Multi pertransibunt et augebitur scientia (Muitos passarão, e o conhecimento aumentará).

sexta-feira, 4 de setembro de 2020

A SINDROME DE DOM QUIXOTE

 Por Mario Sales


 



“O protagonista da obra é Dom Quixote, um pequeno fidalgo castelhano que perdeu a razão por muita leitura de romances de cavalaria e pretende imitar seus heróis preferidos. O romance narra as suas aventuras em companhia de Sancho Pança, seu fiel amigo e companheiro, que tem uma visão mais realista. A ação gira em torno das três incursões da dupla por terras da Mancha, de Aração e da atalunha. Nessas incursões, ele se envolve em uma série de aventuras, mas suas fantasias são sempre desmentidas pela dura realidade. … O encanto da obra nasce do descompasso entre o idealismo do protagonista e a realidade na qual ele atua. Cem anos antes, Quixote teria sido um herói a mais nas crônicas ou romances de cavalaria, mas ele havia se enganado de século.” 
Enredo de Dom Quixote de La Mancha, da Wikipédia

“A história prefere lendas, ao invés dos homens; prefere a brutalidade à nobreza; discursos inflamados ao invés de boas ações silenciosas. A história se lembra da batalha, mas esquece do sangue.”
Citação do personagem Abraham Lincoln no filme "A. Lincoln, o caçador de vampiros"

Cervantes era um gênio literário e provou isso discutindo a dicotomia entre fantasia e realidade com humor e elegância. Curiosamente, usou os contos de cavalaria para falar deste assunto delicado, pois como dizer a alguém que ele vive de sonhos e não ser rude ou deselegante, senão através do riso?

O riso nos liberta das tensões. Quem ri não tem espaço afetivo para o ódio ou a desconfiança. Provocar o riso desarma os espíritos de forma mais eficiente que a ameaça ou através do confronto.

Penso em Cervantes quando vejo o culto contemporâneo entre esoteristas aos costumes de cavalaria, principalmente quando relacionam essas Ordens de Cavalaria às Ordens Esotéricas.

Entre os maçons é conhecido o desejo de pertencer uma tradição desse gênero, simplesmente pela vaidade que isto traz como bagagem. Veja-se o caso do Cavaleiro de Ramsay[1], um individuo sem provas de sua alegada descendência nobre, mas que incendiou as mentes impressionáveis de burgueses e políticos que estavam na Ordem Maçonica em uma época onde o ócio e a falta de motivação social tornava já inviável uma vida de aventuras viris ou mesmo segurar e conseguir levantar os espadagões usados pelos verdadeiros cavaleiros, aqueles que foram dizimados por Felipe IV , o Belo , que mandou queimar Jaques de Molay, o ultimo cruzado, em 1314.

Quatrocentos anos depois Ransay, e como eu disse sem apresentar documentos históricos que o sustentassem, afirma a Origem Maçônica nas Ordens de cavalaria, e não nas guildas de pedreiros de Londres.

Uma proposta tão sedutora foi imediatamente aclamada como verdadeira, como é comum os maçons aclamarem tudo que é vago e obscuro com palavras pomposas e elogios.

Cervantes, se estivesse presente, cairia no chão às gargalhadas. Sua obra é de 1605, pelo menos a primeira parte. O discurso de Ramsay alegando a origem maçônica nas Ordens de Cavalaria é de 1738. Mais de um século antes, Cervantes havia alertado que a cabeça vai sempre mais rápido do que o corpo e mesmo assim, Ramsay foi aplaudido e suas teses, as mais descabidas, aceitas como legitima expressão da verdade histórica. Ninguém quer ser pedreiro e construir catedrais se, sem ter que levantar, não uma espada, mas um simples punhal, puder ser cavaleiro.

A idéia de uma armadura reluzente, de um belo e imponente cavalo, mesmo que presentes apenas na imaginação, seduziram milhares de maçons pelo mundo naquela época e séculos depois.

Agora, a doença já descrita no Eclesiastes atinge a rosacruz. Vemos nos materiais de propaganda da Ordem cada vez mais imagens de cavaleiros ajoelhados, com o símbolo da AMORC ao lado, como se nossa história não fosse exatamente oposta ao confronto físico e voltada para a pesquisa silenciosa e solitária em laboratórios de alquimia e bibliotecas.

Existem fantasias absolutamente seguras, incapazes de trazer danos ao sonhador, e que alimentam os momentos de ócio, ou aproveitam tais momentos para imergir do subconsciente e esfumaçar-se frente aos nossos olhos.

Existem outras, porém, que se tornam obsessivas e perigosas por sua intensidade e pelos outros aspectos que propagam com sua presença.

Entende-se que hoje, vistas de nossa época dita civilizada, as Ordens de Cavalaria possam parecer redutos de nobreza e dignidade. Na verdade, ordens como os Cruzados ou a Ordem de Malta, sua rival, eram como se sabe, grupos para militares, formados com a intenção de proteger os peregrinos que iam para Jerusalém, ou para proteger a própria Jerusalém, quando no período de domínio cristão.

E esta “proteção” implicava o combate sanguinário e violento, com chacinas de parte a parte, os quais, segundo relatos, eram mais comuns serem protagonizados por cavaleiros cristãos contra civis muçulmanos do que cavaleiros muçulmanos contra civis cristãos. A crueldade Ocidental sempre foi notória.

As Ordens de Cavalaria não são como a fantasia atual supõe, defensoras do que era nobre e justo, e embora sua bandeira carregasse a cruz do Cristo, sua finalidade operacional era proteger bens e valores dos comerciantes que se arriscavam a fazer a trilha Europa-Oriente. Não é por outra razão que os inventores do conhecido “cheque” tenham sido os próprios templários. A fim de proteger tesouros de ladrões, em vez de carregarem ouro e jóias, os peregrinos recebiam um papel que os autorizava a sacar quando chegasse a Jerusalém, mediante sua apresentação, um valor equivalente ao que era depositado no seu país europeu de origem, antes da viagem. Aqueles hoje aclamados como defensores da Cruz foram os inventores do sistema bancário, sistema este construído e mantido mediante o emprego de uma força militar fortemente armada.

E são esses personagens que hoje, estranhamente, são cultuados como símbolos da espiritualidade.

Violentos, as vezes cruéis, ambiciosos, acumularam grande fortuna, e serviram a reis e à Igreja. Não eram defensores dos valores da fé, mas sim dos interesses financeiros e territoriais europeus.

Mesmo assim, incendeiam a imaginação dos nossos contemporâneos, que acham por bem vê-los como símbolos de um ideal de cortesia e nobreza.

Como sempre, neste mundo medíocre, são heróis os que sabem matar com espadas, não os que sabem pensar ou amar.

Cientistas sempre serão os vilões das historias em quadrinhos e os heróis serão musculosos, ou , como no caso do Hulk, cientistas só passam a ser heróis quando se transformam em bestas gigantes esverdeadas que falam com dificuldade.

Nobre, heroico, portanto, é a besta, não o pensador, não o esoterista.

Cervantes com certeza daria gargalhadas de nossos rosacruzes contemporâneos, que tendo em sua linhagem histórica nomes como Bacon, Leibnitz, Paracelso, Newton, Erick Satie e Debussy, tornam símbolos de nossa amada e pacífica Ordem membros de um grupo para militar de banqueiros internacionais.

Estes são, no entanto, os sintomas da “Síndrome de Dom Quixote”, aquela que faz leitores de romances começarem a acreditar que eles mesmos sejam os personagens sobre os quais lêem.

Por isso é tão difícil ver místicos equilibrados, já que ao contrário da imaginação ativa, que exige organização e treino, a maioria prefere a fantasia desordenada e caótica que não tem compromissos com o bom senso e que aceita qualquer papel ou enredo.

Talvez esse seja o nosso calcanhar de Aquiles.

Oremos e Vigiemos.



[1] “André Michel de Ramsay, escocês de Ayr, plebeu com fumaças de aristocracia, aportou na França depois de alijado da Maçonaria de sua pátria, por insistir em criar graus cavalheirescos. Na França, satisfez a sua ânsia de nobreza, ao ser recebido como cavaleiro da Ordem de São Lázaro (Chévalier de Saint Lazare). E tão agradecido ficou que produziu em 1737, um discurso onde pretendia aristocratizar a Maçonaria, ligando-a aos nobres das Cruzadas, o que é pura lenda.” (https://opontodentrocirculo.com/2015/09/02/o-discurso-de-ramsay/)


quarta-feira, 2 de setembro de 2020

CLAREZA

 Por Mario Sales


CARL SAGAN



Nos convites que recebo no ambiente da Pandemia, para fazer comentários para lojas Rosacruzes ao longo do país, existe sempre um toque de ansiedade e receio.Parece que no blog me sinto amparado pelas letras, sua estabilidade, o fato de poderem ser consultadas e reinterpretadas mais de uma vez, a proteção de uma pontuação com vírgulas e aspas que me auxiliam a enfatizar e destacar aquilo que seja necessário para a melhor transmissão da idéia, mas que também guie a leitura de quem vai ao texto, dizendo quando respirar, quando hesitar, antes de continuar a leitura.

Na fala via internet, na apresentação ao vivo, nem sempre temos este tipo de controle.

Existe sempre a sombra do equívoco por trás do que se diz, o perigo de ser mal interpretado ou, ainda, de ser corretamente interpretado e ter um feedback não muito agradável com o qual tem que se lidar em tempo real.

Na fase em que estou ando avesso a discussões e debates. Aliás faz anos que tais coisas me causam profundo tedio.

Aprendi que o debate pressupõe que eu posso convencer alguém de algo que ele não quer ouvir falar.

Lembro-me nessas reflexões da frase de Lacan sobre relações romântico amorosas em que afirma que amar é procurar “dar o que não se tem a alguém que não quer receber”, o que transforma o exercício do relacionamento romântico em um caos previsível e inevitável de sentimentos.

Os debates filosóficos são da mesma natureza. As pessoas amam suas posições pessoais acerca dos vários assuntos que possam considerar, sentem-se seguras em relação as suas conclusões e contrariá-las é causar desconforto na maioria das vezes, é mostrar-se aparentemente hostil ao seu modo de ser e por isso o antagonista filosófico deixa de ser um mero adversário de ideias para se tornar um inimigo mortal, ou algo perto disso na vida social.

Isso é muito cansativo. Existem muito poucas pessoas que anseiam por novas perspectivas da realidade, que concedem todo o tempo a outros a possibilidade de mudar suas posições, desde que lhe apresentem argumentos plausíveis acompanhados de preferência de demonstrações empíricas que os sustentem.

Estão de cabeça aberta ao todo, claro que não tão abertas, como advertia Sagan, com humor, que o cérebro caia, mas dispostas e ansiosas para conhecer novos e enriquecedores pontos de vista.

A maioria dos seres humanos não é assim, infelizmente.

Abrigam em seus corações a pior de todas as crenças: de que o mundo é estável e de que aquilo que é verdade hoje deverá continuar a ser verdade amanhã.

Essa rigidez mental causa muito sofrimento para o próprio indivíduo e para terceiros e é algo inadministrável, ela impede o fluxo dos fatos e da história, o fluxo das ideias e das interpretações, e ausência de fluxo, como todos sabem, é morte.

Indivíduos com posturas rígidas são sempre como zumbis espirituais, mortos que caminham.

Viver é respirar, e respirar é desfazer-se do ar usado para poder respirar um ar novo e fresco.

Ninguém inspira sem antes expirar, com desapego ao ar que se vai, sem tristeza por sua partida.

Sem essa troca constante do velho pelo novo as coisas não continuam a ser como sempre foram.

A eternidade, para ser eterna, se alterna.

Nenhuma propagação de onda viva é linear já que como lembrava Mario Quintana, “a linha reta é um traço sem imaginação”.

Tudo pulsa, tudo vibra, tudo oscila.

E pessoas rígidas de pensamento tendem a desaparecer na poeira, como troncos de árvore queimadas, mortas e escuras se desfazem com o vento.

Conhecedor desses fatos, não tenho nenhuma atração pelo chamado “debate de convencimento do outro”, embora esteja sempre ansioso por descobrir posturas diferentes da minha.

Mas nesse caso as pessoas não precisam estar presentes. Seus textos falam por elas.

Livros são bons interlocutores pois explicam calma e detalhadamente seus pontos de vista sem que possamos interrompê-los em sua exposição.

Os livros nos disciplinam, nos ensinam o silencio e atenção, nos mostram como ouvir, quietos, outros pensamentos que não os nossos.

E assim podemos discutir com pessoas vivas ou não, sobre suas posições e ideias de mundo, sem que haja qualquer risco de confronto neste conflito.

Exposições presenciais não são assim.

E por isso acho que interromperei minhas contribuições nesse sentido.

Minhas posições, eu as exponho aqui, no blog, desde 2010.

Alguns as considerarão relevantes, concordando ou não com elas; outros, como é natural, rechaçarão meus argumentos, como descabidos, mas tudo dentro do espírito elegante do debate das idéias, sem momentos de tensão, sem constrangimentos.

Esses ensaios, aliás, me permitem realizar algo como uma correspondência com centenas de pessoas simultaneamente. É triste que o hábito de escrever tenha cessado entre as pessoas e que escrever pouco e superficialmente tenha se tornado uma virtude.

Ler uma carta implicava um ritual semelhante ao do livro, em que éramos obrigados a ouvir o outro, sem interrompê-lo, até que ele encerrasse sua linha de raciocínio. Agora, as conversas são telegráficas e banais, muitas vezes sem respeito as regras da gramatica, sem pontuação que nos ajude a acompanhar o ritmo da pessoa que nos escreveu aquele bilhete. Aliás, escrever tornou-se algo cansativo, irritante, e a opção preferencial pela fala gravada, os famosos áudios, mostra esta disposição.

Paciência. A linguagem é, antes de um monumento estático, um ambiente vivo de relacionamento.

Como tal se modifica de tempos em tempos, tanto na forma como no conteúdo.

Nosso papel é acompanhá-la, com humildade, embora na minha opinião não devemos abrir mão do esforço de explanar nossos sentimentos e ideias com clareza e isso, só o texto, organizado e gramaticalmente correto, permite.

É melhor escrever que falar. E se falar, falemos com o auxílio do texto, lendo-o, falando com a tranquilidade de quem pensou antes o que deveria e como deveria dizer.

terça-feira, 1 de setembro de 2020

PARA QUE SE ILUMINAR?

 Por Mario Sales



Para que queremos a iluminação?

Por que a buscamos como se fosse um objetivo de felicidade?

Talvez alguém tenha nos dito que a iluminação é o momento mais importante da senda mística, que ela é uma meta, mas também um marco de sucesso nesta caminhada.

Talvez da mesma forma tenham esquecido de nos dizer que a iluminação, se for como parece ser, é a ruptura com valores que hoje nos são caros, como amor por filhos, netos, cônjuges, etc

Na iluminação, mãe e pai deixam de ser referencias como hoje os conhecemos.

A arte que admiramos, as músicas que nos emocionam, tudo perde cor e viço e passam a fazer parte de um todo ilusório, visto realmente como ilusório e não mais como algo pelo qual se emocionar.

A iluminação traz a perfeita equanimidade, o perfeito equilíbrio.

Dessa forma não mais nos entristeceremos, mas também não mais nos alegraremos, pois a beatitude será permanente e por isso, sem a oscilação da vida comum.

Sem lágrimas, sem risos, sem apegos; sem dor, mas também sem prazer; sem sofrimento, mas também sem bem estar físico. Só o êxtase. Só a luz.

Experimente viver, mal comparando, por alguns meses no polo norte do planeta.

Tudo é branco, sempre branco, permanentemente branco. Dizem mesmo que os esquimós têm dezenas de nomes diferentes para o branco, nuances que só eles percebem.

Passe alguns meses nesse ambiente sem cor, sem contraste.

Será que sua primeira sensação será conforto, bem estar? Você que nasceu em um mundo de cor e árvores, de grama e terra molhada, suportará com conforto essa transição para o branco permanente, para o frio, muito frio, constante?

Iluminar-se é perder as ilusões, e com elas perder referenciais de existência.

Estamos prontos para isso?

Este questionamento foi feito alguns anos atrás por um monge zen contemporâneo, oportunamente trazendo a discussão para um nível mais realista, e pasmem, menos ilusório.

Nascemos em Maya, crescemos e reproduzimos em Maya, morreremos por causa de Maya, já que é em Maya que temos a sensação de estarmos vivos por um tempo e depois, não. Se a Morte é mais uma ilusão, a Vida, como a concebemos, também é.

Creio que a Iluminação não é uma experiência única, mas sim uma sucessão de estágios, cada vez mais elevados, de percepção e consciência.

Mesmo assim, ainda no primeiro estágio de iluminação, modificaremos nossas percepções da assim chamada realidade, e a vida calcada nos opostos, nos contrastes, desaparecerá.

Antecipo uma certa dose de embaraço que deve ser ocultado pelo êxtase do acontecimento.

Para recorrer a uma metáfora, a sessão de cinema se encerrará, as luzes da sala de projeção serão acesas e, subitamente, voltaremos ao que chamamos de mundo real.

As vezes o filme nem era tão bom assim, e será bom mesmo que termine; mas, e se for um filme entusiasmante, inspirador, emocionante, ficaremos felizes que acabe? Queremos mesmo que se encerre?

Da mesma maneira, juntamente com o monge zen, indago: por que queremos tanto a iluminação?

Para que a queremos?