Multi pertransibunt et augebitur scientia (Muitos passarão, e o conhecimento aumentará).

sexta-feira, 27 de outubro de 2017

O RESHIMO (A IMPRESSÃO)[1]

 [1]



"Após haver falado do TzimTzum, analisaremos agora aquilo que permaneceu no lugar donde se afastou a luz do Ein Sof. Por acaso, uma vez que a Luz Infinita se contraiu, ficou em seu lugar simplesmente um espaço vazio e oco?
O tzimtzum permitiu que a luz e o esplendor do Criador fossem percebidos, já que anteriormente, não podiam ser vistos. Essa luz que pode ver-se antes das sephirot e da formação dos mundos é conhecida como Reshimo, palavra derivada do vocábulo hebreu Roshem, que significa Impressão. Ou seja, se refere a impressão que ficou da luz, antes de ser contraída. O Reshimo assinala o lugar aonde existe toda a realidade, porque ele outorga existência a tudo, coisa que não podia proporcionar o ilimitado.
Em uma exegese desses conceitos pode falar-se do livro do Gênesis (28:10) aonde Rashi escreve a respeito: “Nos ensina que a partida de um homem justo de uma cidade deixa uma impressão”. A explicação é que apesar de que o justo abandone a cidade, fica uma impressão dele; em outros termos, a Santidade que irradiou durante o tempo que esteve ali, está ainda presente. Em todo lugar aonde reinou a Santidade, não é possível apaga-la e embora a fonte da mesma haja partido, sua impressão sempre permanece.
Logo depois do tzimtzum, quando o Criador retirou Sua luz ilimitada, ficou em seu lugar uma Santidade, que comparada com a que a precedeu, é como a obscuridade frente a luz, como a sombra do homem ante ele mesmo. No que nos diz respeito, essa luz é a fonte e raiz de toda a realidade, local de todos os mundos.
Isso assinala que antes do tzimtzum a luz do Ein Sof era completa, e que era impossível discriminar entre a Luz e a Luminosidade porque se anulavam ante a Luz do Ein Sof, tal como a luz de uma vela se anula frente a luz do sol.
O Eterno criou, em um primeiro momento, algo como um espaço vazio. Apesar de ter criado a realidade das sefirot sem a necessidade de fazê-lo por etapas, Ele quis criar os mundos de acordo com a natureza dos seres criados, ou seja, passo a passo. Então, antes de emanar as sephirot, criou o Reshimo, que é a raiz da realidade futura.
Agora compreendemos como esta progressão gradual foi estabelecida desde o princípio. O criador quis continuar uma Ordem “concatenada” (em que uma coisa se liga e se desprende da outra) na qual Sua luze o esplendor de Sua Santidade aparecem no mesmo nível.
No Reshimo encontra-se enraizado o futuro da realidade em sua totalidade."




[1] El Zohar, Tópicos de la Cabala, 3ª parte, capítulo 2, página 59 a 61, Ediciones Obelisco, 2006, Projeto Amós, Barcelona, Espanha.

terça-feira, 24 de outubro de 2017

OBSTÁCULOS AO ENTENDIMENTO




Por Mario Sales




Flavio leu e comentou o post sobre a lógica peculiar dos textos de Cabala. Disse que o texto “está de acordo com nossas conversas, porém para o blog fica um tanto difícil entender, uma vez que é um texto pouquíssimo difundido e entendido por um número restrito de pessoas”.

Fato. O assunto é árido.

Para acompanhar meu raciocínio ou mesmo minha perplexidade é preciso ler o Sepher Bahir e o Sepher Yetzirá como também a Doutrina Secreta. Não é assunto corriqueiro ou banal. Estamos falando dos textos fundamentais do esoterismo.

E existem outros.

Nosso projeto é estudar às sextas Cabalá e continuar às quartas revendo textos de Blavatsky, como este que estamos trabalhando “Ísis sem Véu”.



Temos interesse em ler os Upanishads, que em sânscrito quer dizer “aos pés do mestre”, comentários feitos aos Vedas, os textos raiz do Hinduísmo.

Ou seja, temos trabalho para mais de uma encarnação.

Não existe tristeza ou desanimo quando temos um objetivo definido.

Eu queria ser mais didático no post, mas confesso que me deixei levar, ingenuamente, pelo entusiasmo. Logo eu que sou um militante da causa do esclarecimento e da facilitação do acesso ao conhecimento.

O que me vem à mente é que uma facilitação de compreensão passa por um domínio profundo dos temas abordados, coisa que eu ainda não tenho.



Foi de 2005 para cá, desde a minha iniciação no Martinismo da TOM (Tradicional Ordem Martinista) que a Cabala começou a me interessar.

São apenas doze anos estudando e dada a complexidade do assunto e a lentidão do meu intelecto, acho pouco.

É mais ou menos como os textos de Jacob Boheme. Comecei a ler Jacob por Aurora, seu primeiro livro, no ano 2000, se não me falha a memória, talvez motivado por uma entrevista do músico Lobão. Era mais curiosidade. A dificuldade era tão grande de acompanhar seu raciocínio que o livro me caiu das mãos, e ficou na biblioteca, encostado.

Ao entrar na Martinista, vi que o nome de Boheme era repetido com respeito e veneração pelos irmãos mais antigos. Falavam da importância e da influência que seu trabalho possuía na linha do tempo esotérica, tendo marcado muitos autores, um deles Louis Claude de Saint Martin, que dá o nome à Ordem. O que notei, no entanto, é que, embora todos concordassem com sua importância, não conseguiam me passar seus conceitos básicos.

Quando eu perguntava sobre quais eram os assuntos que ele se debruçara, via de regra me respondiam de forma vaga, imprecisa, com frases do tipo “ele escreve sobre espiritualidade de modo muito profundo”, o que para mim era como dizer que ele escrevia sobre cavalos, sem especificação da raça, do porte, da cor do cavalo, se sobre a criação de cavalos ou sobre a arte da equitação.

O esoterismo tem este problema. Existem textos dos quais a maioria das pessoas fala sem absolutamente ter folheado que seja suas páginas.

É como o dificílimo texto de Martinez de Pasqualy, “Tratado da Reintegração dos Seres”.

Fui informado de que há um curso regular na Loja São Paulo da AMORC sobre o mesmo e gostaria de poder assisti-lo.

Quando tentei lê-lo fui assombrado pelas dificuldades de acompanhar um pensamento de outras épocas, redigido de forma obscura e às vezes enigmáticas.

Fui salvo pelo esquema do livro feito por seu secretário, L.C. de Saint Martin, aonde as concepções ficaram claras como o dia.

Se o esquema realmente reflete as idéias do livro com fidelidade, posso dizer que conheço o pensamento de Pasqualy no Tratado, mas apenas porque fui auxiliado pelo Quadro Sinóptico feito por Saint Martin.

Gostaria de fazer o mesmo com o Bahir, mas isto implicaria em um esforço para o qual ainda não me sinto pronto, mesmo com o auxílio das explicações de Arieh Kaplan.

Escrever sobre o assunto me ajuda a fixar e refletir sobre os conceitos que estudo.

Minha mais importante razão, no entanto, ao descrever minhas angústias de leitor, minhas dificuldades hermenêuticas compreensíveis em relação a estes textos é dividir com mentes afins, com interesses comuns, que são na minha fantasia, o tipo de pessoas que vem ao blog, e arrancar deles alguma manifestação que me ajude e que ajude a eles a lidar com estes obstáculos interpretativos, posto que a maioria dos esoteristas está lendo (ou não) estes textos e não dando aulas sobre eles.

São poucas as manifestações, entretanto.

O que me leva a pensar que não são muitos os que estão trabalhando, estudando e interpretando esses textos. E aqueles que estão talvez não leiam o blog.

Estas são apenas hipóteses, difíceis de comprovar.

Eu penso escrevendo.

Provavelmente, nem todo mundo é assim. E embora estejam na mesma lida, não querem ou não sabem como compartilhar suas dificuldades, seus obstáculos.

O certo é que ler junto com outras pessoas é muito animador e nos protege da falta de determinação. Que nosso grupo de estudos prossiga por muitos anos, se o Altíssimo permitir.

sábado, 21 de outubro de 2017

A ESTRANHA LOGICA DOS TEXTOS TRADICIONAIS DE CABALÁ

por Mario Sales


“Qual é o significado da expressão: ´elevou-se no pensamento`? Porque não dizemos ´desceu [no pensamento]?
De fato, dissemos: ´Aquele que fita a visão da Carruagem primeiro desce, depois ascende`.
Usamos aqui a expressão [ de descer] porque dizemos: ´Aquele que fita a visão (tzafiat) da Carruagem. ` (...).
Aqui, todavia, falamos do pensamento, [e, por isso, fala-se apenas de ascensão]. Pois o pensamento não inclui visão alguma e não tem qualquer final. E, tudo aquilo que não tenha nenhum final ou limite, não tem descida alguma.
Por isso, dizem: ´Alguém desceu ao limite do conhecimento de seu amigo`. Pode-se chegar ao limite do conhecimento de uma pessoa, mas não ao limite de seu pensamento. ”
Sepher Bahir, comentado por Arieh Kaplan, 1980, Imago Editora, versículo 88, págs. 58 e 59.


Capa do Bahir, no original



Quem já se aventurou a ler “A Doutrina Secreta”, o colossal trabalho de H.P.Blavatsky, sabe o que é estudar um texto obscuro. A linguagem do século XIX, as características da escritora, espontaneamente prolixa e labiríntica nas suas dissertações, as inúmeras interrupções na linha de pensamento para longas explicações sobre trechos pouco importantes, combatem aqueles cujo único objetivo é extrair deste vasto material alguma informação ou sentido.
Ler o Bahir, como de resto o Sepher Yetzirá, esbarra em problemas um pouco maiores.
Não se trata apenas de que seu autor (Isaac, O cego, ou outro) ter ou não um pensamento claro e uma linha de raciocínio retilínea, cujas conclusões nos pareçam coerentes com as propostas. Muitas vezes não sabemos do que o autor está falando, o que nos remete a uma questão fundamental ao estudante de Cabalá não judeu.
Toda a ramificação da cultura judaica tem duas raízes: de um lado, a Torah e o Talmude; de outro lado o cotidiano da vida judaica, suas práticas religiosas e crenças.
Aqueles que se interessam pelo estudo da Cabalá e não são judeus, podem, obvio estudar a Torah e ler o Talmude inteirando-se de suas imagens e conceitos; mas pelo fato de não terem vivenciado o ambiente familiar de uma família ou comunidade judaica, sente uma forte sensação de estranhamento ao se deparar com textos que, além da distância histórica no tempo apresentam peculiaridades de encadeamento de ideias próprias desta cultura.
Mesmo entre judeus, nem todos têm, ou interesse, ou capacidade para estudar Cabalá.
É preciso que, primeiramente, o interessado tenha uma forte motivação pessoal, um perfil compatível com horas e horas de leitura e interpretação e a paciência características dos exegetas em uma vez contemplando um texto estranho e obscuro, não ceder à tentação de abandoná-lo, esforçando-se em descobrir o código que o fundamenta.
Porque este código existe.
Os textos cabalísticos são difíceis de ser interpretados primeiro porque são textos de épocas em que o espírito didático não era prioritário ao escritor, e segundo, porque tais textos foram escritos por cima de uma cultura fortemente baseada na Torah e no Talmude.
E ainda existe um terceiro motivo para o esoterismo de tais textos: sua lógica interna é peculiar e em nada segue o cânone grego de pensamento, que produziu preciosidades como “Todos os homens são mortais; Sócrates é homem, logo Sócrates é mortal. ”
Não. As frases são caracterizadas por terem aparentemente um nascimento semelhante ao das Sephirot, como descrito no Sepher Yetzirá, “ Dez Sephirot do Nada”, como representação da ideia de que as Sephirot são manifestações puramente conceituais e diáfanas, sem natureza alguma material.




Rabino Arieh  Kaplan

Como no trecho acima: “Aquele que fita a visão da Carruagem primeiro desce, depois ascende. ”
Ou na pergunta: “Qual é o significado da expressão: ´elevou-se no pensamento`? Porque não dizemos ´desceu` [no pensamento]? ”

Salvo questões inerentes as imperfeições de tradução do original em inglês, problema ao qual todo leitor deve estar atento, no esforço de esclarecer este enigma, o Rabino Arieh Kaplan explica que “O conceito de pensamento é igual ao de “acima”. Não importa o quão alto se alcance, pode-se ir mais além. ” E conclui: “Por isso a palavra “elevar” é empregada”.

Ao longo de sua explicação[1] o Rabino Kaplan dissertará sobre a natureza do pensamento, a impossibilidade de compreender a natureza da mente que pensa, o simbolismo da expressão “Merkavah-Carruagem” como um exercício de vidência espiritual,(já que se refere a esta prática pré-Cabalística que durou do século II AC até o século VIII DC, aonde místicos judeus, baseados na visão do livro de Ezequiel, 1, 1-28, através da meditação, se elevavam espiritualmente a níveis que eles chamavam de Palácios, em número de sete, sendo que o sétimo palácio representaria o encontro com a Divindade).

Sem essa explicação a expressão “fitar a visão da Carruagem...” não parece compreensível. Ainda mais porque na publicação, a expressão vem com o termo “visão” em letras minúsculas, e “Carruagem” em letras maiúsculas, como se fossem coisas diferentes. Um problema da tradução e não do texto.

A expressão precisa também ser elaborada pelo leitor neófito, entendendo e extrapolando que carruagem significa transporte, e que na época seria um símbolo adequado do ato de transportar-se através da meditação, à níveis mais elevados.
Explicado que “fitar a Visão da Carruagem”, portanto, é uma expressão que designa um ato de percepção de uma expressão do divino, conseguida durante o estado de Epifania pelos místicos judeus, o rabino Kaplan explica a natureza do fenômeno da vidência espiritual e das Sephirot associadas ao fenômeno.

Em nenhum momento, no entanto, ele esclarece por que o indagador do versículo se espanta por não se usar a expressão “desceu no pensamento”, ou porque, no versículo, é dito “Aquele que fita a Visão da Carruagem, primeiro desce, depois ascende. ”
Seguindo a peculiar forma de pensar dos versículos do Bahir, dever-se-ia atentar para o significado da expressão “primeiro desce”. Isto, no entanto, não é discutido.
As perguntas, dos discípulos que em princípio estão interrogando o mestre Nehuniá Bem Hakaná, são tanto ingênuas quanto profundas e suas perplexidades inexplicáveis. As respostas, da mesma forma, não são esclarecedoras, como se esperaria de um texto que se diz “O Livro da Iluminação”.

Linha por linha, o conhecimento se oculta em um código de conceitos e visões de mundo típicas da cultura judaica e da época em que foi redigido, duas camadas a serem penetradas pelo leitor-interpretador, um exercício de fôlego e paciência.
Nos comentários do Rabino Kaplan conseguimos um importante suporte neste esforço, sem o qual seria impossível compreender o que significa realmente o que está escrito em cada trecho deste importante texto de Cabalá. Mesmo assim não é suficiente, como de resto nenhuma explicação conseguiria ser. Já que se trata de um livro acerca do mais profundo conhecimento do judaísmo, a interpretação desafia aquele que à ela se dedica, principalmente se este não deseja, por pura precipitação, extrair sentidos equivocados do texto.
Some-se a isso a peculiar maneira de encadear ideias que observamos ao ler passagens como esta cima.

E este não é o melhor nem o mais complexo exemplo. Há outros, mais instigantes.
Como no versículo 79, no trecho que diz:

“O ouvido é, também, infinito, e nunca saciado. Está, portanto, escrito (Eclesiastes 1:8): “O ouvido não se farta de ouvir. ”

E em seguida, conclui:
“Porque é assim? Porque o ouvido tem a forma do Alef. (...). Por isso o ouvido não se farta de ouvir. ”

Uma conclusão esotérica, no mínimo, já que o ouvido não tem a forma do Alef, fato que dá uma pálida ideia daquilo que aguarda os bravos exploradores de textos cabalísticos.
Mais esotérico ainda é o fato do Rabi Kaplan não confirmar ou mesmo tecer considerações sobre esta estranha semelhança declarada no texto.

Kaplan diz: “A visão e a audição correspondem, respectivamente, a Chochmá- Sabedoria e Biná-Compreensão. Podemos apreender o Divino com compreensão, mas não com Sabedoria. O nível mais elevado de nossa compreensão é, portanto, Biná-Compreensão, o nível do ouvido, mas mesmo aqui existe um reflexo de Kether- Coroa, no Alef do ouvido (Ozen).”







O que eu quero evidenciar aqui é que, mesmo seguindo os complicados códigos da Cabalá, não se encontra um sentido ou uma relação entre Aleph e Ouvido (Ozen) , já que, como vimos, Aleph corresponde a Keter-Coroa e o Ouvido a Biná-Compreensão.
Para resolver a contradição, Kaplan usa um recurso no mínimo curioso, criando uma conexão em princípio não existente com o seguinte raciocínio:
“O nível mais elevado de nossa compreensão é, portanto, Biná-Compreensão, no nível do Ouvido, mas, mesmo aqui, existe um reflexo de Keter-Coroa no Alef de Ozen (do Ouvido)
É esta a explicação, a ligação está em um reflexo que aparentemente saiu da cartola de Kaplan. E está feita a correlação.
A explicação, portanto, esclarece alguns pontos e deixa outros obscuros, mesmo que estejamos falando da mais didática autoridade em seu tempo sobre conhecimento da Cabalá.
Sua morte precoce, de ataque cardíaco em sua casa, privou estudantes de todo mundo de sua visão e esforço para tornar estes textos fundamentais da cultura judaica acessíveis a judeus e não judeus.
Mesmo assim, trechos e versículos dos livros clássicos sobre Cabalá ainda carecem de uma interpretação mais completa e mais compreensível para aqueles que como nós pensam, não como um judeu, mas como um grego.
Superemos este problema. Estas leituras, de qualquer forma, devem ser feitas com o cérebro e com a alma, na esperança da que a intuição nos forneça a informação que o intelecto, às vezes, não consegue dar.




[1] Bahir, O Livro da Iluminação, 1980, Ed. Imago, pág 185