Por Mario Sales
Escrever sobre não poder escrever é estranho.
Sempre reputei esses textos que são feitos para quebrar os períodos de bloqueio criativo como ruins, no mínimo, pois são como uma máquina oxidada pela falta de uso que range quando começa a funcionar; que aquece, produz fumaça, expelindo por seus exaustores o pó dos meses ou anos de inatividade.
São textos por isso difíceis, sem inspiração, sem beleza; exercícios de quem há muito está sedentário. É preciso ir, portanto, devagar, e por isso talvez eu escreva esses textos inicialmente a mão, no papel, não no processador de texto. Quando escrevemos no papel, mesmo que o façamos com rapidez, gastamos mais tempo na representação da ideia e da palavra que a representa. Isso torna a elaboração mais cuidadosa, apurada, como a areia que é peneirada torna-se um conjunto de natureza mais suave.
Esta pode ser a ideia-força desses textos: peneirar ideias e emoções; peneirar as representações linguísticas destas percepções, garantindo volume, página por página, na tentativa às vezes malsucedida de fingir uma produção farta e fácil de imagens e conceitos.
Se supomos assim parecer produtivos, é um ledo engano. Um observador-leitor mais perspicaz logo percebe as voltas que o texto dá, como se buscasse (e busca) orientação e direção em meio às possibilidades.
Já fazem meses que não consigo com regularidade escrever qualquer coisa numa clara demonstração de que escrever de ter ideias para um texto são coisas e fases completamente distintas no intelecto, e isso porque as ideias existem, só que transformá-las em palavras, em frases como esta, é praticamente impossível, ora por falta de ânimo e vontade, ora por falta de memória para guardar e elaborar sobre uma inspiração qualquer ou uma perplexidade que seja, em meio ao cotidiano.
Não sou um escritor profissional.
Não vivo de meus textos, mas meus textos são um sinal de vida em mim, e talvez a fadiga mental que impede o trabalho literário possa ser chamada de “a pequena morte”, uma condição que como o sono simula como nos cadáveres, a ausência de interação com o mundo e com as pessoas coisa que, para Espinosa, definiria a nossa existência e mesmo uma noção mais clara do que e de quem somos. Ao contrário do pensamento sartreano, o outro é fundamental a nossa vida, não apenas uma fonte de angústia (ou o inferno, em suas palavras), mas de uma angústia criativa como as contrações dolorosas do parto que necessariamente antecedem o nascimento.
Alguém já comentou que a felicidade não gera a boa literatura ou uma arte apreciável. É preciso angústia para extrair de nosso inconsciente o produto de nossa reflexão mais profunda. Nas palavras do professor Rubem Alves, “ostra feliz não faz pérola” e aqui, é bom deixar claro que a angústia não se opõe a felicidade pois o ato de criar, seja na música ou na literatura, também tem seu próprio grau de prazer. Digamos que a felicidade improdutiva se opõe, não à infelicidade, mas à felicidade produtiva, uma outra maneira de ser feliz no mundo.
Desde que produzamos algo realmente significativo, tanto para nós como para todos à nossa volta, seja um projeto de uma bela casa, o entalhe de uma bela porta de madeira ou um texto realmente inspirador, produzimos beleza, uma beleza que enriquece a quem a produz, tanto quanto aquele que a contempla, e que dela desfruta.
Para recorrer a um lugar comum, agora oportuno, “nem só de pão vive o homem”. Alimentamo-nos do deleite e só a arte, seja nos violinos e pianos, seja nas páginas de um livro, pode provocar este tipo profundo de satisfação em nós.
A arte é um serviço que o artista presta a toda a humanidade e embora seja uma atividade egocêntrica ela salta do indivíduo para o coletivo, espalhando-se como um incêndio em uma poça de óleo.
Artistas são faíscas fundamentais no incêndio das emoções. Sem eles nossa vida seria apática, insossa e inexpressiva, para usar uma palavra melhor. Viver é perceber e expressar, nas nossas possibilidades, o percebido.
Expressar a beleza da existência com competência gera encantamento.
A arte, portanto, como a magia, é feita de encantos, e a palavra sempre foi a ferramenta da magia.
Talvez só assim se compreenda a importância dos textos.
Tanto para quem os produz quanto para aqueles que os desfrutam.
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