Por Mario Sales
O riso nos liberta das tensões. Quem ri não tem espaço
afetivo para o ódio ou a desconfiança. Provocar o riso desarma os espíritos de
forma mais eficiente que a ameaça ou através do confronto.
Penso em Cervantes quando vejo o culto contemporâneo entre
esoteristas aos costumes de cavalaria, principalmente quando relacionam essas
Ordens de Cavalaria às Ordens Esotéricas.
Entre os maçons é conhecido o desejo de pertencer uma
tradição desse gênero, simplesmente pela vaidade que isto traz como bagagem.
Veja-se o caso do Cavaleiro de Ramsay[1], um individuo sem provas
de sua alegada descendência nobre, mas que incendiou as mentes impressionáveis
de burgueses e políticos que estavam na Ordem Maçonica em uma época onde o ócio
e a falta de motivação social tornava já inviável uma vida de aventuras viris
ou mesmo segurar e conseguir levantar os espadagões usados pelos verdadeiros
cavaleiros, aqueles que foram dizimados por Felipe IV , o Belo , que mandou
queimar Jaques de Molay, o ultimo cruzado, em 1314.
Quatrocentos anos depois Ransay, e como eu disse sem apresentar documentos históricos que o sustentassem, afirma a Origem Maçônica nas Ordens de cavalaria, e não nas guildas de pedreiros de Londres.
Uma proposta tão sedutora foi imediatamente aclamada como
verdadeira, como é comum os maçons aclamarem tudo que é vago e obscuro com
palavras pomposas e elogios.
Cervantes, se estivesse presente, cairia no chão às
gargalhadas. Sua obra é de 1605, pelo menos a primeira parte. O discurso de
Ramsay alegando a origem maçônica nas Ordens de Cavalaria é de 1738. Mais de um
século antes, Cervantes havia alertado que a cabeça vai sempre mais rápido do
que o corpo e mesmo assim, Ramsay foi aplaudido e suas teses, as mais
descabidas, aceitas como legitima expressão da verdade histórica. Ninguém quer
ser pedreiro e construir catedrais se, sem ter que levantar, não uma espada,
mas um simples punhal, puder ser cavaleiro.
A idéia de uma armadura reluzente, de um belo e imponente
cavalo, mesmo que presentes apenas na imaginação, seduziram milhares de maçons
pelo mundo naquela época e séculos depois.
Agora, a doença já descrita no Eclesiastes atinge a
rosacruz. Vemos nos materiais de propaganda da Ordem cada vez mais imagens de
cavaleiros ajoelhados, com o símbolo da AMORC ao lado, como se nossa história
não fosse exatamente oposta ao confronto físico e voltada para a pesquisa
silenciosa e solitária em laboratórios de alquimia e bibliotecas.
Existem fantasias absolutamente seguras, incapazes de trazer
danos ao sonhador, e que alimentam os momentos de ócio, ou aproveitam tais
momentos para imergir do subconsciente e esfumaçar-se frente aos nossos olhos.
Existem outras, porém, que se tornam obsessivas e perigosas
por sua intensidade e pelos outros aspectos que propagam com sua presença.
Entende-se que hoje, vistas de nossa época dita civilizada,
as Ordens de Cavalaria possam parecer redutos de nobreza e dignidade. Na
verdade, ordens como os Cruzados ou a Ordem de Malta, sua rival, eram como se
sabe, grupos para militares, formados com a intenção de proteger os peregrinos
que iam para Jerusalém, ou para proteger a própria Jerusalém, quando no período
de domínio cristão.
E esta “proteção” implicava o combate sanguinário e violento,
com chacinas de parte a parte, os quais, segundo relatos, eram mais comuns
serem protagonizados por cavaleiros cristãos contra civis muçulmanos do que
cavaleiros muçulmanos contra civis cristãos. A crueldade Ocidental sempre foi notória.
As Ordens de Cavalaria não são como a fantasia atual supõe,
defensoras do que era nobre e justo, e embora sua bandeira carregasse a cruz do
Cristo, sua finalidade operacional era proteger bens e valores dos comerciantes
que se arriscavam a fazer a trilha Europa-Oriente. Não é por outra razão que os
inventores do conhecido “cheque” tenham sido os próprios templários. A fim de
proteger tesouros de ladrões, em vez de carregarem ouro e jóias, os peregrinos
recebiam um papel que os autorizava a sacar quando chegasse a Jerusalém, mediante
sua apresentação, um valor equivalente ao que era depositado no seu país
europeu de origem, antes da viagem. Aqueles hoje aclamados como defensores da
Cruz foram os inventores do sistema bancário, sistema este construído e mantido
mediante o emprego de uma força militar fortemente armada.
E são esses personagens que hoje, estranhamente, são
cultuados como símbolos da espiritualidade.
Violentos, as vezes cruéis, ambiciosos, acumularam grande
fortuna, e serviram a reis e à Igreja. Não eram defensores dos valores da fé,
mas sim dos interesses financeiros e territoriais europeus.
Mesmo assim, incendeiam a imaginação dos nossos
contemporâneos, que acham por bem vê-los como símbolos de um ideal de cortesia
e nobreza.
Como sempre, neste mundo medíocre, são heróis os que sabem
matar com espadas, não os que sabem pensar ou amar.
Cientistas sempre serão os vilões das historias em
quadrinhos e os heróis serão musculosos, ou , como no caso do Hulk, cientistas só
passam a ser heróis quando se transformam em bestas gigantes esverdeadas que
falam com dificuldade.
Nobre, heroico, portanto, é a besta, não o pensador, não o
esoterista.
Cervantes com certeza daria gargalhadas de nossos rosacruzes
contemporâneos, que tendo em sua linhagem histórica nomes como Bacon, Leibnitz,
Paracelso, Newton, Erick Satie e Debussy, tornam símbolos de nossa amada e pacífica
Ordem membros de um grupo para militar de banqueiros internacionais.
Estes são, no entanto, os sintomas da “Síndrome de Dom Quixote”,
aquela que faz leitores de romances começarem a acreditar que eles mesmos sejam
os personagens sobre os quais lêem.
Por isso é tão difícil ver místicos equilibrados, já que ao
contrário da imaginação ativa, que exige organização e treino, a maioria
prefere a fantasia desordenada e caótica que não tem compromissos com o bom
senso e que aceita qualquer papel ou enredo.
Talvez esse seja o nosso calcanhar de Aquiles.
Oremos e Vigiemos.
[1] “André Michel de Ramsay, escocês de Ayr, plebeu com fumaças de aristocracia, aportou na França depois de alijado da Maçonaria de sua pátria, por insistir em criar graus cavalheirescos. Na França, satisfez a sua ânsia de nobreza, ao ser recebido como cavaleiro da Ordem de São Lázaro (Chévalier de Saint Lazare). E tão agradecido ficou que produziu em 1737, um discurso onde pretendia aristocratizar a Maçonaria, ligando-a aos nobres das Cruzadas, o que é pura lenda.” (https://opontodentrocirculo.com/2015/09/02/o-discurso-de-ramsay/)