Multi pertransibunt et augebitur scientia (Muitos passarão, e o conhecimento aumentará).

sábado, 24 de outubro de 2020

A CRIAÇÃO NO FLUXO

 Por Mario Sales

 




Costumamos ter alguns vícios de representação imagística difíceis de evitar, mas passíveis de serem modificados pelo esclarecimento.

Um deles é a visualização estática, em vários aspectos.

Um desses aspectos, cuja natureza me veio num insight recente, é aquele de supor que nossa visualização será o produto da imagem que desejamos e não da imagem que desejaríamos realizar.

Explico: quando pensamos em uma casa, quando visualizamos uma nova casa, pensamos que a materialização dessa casa trará em si a concretização de todos os atributos importantes em nossa visualização mental, que a casa já virá pronta, acabada, e apenas deveremos entrar e sentar em seus sofás macios e confortáveis.

Não olhamos a materialização de um desejo mental como o produto do fluxo de oportunidades, o fluxo inerente a todo tecido vivo, que é como o místico vê a realidade.

A imagem que me veio à mente, de caráter didático, é do observador a beira do rio, que visualiza uma navegação tranquila nos momentos seguintes, quando colocará seu barco no fluxo do rio.


Na verdade, para que a navegação seja tranquila rio abaixo, devemos compreender que condições aleatórias deverão somar-se de tal forma que ocorrências desagradáveis não nos atinjam, e para isso o imponderável nos prepara um caminho cuja dinâmica só ele conhece.

O rio flui todo o tempo, atravessando áreas mais largas e mais estreitas, galhos de árvores nas margens caem dentro do rio e se transformam certas vezes em obstáculos a nossa navegação. Além disso, existem as pedras, que sempre estarão no curso de qualquer rio e que só poderão ser evitadas se passarmos ao lado delas ou sobre elas, desde que a vazão do rio permita que nosso casco se eleve acima das rochas.

Os movimentos de elevação e diminuição de nível no rio dependem da vazão dos afluentes e das chuvas.

São todos estes fatores coisas além de nosso controle, mas não do controle do Altíssimo, que sabe e pode todas as coisas, e em última análise é o responsável pelo sucesso ou fracasso de nossa jornada.

Portanto, o momento de colocar nosso barco na água não tem a ver necessariamente com a situação do rio naquele ponto em que entramos, mas sim com todas as outras condições que encontraremos rio abaixo de acordo com o somatório de acontecimentos que acontecerão nas horas seguintes ao início de nossa aventura.

Vida é fluxo.

Entramos no fluxo como quando entramos em uma auto estrada com nosso carro, tentando nos adaptar a velocidade dos outros carros, nunca devagar demais, nem rápido demais, mas em uma velocidade que se adapte ao fluxo de automóveis no qual estamos entrando.

Todos somos “nós e nossa circunstância”, dizia Ortega e Gasset. E nossa circunstância é todo o resto além de nós, sobre o qual só o Alto tem comando e conhecimento exato.

Quando visualizamos, por exemplo, uma casa, não receberemos necessariamente a casa que visualizamos, mas a casa que se transformará em alguns meses ou anos na casa que sonhamos em nossa imaginação criativa. Ela será aquilo que tiver potencial para ser.

Realizaremos algo em potencial, não o já manifesto, mas o que poderá tornar-se o que sonhamos e mesmo ultrapassar nossas expectativas iniciais, pois nossa visão na imaginação é limitada, mas o fluxo é ininterrupto, eterno, inexorável.

Recebemos em nossas materializações de visualizações aquilo que produzirá os melhores resultados, não aquilo que já está pronto e acabado.

Aquilo que já está pronto só tende a se desgastar e desaparecer, mas aquilo que é promessa tornar-se-á, dia após dia, melhor e melhor.

Portanto, rezemos para recebermos sementes e não árvores. Porque além de a semente ser a certeza da árvore, também nos permite o prazer da semeadura, do acompanhar o crescimento da planta e de desfrutar da sensação de termos, como temos, participação ativa na materialização de nossos sonhos.

Não sabemos fazer sementes, só o altíssimo sabe. Somos semelhantes aos agricultores, instrumentos de plantio e supervisão do jardim que criamos com nossa semeadura.

Nossa vida será melhor se formos apenas bons jardineiros, mas a terra já está dada; as sementes já estão dadas.

E o tempo, ah o tempo, este flui sem cessar, tornando real aquilo que, um dia, foi apenas promessa.

terça-feira, 13 de outubro de 2020

ÉLITROS

 

Por Mario Sales


Coleóptero iniciando o voo: as asas internas se desdobram, enquanto os élitros se erguem.

Para quem milita na arte de escrever, palavras às vezes, como armadilhas, nos prendem inesperadamente. Fascinam-nos, de modo indiscutível, obrigando-nos a orbitá-las como satélites, presos a sua gravidade, tão mais forte quanto mais peculiar e desconhecido for o termo.

Se existe um autor onde podemos garimpar palavras inusuais, curiosas e eruditas, a um só tempo, este autor é Bachelard.

Ele escreveu entre 1932 e 1961 obras que ocupam lugar certo entre as mais belas da literatura francesa. Entrei em contato com este ilustre professor da Sorbone quando li “O direito de Sonhar”, traduzido para o português pelo meu professor, José Américo Motta Pessanha, em 1985, o mesmo que me chamou a atenção para a beleza deste autor.

Era um autor dialético, já que possuía toda uma obra dedicada ao pensamento científico, positivista, com raciocínios cartesianos, claros e distintos, ao mesmo tempo que construiu, quase como compensação, outro conjunto de textos dedicados a contemplação artística do mundo, à poesia, à imaginação.

Àquele, objetivo, científico, costuma-se chamar o “Bachelard Diurno”; este, sutil, fenomenológico, inspirado, classifica-se geralmente de “Bachelard Noturno”. Entre as obras do período noturno estão, em ordem cronológica de tradução, pela Editora Bertrand Brasil: “A chama de uma de uma Vela”, (1989); pela Editora Martins Fontes: “A Poética do Espaço”, (1989); “A Terra e Os Devaneios da Vontade”, (1991); “A Poética do Devaneio”, (1998); “A Água e os sonhos”, (1998); “Psicanálise do Fogo”, (2008); “O Ar e os Sonhos”, (2009). 

Não vou citar as obras do Bachelard Diurno porque dizem mais respeito ao pesquisador epistemológico, uma área específica do campo filosófico.  

A nós neste espaço interessa mais as suas linhas dedicadas a sensibilidade artística e poética do mundo ,pois nada está mais próximo do misticismo no mundo não iniciático, do que a arte.

Recorrendo a uma profunda sensibilidade no olhar e à valorização do sonho e da imaginação, Bachelard modifica nossa visão do comum, do hodierno e banal, dando-lhe novas significações, novas perspectivas.

No momento releio “A poética do espaço”.



É encantador um simples ninho, uma concha ou os cantos de uma casa ganharem importância nos capítulos de seu texto. 

E talvez dada a sua erudição, como também a de seu tradutor, meu antigo mestre, (além de estarmos falando de um autor da primeira metade do século XX), deparamo-nos com um sem número de termos inusitados, de uso pouco comum ou já raro, o que embeleza a narrativa e valoriza nossa língua.

É o caso dos verbos bramir (gritar) e fremir, que tem sentido igual. Ou do adjetivo “álacre” (alegre, vivo, animado). Ou mesmo do verbo “ressumar” (gotejar).

Este ensaio começou, entretanto, por causa do termo Élitros. A palavra, por alguma razão, me hipnotizou.

Sua etimologia é grega, pesquisei.

Deve ser de uso corrente no jargão de biólogos, entre estes, particularmente os entomologistas.

Élitro vem do grego Élytron, que significa estojo, envoltório. Refere-se, no texto bachelardiano, as asas externas de um besouro, de uma joaninha, aquelas que guardam, como em um estojo, as asas internas do animal.

No momento em que ela surge no texto, Bachelard está fazendo considerações sobre os cantos de uma casa. Na sua analise de regiões ou espaços de habitação, depois de contemplar "A casa e o Universo", "a gaveta, os cofres e os armários", "os ninhos" e "a concha", entra agora na topologia dos cantos de uma casa, que ele considera dignos também de uma avaliação. 

Diz: “…todo canto de uma casa, todo ângulo de um quarto, todo espaço reduzido onde gostamos de encolher-nos, de recolher-nos a nós mesmos, é, para a imaginação, uma solidão, ou seja, o germe de um quarto, o germe de uma casa.”

Jamais teria considerado tal coisa, se não lesse a descrição acima. Para todos nós, observadores descuidados e desatentos, cantos são apenas acidentes geométricos sem maior importância em um ambiente, sem significados mais profundos em si.

Curioso que eu mesmo me sinta mais confortável quando durmo encostado à parede, no canto do quarto, em uma manifestação simbólica, talvez, de proteção e apoio. Mesmo assim, nunca me ocorreu escrever sobre os cantos de minha própria casa da mesma maneira que Bachelard consegue construir todo um capítulo apenas trabalhando esta parte habitualmente desprezada de nossas habitações.

Ele cita um livro de Sartre sobre Baudelaire, aonde um trecho de um romance de Hughes é estudado. Lemos lá que: “…Emily brincava de fazer uma casa para si mesma num recanto na proa do navio…fatigada desse brinquedo, ela caminhava sem rumo em direção a popa, quando de repente, lhe veio o pensamento fulgurante de que ela era ela…”. Bachelard conclui que, “saindo de sua casa (no recanto do navio) a criança encontra o pensamento fulgurante de ser ela mesma”. Segundo sua perspicaz observação, identifica na narrativa a expressão da dualidade interior-exterior, do introvertido-extrovertido, conceitos tão caros ao psicanalista. 

É a saída do canto, a exteriorização, o ato que antecede a auto percepção, a consciência de si. Uma “explosão” na “direção do exterior, talvez como uma reação contra concentrações num canto do ser”, pensa ele.

Poucos poderiam somar erudição e discernimento para trabalhar trechos aparentemente banais com tamanha riqueza de interpretações o que só pode ser explicado por uma imaginação ativa e vigorosa, um devaneio dirigido e orientado por um poderoso intelecto, em uma potencialização de efeitos literários e práticos belíssimos.

Bachelard serve como modelo ao místico que indaga como usar a imaginação na consecução de seus objetivos. 

Ele demonstra como dirigir nossos sonhos de forma voluntaria, atribuindo ao real significado, sentido, moldando nosso presente e, se assim o desejarmos, nosso futuro.

Bachelard não é o sonhador descompromissado, se bem que dê liberdade às suas imagens e associações que, embora fluam rápido, não estão inteiramente livres, tal como um falcão treinado para a caça, que voa com suas próprias asas ao mesmo tempo que tem um objetivo definido (capturar sua presa) e um condicionamento intimo de voltar ao punho de quem o liberou para agir.

A imaginação, é esta a elaboração que faço, deve sim ser intensa em sua manifestação, mas todo o tempo deve ser controlada para não se transformar em mera fantasia.

O Bachelard Noturno procurou em seus textos compensar a frieza e objetividade epistemológica do Bachelard Diurno, mas foi graças ao seu aspecto Diurno que ele conseguiu criar uma obra reflexiva e poética com um comportamento orientado e objetivos claros, definidos.

Mesmo o sonho deve ter um sentido claro e distinto. 

Sonhos demasiadamente esotéricos são inúteis e improdutivos como uma imaginação descontrolada.

Sonhar e devanear com intenção, direção e sentido definidos tornam o sonho um instrumento para o místico, para o poeta e para o filosofo, que a partir daí, produzem uma realidade bela e artística.

Todas estas reflexões estavam guardadas neste estojo, neste Élitro de idéias que é este pequeno e fecundo livro, “A Poética do Espaço”.