os quais possuem ou possuíram este tipo de convicção, aonde o medo não tenha estado totalmente ausente, mas tenha sido de tal modo subjugado que não tenha sido capaz de gerar o surgimento da dúvida ou da ansiedade.
Se esta espécie de Fé, como eu disse, inabalável, fosse possível, traria consigo como corolário, a serenidade perfeita, total.
Só que não é assim. Serenidade total, pois, é um horizonte desejável, mas não um estado permanente, enquanto estamos em corpos frágeis, mortais e entre personalidades, digamos assim, não muito evoluídas.
Considerando estes aspectos óbvios da natureza da vida humana, vejo como produtos de uma época e de um tipo de visão de mundo, textos aonde a Fé é descrita, explicada e revelada como algo apreensível pela razão, e daí possível de ser posta em prática com a simplicidade de quem segue um manual.
A Fé, a confiança de que a Providencia Divina nos socorrerá pronta e rapidamente, talvez seja possível na ausência total de um pensamento crítico ou racional, o que equivaleria ao estado de inocência, descrito nas passagens bíblicas. Só que crianças, via de regra, não precisam rezar, já que suas existências, se forem minimamente normais, reproduzem um estado de harmonia com a natureza que perdemos enquanto envelhecemos e nos instruímos.
Quem recebeu alguma informação intelectual foi exposto também a valores, entre os quais a Fé em sua própria cultura intelectual. E isto significa, aprendeu a pensar e a ser prudente.
E manda a prudência que confiemos nas nossas experiências mais que em nossas crenças. Que nossas crenças sempre podem estar equivocadas enquanto a experiência demonstra um modo de ser do mundo que se tiver um caráter repetitivo e estável, como o ciclo dos dias e noites, deve merecer de nós toda confiança possível.
Místicos prudentes também confiam em suas experiências, não nas experiências externas, mas nas suas experiências internas. Sentimentos como amor, misericórdia, inveja, ira, compaixão, não são mensuráveis, palpáveis, mas são absolutamente perceptíveis e reais. É neste mundo interior emocional que o místico prudente faz seus estudos e aprofunda seu autoconhecimento, além de aperfeiçoar seu conhecimento da natureza humana em geral.
Assim entende que a Fé mais perfeita, como a do Cristo, que alegava que se a mesma fosse “do tamanho de um grão de mostarda e disséssemos a este Monte: “Move-te! ” ele se moveria” este mesmo Cristo é aquele que no Gólgota suava sangue de ansiedade, sabedor do sofrimento que em poucas horas o aguardava. Não havia nele falta de Fé, mas clareza de que, independente de nossa conexão com o Altíssimo, existem experiências desagradáveis, mas incontornáveis, que roubam a serenidade até de Altos Iniciados, quanto mais de pessoas comuns como nós, que “não somos dignos de desatar-lhes as sandálias”.
Faço estas considerações por motivos pessoais e pela leitura de um pequeno trecho da Lição XII, “A Força da Fé”, página 53, de um agradável livro de Francisco Valdomiro Lorenz, “Lições Práticas de Ocultismo Utilitário”, presente de meu querido amigo Inc.
“Poderia ser explicada”, diz o trecho” com maior clareza a força da fé? Porque, pois, há tanta gente, no mundo, que vive doente, pobre, miserável, ao passo que outros tem abastança, saúde, cultura? Quem vê estas coisas pelo prisma espiritual, reconhece que esse estado de coisas é devido a duas causas: o Karma, que é a Lei de Causa e Efeito, e regulariza as ações de uma ou mais encarnações; e a falta de verdadeira Fé na possibilidade dum melhoramento da situação. ”
A afirmação em si é contraditória. Por um lado, afirma que estamos sujeitos a Lei de Karma, afirmação com a qual concordo, mas insinua que esta sujeição determina nosso sucesso e insucesso; e por outro lado, alega que este mesmo sucesso e insucesso estão ligados a intensidade e qualidade de nossa Fé na providência divina. Existem, portanto, várias possibilidades: pessoas com bom Karma e pouca fé; bom Karma e muita fé; mal Karma e pouca fé; e mal Karma e muita fé.
Que alguém com bom Karma e muita Fé encontre serenidade e prosperidade material, compreende-se; mas o que dizer das pessoas com bom Karma e pouca fé? Serão serenas, ou a falta de Fé inviabiliza o bom Karma, como fatores que se anulam na equação?
Por outro lado, que adiantará pouca ou muita Fé se o Karma for mal?
A Fé a que o autor citado se refere é a Fé num Poder Maior, Espiritual. Penso, entretanto, em pessoas como Stephen Hawking, cujo Karma dificílimo de sofrer por toda a vida de uma doença degenerativa incurável não o impediu de ter uma existência produtiva, filhos, ocupar uma cátedra que pertenceu a Sir Isaac Newton, sem provavelmente jamais ter conhecido nenhum tipo de experiência religiosa. O Prof. Hawking é um homem de notável senso de Fé, mas sua Fé apoia-se na ciência, não em aspectos espirituais.
Este homem é um desafio para interpretações espiritualistas superficiais ou simplistas.
O que o manteve vivo e produtivo para além das previsões e das expectativas mais otimistas dos seus neurologistas foi sua extrema curiosidade e inteligência. Foi sua vontade de conhecer mais e mais a natureza do Universo que o manteve ligado a existência e a transformou em algo profundamente interessante, a tal ponto que a morte teve que esperar, e ainda espera, enquanto em sua cadeira de rodas adaptada ele sonha com números e buracos negros.
Lembrem a frase do autor do livro: “Porque, pois, há tanta gente, no mundo, que vive doente, pobre, miserável, ao passo que outros tem abastança, saúde, cultura? ”
Hawking funde estes aparentes opostos. Ele é um doente grave, mas nem é pobre, nem miserável, nem muito menos inculto e sua atividade mental é tão rica que não podemos muito menos negar-lhe grande saúde intelectual.
É a Fé espiritual que nos sustenta, é o Karma que nos derrota? Nem sempre.
O mundo interior humano é muito complexo.
Eu mesmo não viveria sem a minha Fé espiritual, sem a confiança que tenho em Deus, mas não acho que meu Karma seja melhor ou pior por isso, ou ao contrário, que um Karma bom ou mau determine a intensidade ou a qualidade de minha Fé na Providência Divina.
São forças autônomas, que às vezes se inter-relacionam, sem se determinar.
Todos, crentes ou não, com bons ou maus Karmas, devemos buscar serenidade em nossas existências e talvez aquilo que mais consiga nos dar serenidade seja tornarmo-nos, como lembrava Nietzsche, aquilo que somos, seguir nossa Physys, nossa natureza, e mergulharmos de cabeça neste talento especial que nos distingue, seja ele qual for.
Metas claras, definidas, e uma mente e um corpo harmônicos com nossas metas, talvez sejam o segredo da serenidade e de uma vida realizada e feliz.
A Espiritualidade e a Fé não são chaves para a felicidade, pelo contrário, podem ser um caminho de dor e angústia. Tudo depende de que o indivíduo respeite ou não sua própria natureza e se entregue a sua missão no mundo com paixão.
Mesmo que sua Fé seja apenas na Ciência é possível vislumbrar em sua existência lampejos do Eterno. 
A Santidade verdadeira, talvez, seja estar em paz consigo, apenas isso.
E o que poderia nos dar mais paz do que uma vida de realizações?
É algo em que se pensar.