por Mario Sales, FRC.:,S.:I.:,M.:M.:
“São necessárias todas essas coisas para orar a Deus?”
Louis Claude de Saint Martin,
comentando criticamente a complexidade interna
dos rituais da Ordem dos Ellus Cohen
O que é a busca espiritual interior?
É aquela que prescinde da erudição, do acúmulo de informações que vêm dos textos, possível de ser praticada por cultos e incultos, egocêntrica, já que centrada no indivíduo, este buraco negro espiritual aonde tudo é absorvido.
Nada tem a ver com intelecto, nada tem a ver com o aprendizado de técnicas, nada, enfim, tem a ver com o coletivo.
É uma busca individual, solitária, e por isso, ao contrário de Willermoz, Saint Martin não procedeu em vida à organização de Lojas, semelhantes às Lojas Maçônicas, para o estudo da espiritualidade.
Dava ele mesmo, uma iniciação única a cada interessado, e, à semelhança da nobre Ordem Indiana dos Swamis, os portadores do Manto Laranja, um a um, cada novo martinista, uma vez iniciado, tornava-se um livre iniciador, que obtinha desse modo a autoridade de transmitir a quem quer que fosse a mesma iniciação.
Tal transmissão de conhecimento, solta, fluida, construiu uma estrutura que foi recuperada centenas de anos depois por Papus, na França, na sua retomada dos trabalhos organizados da Ordem.
E quais os princípios que regem esta prática chamada de Martinismo?
Em um curto e belíssimo artigo “O Martinismo”, no site Hermanubis, um irmão que se nomeia Saryh, SI, descreve assim os elementos fundamentais da prática dos martinistas:
“As sete virtudes que devem praticar: Sinceridade, Paciência, Coragem, Prudência, Justiça, Tolerância e Devotamento. O Martinista tem como premissa de vida, o Amor ao Grande Arquiteto do Universo, e o Amor ao seu próximo.”
Saint Martin
Ora , o “amor ao próximo” é uma práxis terrena, social, mas o “amor ao GADU” entra no terreno teúrgico, e como já tive oportunidade de comentar, não há outra técnica teúrgica mais poderosa do que a Oração do Coração.
Esta atividade, a prece, dispensa outros requisitos a não ser a entrega incondicional daquele que a executa nas mãos de Deus.
Esta entrega pode sim, e deve ser objeto de exercício, pois só aprendemos a confiar confiando, e só aprendemos a amar, amando.
Só que já temos em nós tudo o que é preciso para tal exercício e se fossemos privados de todos os nossos bens materiais e de nossas roupas, nada nos faltaria para que entrássemos no estado de prece, de oração.
Visto isto, e considerando que o Martinismo não é o Martinezismo, embora um e outro estejam historicamente ligados, não se entende que ainda hoje, a herança de Papus tenha sido uma espécie de liga entre os dois tipos de prática.
Louis Claude de Saint Martin
Considerando a diferença intrínseca entre as duas vertentes, uma que buscava em técnicas de Teurgia, hoje obsoletas, a materialização de um intermediário entre Martinezistas e a Divindade, segundo os relatos de Papus que podem ser lidos no site da Hermanubis, o caminho para a o conhecimento, e outra, que se fundamenta no contato direto, sem intermediários, com esta mesma Divindade, através da prece, bem mais ao estilo rosacruciano e cátaro, não faz sentido que ambas as vertentes, mesmo consideradas sob a perspectiva histórica, sejam embrulhadas em um mesmo pacote e oferecidas como um único modus operandi.
São, em síntese, como óleo e água.
Uma é complexa; a outra simples.
Uma é rebuscada; a outra despojada.
Uma, no contato com Deus, é indireta; a outra é direta.
Não há como ocultar esta contradição, esta esquizofrenia (do grego σχιζοφρενία; σχίζειν, "dividir"; e φρήν, "phren", "phrenés", referente ao músculo frênico, no antigo grego, parte do corpo identificada por fazer a ligação entre o corpo [abdômen] e a alma [tórax], literalmente "diafragma") que acompanha os estudantes de Martinismo em todo o mundo, seja em qual denominação se abriguem.
O termo esquizofrenia foi cunhado por Bleuler no final do século XIX e refere-se a uma mente dividida, separada em duas, sem conseguir harmonia entre as duas metades.
E é exatamente isso que se vê: uma prática indecisa entre uma linha de trabalho e outra, na ilusão de que são complementares quando na verdade são excludentes.
Ou bem se assume como Martinismo a Via Cardíaca, que não precisa nem mesmo de palavras, quanto mais de rituais, ou bem retornamos às práticas martinezistas, e enveredaremos de novo por uma Teurgia Complexa e impraticável modernamente, com graves prejuízos à sanidade mental daqueles que trilham este caminho, como dito pelo próprio Saint Martin, ao abandonar estas práticas após a morte de seu Mestre.
Minha humilde opinião é que a opção de Saint Martin foi um avanço conceitual para sua época além de estar harmonizada com o pensamento da AMORC, de Espinoza, e dos Santos da Igreja Primitiva, como além disso do próprio Cristo, Jesus, de que é dentro do homem que estão as forças que precisam ser trabalhadas, e não fora dele.
A frase de Saint Martin que inicia este ensaio é límpida e cristalina e já tem 300 anos.
Às vêzes tenho a sensação de que é tão clara que ofusca os olhos de quem a lê. Se ao contrário prestarmos atenção a cada letra, a cada palavra da frase, veremos que, mal comparamos, existe um castelo de cartas esotérico pronto a desabar, ao mínimo sopro.
São palavras duras, mas precisam ser ditas.
Quem tenha ouvido para ouvir, que ouça.