por Mario Sales, FRC,SI,CRC
Simone de Beauvoir era uma filósofa e mulher.
Identificada na grande maioria das vêzes pelo seu papel de
conscientizadora de uma geração e mesmo de suas companheiras de sexo, afirmando
que o comportamento das mulheres em sociedade era, e sempre foi, mais um
produto da cultura do que da biologia,(o que é correto), Simone também
exemplifica, a certa altura de sua fala no vídeo, a importância dos sentimentos
humanos na carreira e no desenvolvimento do escritor e de sua obra.
Repetindo o que muitos, antes e depois dela, já disseram de
outras formas, ela relembra em uma entrevista feita por Sartre, ele mesmo, que
um comentário dele a marcou profundamente, onde Sartre dizia:"- Bote mais
de voce no que voce escreve. Voce é muito mais interessante do que esses Josés
que existem por aí..." E continua Simone:" Isto me atingiu muito, até
me intimidou, porque eu pensei, se eu tiver de me dar à literatura dessa
maneira, profundamente comprometida, isso levaria a coisas muito sérias como o
amor, a vida, a morte, e eu hesitei muito antes de fazer isso."
Que o escritor deve escrever com o fígado e o coração, e não
com a cabeça, isto eu já sabia. Mas que outra pessoa, como eu, sentisse
o peso do medo de fazê-lo, foi a primeira vez que ouvi da boca de
uma celebridade literária da filosofia ou de outra linha de literatura
qualquer.
Muitos devem sentir um receio semelhante mas só mesmo uma
mulher para dizer isto, corajosamente, com todas as letras. Porque a mulher
transita na frequência da emoção, debate e trabalha sobre emoções e lida com
mais naturalidade com elas do que os parceiros do sexo masculino, culturalmente
treinados para ocultar seus sentimentos.
Eu mesmo, como escritor místico e como ser humano evito
temas e assuntos que não debato em textos pelo caráter demasiadamente direto
destes textos na vida cotidiana de místicos e não místicos e pelo receio de não
ser compreendido, (como se isto, o equívoco, fosse algo evitável, ou possível
de ser controlado).
Há muito que se sabe em Teoria da Linguagem da existência de
dois polos no ato da conversação: o emissor, aquele que fala, e o receptor,
aquele que escuta.
Mesmo que o emissor use de todos os recursos de oratória e
didática na apresentação de seu tema ou proposição, é óbvio que uma parte
decisiva do sucesso de sua exposição repousa na capacidade do receptor de compreender
o que foi dito. E a palavra sempre será a mãe do equívoco, exatamente por causa
disso, não por causa dela, palavra, e sua significação,
mas por causa da compreensão intelectual daquele que a escuta, e que
determinará a conotação
daquilo que ouve.
"Um charuto, às vêzes, é apenas um charuto",
lembrava Freud, o mestre interpretativo de um segundo sentido por trás das
palavras, de uma conotação atrás de uma significação. E como ele disse, embora
não fosse esse o motivo da sua ênfase, só "ás vêzes", um charuto é
apenas um charuto.
Sabendo disso, e lidando com um dos assuntos mais delicados
de se tratar, a prática mística, em um meio povoado tanto por pessoas sensatas
como por outras nem tanto, por medo de não ser compreendido, muitas vezes, me
calei.
A alguns amigos que com sinceridade me repreendiam dizendo
coisas como "você está pegando pesado", ou coisa assim, sempre respondi
que, "pelo contrário, muito do que eu gostaria de discutir aqui no blog
não sai de meus dedos, por prudência e bom senso".
Só que, frequentemente é difícil estabelecer a linha que
separa a covardia da prudência.
Mas como disse, isso dificilmente ocorre com mulheres. Uma
das qualidades da mulher é sua franqueza ao lidar com seus medos, ao descrever
suas hesitações, ao narrar detalhes de seus sentimentos.
Mesmo quando delicadas, mulheres sabem disto, certas coisas
precisam ser ditas, não para tornar a nossa vida mais fácil, mas para tornar
mais fácil para outros a expressão de seus sentimentos. E sentimentos não
expressos, emoções não esclarecidas, como dizia Carl Rogers, são passíveis de
se transformar em neuroses, em aflição.
Mas o que precisa ser dito, e como dizê-lo de forma a causar
uma polêmica sanitária e saudável ao mesmo tempo? Esta é a questão de um milhão
de dólares.
Místicos modernos, como os antigos, precisam de palavras e
de textos. São os textos que alimentam o misticismo, o que eu chamei em um
outro ensaio de "misticismo literário". Livros sagrados, aceitos e
apócrifos, manuscritos de iniciados, textos esotéricos sem autor, um rico
material que delicia mentes nos últimos séculos, em busca de uma forma ou de um
veículo para sua sensibilidade.
O fato é que aquilo que o místico sente é solitário e
pessoal. De nada serviria a causa mística se não fosse compartilhado. E o pouco
que o foi,(já que pessoas sensíveis sentem muito mais coisas do que aquelas que
conseguem colocar em uma folha de papel), foi importantíssimo na criação de um legião
de exegetas, de interpretadores, em busca do real sentido por trás de certos
textos.
Isto sedimenta a base física comum na qual o místico
caminhará ou influenciará pessoas. Seu espírito enriquecerá este terreno com
sua visão peculiar e compreensão diferenciada, mostrando novas vestes para
antigos conteúdos, traduzindo para a linguagem da época histórica a que
pertença o sentido das palavras que jamais se cansam de ecoar.
A linguagem, o texto, são coisas materiais, passíveis de
serem copiadas, estáticas em sua forma e apresentação. Podem ser compreendidas
em parte pela razão.
O espírito deste texto, no entanto, só virá à luz por força
da ação da sensibilidade, algo mais complexo que o intelecto e que, em muitas
oportunidades, o transcende.
Mulheres como místicos sempre foram muito menosprezados, e
ambos pelo mesmo motivo: ambos trabalham na frequência da sensibilidade, não na
frequência da razão. E portanto, possuem muito mais dificuldade de expressar
suas percepções que, via de regra, são complexas, multidirecionais,
multicoloridas, e não linhas encadeadas e retas como aquelas do raciocínio
ortodoxo. Expressar sentimentos, costuma-se dizer, é coisa para artistas, não para
pensadores.
Por isso o místico é praticante, como a mulher, de uma
Antiga Arte, a Arte de perceber a realidade através da sensibilidade e não da
sensualidade. Por isso ele pode ler textos com outros olhos, os olhos do
iniciado. A mulher, em parte por ser mulher, da mesma forma tem o chamado sexto
sentido, o sentido da percepção do que está atrás do que se apresenta. Esta
sagacidade feminina é mais psicológica e cultural do que mística, já que a
mulher, submetida por uma cultura machista, aprendeu pouco a pouco a arte da
sutileza, a capacidade de olhar para além do que se mostra. A mulher, por
necessidade social, aprendeu a ser sutil, no falar e no ouvir, de forma a
descobrir nos que falam não o que dizem, mas aquilo que não dizem.
Isto, em si, já seria um divisor de águas.
Perceber o que nos cerca não para além dos sentidos
hodiernos, é usar a sensibilidade, o dom que revela aspectos ocultos de tudo
que existe, manifesto e imanifesto. Se não fosse pelo fato de que as mulheres,
como lembra Simone, não nascem mulheres, tornam-se mulheres, eu poderia dizer
que todas as mulheres sempre seriam boas místicas; mas, como se sabe, não é
verdade.
No entanto elas possuem um equipamento psicossocial muito
mais competente do que o masculino para lidar com a percepção além dos cinco
sentidos, a da sensibilidade.
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