Multi pertransibunt et augebitur scientia (Muitos passarão, e o conhecimento aumentará).

sábado, 24 de janeiro de 2015

A TÉCNICA DE LER MENTES

por Mario Sales, FRC,SI,CRC 18°




Todo iniciado rosacruz sabe, ou aprende ao longo de alguns anos, que as mentes humanas podem ser lidas; e que quando um iniciado busca levantar as verdadeiras intenções de outra pessoa, ele não o faz lendo pensamentos, mas sentimentos.
O Intelecto sempre foi superestimado nos últimos 2400 anos, principalmente porque o processo intelectual, por tradição que se estende a Grécia, fascina e encanta os homens de ciência, e mesmo alguns iniciados.
Por isso, em muitas tradições religiosas e místicas, bem como na tradição intelectual e científica, a razão é considerada, quando dominada, como o mais elevado patamar do refinamento humano.
O que percebemos recentemente, desde os trabalhos pioneiros de Nietzsche e Freud, é que o poder e o equilíbrio só são alcançados quando atingimos o domínio emocional.
São nossas emoções que nos fortalecem como místicos e como seres humanos. A Razão jamais conseguiu sozinha construir homens misericordiosos ou sábios, apenas homens cultos.


Martin Heidegger, autor de "O Ser e o Tempo"

Já fazem algumas décadas, no meio filosófico, a razão vem sendo posta sob suspeita. Os motivos foram muitos, desde a crítica da racionalidade nazista na construção do maior plano de destruição de vidas em massa já elaborado (chamado de "a solução final") com a perda de 6000000 de vidas judaicas; ou a descoberta de que um dos mais sublimes metafísicos do século XX, Heidegger, era membro do partido Nazista; mais: discípulo do criador da técnica fenomenológica, fundamental hoje ao trabalho intelectual e das ciências humanas, Heidegger foi capaz de, sem remorso, trair seu mestre e mentor, Edmund Husserl, demitindo-o das funções docentes da universidade em que ambos lecionavam, mágoa da qual Husserl jamais superou.


Edmund Husserl, criador da Fenomenologia

A razão, portanto, demonstrou de vários modos que, ao contrário do que imaginou ingenuamente Platão e outros, não garante que aqueles que a dominem sejam por isso necessariamente homens nobres e generosos, éticos e sublimes.
O que faz o Iniciado ser uma personalidade alma verdadeiramente refinada é o perfeito conhecimento, ou melhor, a harmonia de suas emoções.
Considerada a característica menor da personalidade, fonte de descontrole e fraqueza, na verdade é pela arte da emoção que alcançamos níveis mais altos de percepção e compreensão.
Não sem motivo Louis Claude de Saint Martin elege o coração como a Via para a Iluminação que ele chama Reintegração, não o cérebro ou a cabeça, mas o coração, sede do sentimento na simbologia ocidental(1)
Hoje percebo que é muito difícil para a maioria das pessoas entender que os pensamentos são profundamente afetados em sua qualidade e natureza pelo estado emocional e que, portanto, não são os pensamentos que controlam as emoções, mas as emoções que determinam o tipo dos pensamentos que nos acometem.
Processos de raciocínio extremamente elaborados podem sim ser apenas vestimentas e disfarces para emoções muito profundas e violentas.
É como a água dos rios e as represas: supõe-se que pela complexidade da engenharia envolvida na sua construção, as represas sejam mais importantes que as águas que elas represam e imaginam dominar. Só que seu papel e utilidade dependem totalmente da água que por elas fluem. Se por um capricho natural ou por problemas ecológicos, a água venha a faltar, a represa é apenas um esqueleto morto a céu aberto.
Da mesma forma, não há estrutura racional ou construção intelectual que exista sem uma emoção que a alimente, nem que seja a paixão de um cientista por determinado campo de ciência. É esta paixão, no sentido cartesiano do termo, que move e motiva o trabalho investigativo, empírico e interpretativo incansável daqueles que buscam novos mundos e estrelas, novas drogas e remédios, novos ligas metálicas, novos programas de computador.
Compreendido isso, é possível ler mentes, desde que não nos preocupemos em "ler pensamentos", como vemos em filmes no cinema, mas sim mantenhamos o foco nos sentimentos que mobilizam este ou aquele indivíduo à nossa frente, mesmo que ele não diga nenhuma palavra.
Cada sentimento na verdade carrega consigo um sem número de pensamentos, como pacotes de energia intelectual, atada por embrulhos emocionais, que se tornam transparentes quando descobrimos seu nome.
Embrulhos misericordiosos tem seu tipo específico de conteúdo, bem como os embrulhos de ódio, medo, inveja e cobiça. Estes embrulhos determinam discursos mais ou menos protocolares, que podem ser facilmente decodificados depois que sabemos o que está por trás deles.
É por isso que rosacruzes treinam a percepção das intenções emocionais por trás das palavras desde cedo nas práticas mentais dentro da Ordem, já que a Mente não é um conjunto de idéias como se supõe , mas muito mais um conjunto de emoções, que obedecem a um padrão especifico dependendo da personalidade envolvida.
É a isso que devemos estar atentos ao "Ler Mentes", ao perfil psicológico da pessoa à nossa frente.
Isto nos dará uma imensurável vantagem no relacionamento social, profissional e mesmo doméstico, pois anteciparemos com facilidade os fundamentos das palavras daqueles com quem dialogarmos, sejam indivíduos conhecidos ou desconhecidos.
Pensamentos são consequências, emoções são causas.
Para desvendar as intenções reais de alguém, por trás da máscara facial, é preciso focar nas causas, não nas consequências.
Será fácil,assim, antecipar receios, suspeitas, armadilhas ocultas em um linguajar às vezes cordial e elogioso.
À isto chamo perspicácia, um atributo disponível a todos os rosacruzes que se dedicarem com afinco aos seus estudos psicológicos internos.

(1)Por exemplo na clássica organização dos níveis de alma no Cabala (nefesh-instinto, ruach-emoção e neshama-entendimento) a emoção é considerada preconceituosamente como uma fase em direção a plenitude da razão, esta sim sinal de equilíbrio e maturidade.
Qualquer psicanalista sabe, entretanto, que a razão não reflete, mesmo que elaborada, maturidade emocional.
E é a maturidade emocional, a capacidade de sentir o mundo de forma equilibrada e não apenas pensar o mundo, que determina quem realmente se tornou um ser humano refinado.

quarta-feira, 21 de janeiro de 2015

CARMA II - O CARMA COMO PROTEÇÃO

por Mario Sales, FRC,SI,CRC 18°





Especulemos.
Nenhuma imagem é melhor para descrever causa e efeito que o reflexo de um raio de luz emitido em direção a um espelho.
Se um raio de luz se propaga solitário no vazio, ele se perde na infinitude.
Por outro lado, se um único raio de luz for emitido de um ponto central de uma esfera espelhada ( o "Tehiru" Luriano) este raio refletirá e refletirá múltiplas vezes em suas paredes, criando uma magnífica teia de luz aonde a criação pode se apoiar e se manifestar.
Este raio inicial é Kav, o primeiro estímulo, a primeira luz, a primeira ação.
Assim, a medida que Kav se multiplica em milhares e milhares de reflexos, Carma avança.
Não com função de punição, mas como um movimento inevitável deste ambiente, que estimula a reflexão das emissões, uma após outra.
Sendo assim, a primeira ação do Carma foi a própria Criação de tudo que existe.
Tudo é vibração na Criação, seja luminosa ou sonora, mas como reflexos e ecos de priscas eras e causas, impossíveis para nós, pobres humanos, identificar.
Esta é uma aplicação possível da "Ótica Esotérica", à questão do Carma.
Na luz refletida nos corpos tudo se esclarece e torna-se visível.
Em um quarto como aquele de nossa experiência imaginária, descrito como um local onde todas as paredes são espelhadas, capturamos os raios de luz produzidos neste ambiente e os fazemos reverberarem infinitamente no ambiente, num reforço positivo das formas ali presentes, tornando-as nítidas e distintas.
Da mesma forma, na Criação, a reflexão infinita do Carma não cessa em nenhum momento
Com essa luz refletida e re-refletida a claridade do ambiente é multiplicada exponencialmente e, neste sentido, aumenta também o esclarecimento das formas e dos contornos destas formas, garantido pela emissão, mas também (e talvez principalmente) pela reflexão dos raios de luz no ambiente espelhado do quarto imaginário.
E tudo que precisamos, nós, os eternos observadores, é de Luz.
Carma é, desta forma, uma manifestação da Luz, que provoca a exposição do oculto, revelação do velado.
Na natureza, é o raio de luz que, refletido nos corpos, retorna sobre nossos olhos e permite que, assim, enxerguemos as coisas.
No Carma, da mesma forma, não há reflexo - consequência que não esclareça sua causa, seja quanto à sua natureza ou sua intenção.
Como sabem, em minha opinião, não existe o propalado "livre arbítrio" agostiniano, a não ser na mente arrogante e orgulhosa do homem. Nossos atos são determinados por nossas necessidades instintivas, sociais ou por razões ligadas à nossa consciência. Só por sermos humanos estamos determinados por nossa humanidade a necessitar de algumas coisas e a recusar outras. O Carma vem a ser a segunda força de modulação de nossas atitudes.
E assim, além de nos movermos induzidos por forças sobre as quais não temos como contrariar (a busca do ar, da água, do alimento, do abrigo e do afeto) ainda nos curvamos às correções de conduta que o Carma nos impõe e nos revela com sua Luz.
Isto nos coloca em uma única direção evolutiva e não em duas ou três como pensam alguns esoteristas.
Não existe o caminho do Mal ou do Bem, mas sim salmões e surfistas, uns subindo o rio, ao contrário da correnteza e outros aproveitando a Onda, harmonizando-se com ela, usufruindo de sua força.
Eventualmente até os salmões descerão o rio, após desovarem. A correnteza é uma só e é mais sábio e confortável nadar a seu favor, se bem que até os salmões tem a sua razão de ser.
Carma é esclarecimento, orientação, e não apenas e tão somente retribuição. Assim ele nos mostra a direção correta do fluxo da corrente de vida universal, constrangendo-nos no sentido correto.
Entendê-lo como um corretor de desvios é mais fiel ao seu propósito do que pensá-lo no "modelo tribunal", tão difundido entre os esoteristas do século XIX.
Sua única função é ajustar rotas e não punir; orientar e não torturar. O desconforto que ele provoque faz com que o indivíduo recue daquela direção e experimente outras mais agradáveis e acolhedoras. E quanto mais estivermos harmônicos com a adequada conduta, com a adequada direção e sentido, coisa impossível de descrever, porém possível de conceituar, mais protegidos estaremos pelo próprio curso das forças que nos arrastam como uma correnteza espiritual.
Como um barco que se torna veloz quando desce a correnteza e por causa de sua velocidade escapa fácil de flechas lançadas da margem.
Somos fortes com "A Força" do fluxo.
Nós mesmos nada somos.
É "A Força" do fluxo que nos faz parecer fortes. Como o surfista que parece flutuar sobre as ondas e na verdade é apenas arrastado por elas, equilibrando-se e apoiando-se sobre as ondas. 
Carma não é punição, mas orientação e proteção para aqueles que entendem suas mensagens, suas instruções, e que sabiamente as obedecem.

domingo, 11 de janeiro de 2015

CARMA

por Mario Sales,FRC,SI,CRC


"A Vida Una está intimamente relacionada com a Lei Una que governa o Mundo do Ser: o Carma. Em seu sentido exotérico e literal, esta palavra quer dizer simplesmente "ação", ou melhor, "uma causa que produz seu efeito". Esotericamente, o Carma é uma coisa inteiramente diversa em seus efeitos morais de grande alcance. É a infalível LEI DE RETRIBUIÇÃO. ... Não se pode tampouco dar-lhe o nome de Providência. Porque a Providência para os teístas - ao menos para os cristãos protestantes - recai em um criador pessoal masculino, enquanto para os católicos romanos é uma potência feminina. "A Divina Providência tempera suas graças" diz Wogan. "Ela" as tempera, coisa que o Carma - princípio sem sexo - não faz."
Helena Petrovna Blavatsky, Doutrina Secreta, II° volume, página 346, 'Simbolismo Arcaico e Universal', Ed. Pensamento,1973



A Lei da Ação e Reação foi o tema do capítulo XV (ou seção XV) da edição da Doutrina Secreta, de Helena Petrovna Blavatsky (HPB), II° volume, Simbolismo Arcaico e Universal, Ed Pensamento, da coleção que eu e Flavio enfrentamos, quartas feiras à noite, há dois anos.
Lá, com um linguajar tortuoso e estilos de expressão diferentes, ora didáticos, ora pouco claros, HPB discute as características funcionais da Lei do Carma.
Nega por exemplo, como na citação acima, que o Carma por alguma razão atenue as consequências de nossas atitudes, fato atribuído a Providência, conceito católico cristão de intervenção direta divina em nossas atribulações cotidianas.
Para HPB, para ser justo, o Carma não pode ter modulações, nuances, mas, pelo que compreendi salvo engano meu, deve ser marcada por total correspondência entre a qualidade e a quantidade da causa e as mesmas características da consequência.
Isto me pareceu, no mínimo, simplista.
À primeira vista, pagar na mesma moeda é o mais justo. Só que existem inúmeros exemplos em que a reação do Universo às ações de um determinado indivíduo são diferenciadas de acordo com circunstâncias, não atenuantes, mas moduladoras desta reação.
Modular é adaptar a força do golpe às necessidades do impacto, de forma este seja o mais eficiente e não o mais áspero, forte, ou intenso.
Pensar o Carma na ótica da equivalência meramente quantitativa é imperfeito, incompleto, inadequado.
Como diz a própria HPB, "esotericamente, o Carma é uma coisa inteiramente diversa em seus efeitos morais de grande alcance".
Ao privilegiar o aspecto quantitativo nos efeitos cármicos, deixamos de lado fatores moduladores da resposta de extrema importância, entre êles, o mais importante, o grau de aperfeiçoamento da consciência espiritual dos envolvidos, o grau de conexão deste indivíduo em particular com a mente de Deus, ou em outras palavras, a vontade da Criação em nós.
Independentemente do nível espiritual em que nos encontremos, sempre existe uma conexão entre nós e o Universo. O que diferencia os seres é o grau de consciência dessa conexão que cada um atingiu.
A palavra consciência aqui, portanto, refere-se à consciência da presença divina em nós, a intensidade com a qual somos influenciados pela inspiração do Altíssimo em todos os afazeres diários e em nossas meditações.
Existem assim vários tipos de seres humanos, independente de raça, credo ou capacidade intelectual com graus diferentes de Consciência Espiritual, chamemos assim. Existem da mesma maneira, níveis de consciência espiritual diferentes entre animais de todas as espécies.Mas este é outro assunto que deixaremos para uma hora mais oportuna.
Em suma, Consciências Espirituais diferentes, Carmas diferentes, respostas cármicas diferenciadas e moduladas por esta consciência.
Da mesma maneira que o calor depende do Sol ou do fogo, o Carma depende da Consciência Espiritual de cada um. Ela é a moduladora quantitativa e qualitativa que falta a análise Blavatskyana.
Mais que isso: sem consciência, não há Carma.
Vejamos um exemplo antropológico.
Imaginem um membro da antiga tribo dos Tamoios, orgulhosa e poderosa tribo que habitava o que hoje é o Estado do Rio de Janeiro, e cujas terras e domínios estendiam-se de Niterói até a divisa com o atual Espírito Santo.
Os tamoios eram canibais. E assim sendo, sempre que conseguiam capturar um inimigo que se destacava pela coragem e bravura em batalha, levavam-no para sua tribo, passavam dias mimando-o e engordando-o para depois, em uma cerimônia onde toda a tribo estava presente, amarrá-lo a um tronco no centro da Taba, abatê-lo com um único e certeiro golpe de borduna na cabeça, entregando então seu corpo às mulheres que o cozinhavam à frente de todos e eram responsáveis por distribuir suas partes aos comensais. Ali reunidos , em clima de solidariedade e comunidade, todos degustariam a carne do infeliz enquanto elogiavam seus dotes como guerreiro e agradeciam aos deuses a possibilidade de comê-lo, absorvendo assim, literalmente, em suas crenças, as suas virtudes de combatente.
Borduna Kaiapó

Em nenhum momento, tenho a mais absoluta certeza, passou pela mente de qualquer um dos guerreiros tamoios que suas práticas canibais pudessem, de alguma forma estar ofendendo ou transgredindo algum preceito moral. Ao contrário, comer alguém assim era a mais alta forma de homenagem a um inimigo, uma demonstração de respeito e admiração e nunca uma prática bárbara ou desumana. O canibalismo, para um canibal, não implicava portanto em qualquer aspecto ligado ao Mal, ou ao que é errado. Não havia nele nenhuma consciência de mal. Era o seu modo normal de viver e viver de outra forma, isto sim, seria um mal.
E quem argumentar que mesmo inconsciente disso, esse guerreiro tamoio seria objeto de qualquer retaliação cármica, lembro que tais práticas foram comuns por séculos antes da intervenção dos sacerdotes europeus que conseguiram evitar tornarem-se almoço ritualístico.
Foram estes representantes da cultura e da religião típica da península ibérica que inseriram conceitos como culpa e remorso no coração desses nativos.
Portanto, sem consciência de que estivessem fazendo qualquer coisa de mal, eles não foram provavelmente objeto de nenhuma punição transcendental, reação universal essa mediada pela consciência interior de cada um. Mais: se problemas o atingissem, se ele perdesse sua saúde ou sua força física, este guerreiro atribuiria essa desdita a outras causas metafísicas misteriosas e nunca ao fato de ter o hábito secular de comer pessoas. Ele diria para si mesmo que algo desagradou aos deuses mas não saberia o que. A função didática do Carma estaria assim, irremediavelmente perdida, pelo menos no quesito "não se deve matar e comer pessoas, mesmo que seja para "homenageá-las".
Carma é antes de tudo balanceamento de conduta, modulação do fluxo das energias vivas, as almas imortais.
Não se trata de uma "retribuição" pura e simples, como supõe madame HPB, mas uma reação inteligente e diferenciada caso a caso. E provavelmente de uma tal complexidade que nós somos incapazes de acompanhar todas as interconexões das consequências de nossos atos, sejam pensamentos, palavras ou ações no meio social.
Muitas vêzes aquilo que consideramos erro e pelo qual julgamos teremos que pagar um preço cármico fará parte de um plano cósmico mais amplo que repercutirá na vida de muitos sem que tenhamos consciência disso, anos e anos após nossa morte física.
Como Deus, o Carma é para nós, impossível de ser compreendido e acompanhado em seus desdobramentos.
É a mesma coisa que tentar calcular o número de deslocamentos causados pelo mergulho de uma única criança nas bolinhas plásticas de uma piscina de bolinhas infantil. 



O deslocamento de dezenas de bolas é simultâneo e múltiplo, ainda mais por que o corpo que mergulha é tridimensional e provoca o deslocamento em todas as direções. Da mesma maneira habitualmente tentamos entender os desdobramentos cármicos em linha reta (A fere B que magoado fere C e assim por diante) mas, de fato, as repercussões de nossos atos afetam todos ao nosso redor, estejamos ou não conscientes disso, estejam ou não conscientes disso aqueles que foram afetados.
Como aquela senhora que será empurrada em uma rua por alguém sem muito cuidado, transtornado por problemas pessoais domésticos, e que irá parar em um hospital com uma fratura não percebida antes da qual resultará uma complicação circulatória que gerará um embolia que virá a matá-la dias depois.
A pessoa que esbarrou transformou-se em uma força cármica, sem saber. Esta cadeia de eventos que, pode-se dizer, semelhante aos canibais, ela não acompanhou e da qual não tem consciência, não pesará na sua consciência da mesma maneira que repercutirá na vida daquela senhora vítima da queda e na vida de seus familiares que sofrerão com sua perda; entretanto, nada nos leva a crer que tais acontecimentos já não fizessem parte de uma cadeia de eventos ligada a vida daquela senhora vítima das consequências de um simples esbarrão.(1)
E aqui precisamos falar de outro aspecto, outra decorrência do carma, entendido por alguns erroneamente como "predestinação".
Para isso devo recorrer à balística.
Quando uma bala de um antigo canhão é disparada ela descreve no espaço uma trajetória chamada curva parabólica até atingir seu alvo. A forma desta curva dependerá de vários fatores como o tamanho do cano deste canhão, a quantidade de pólvora usada na sua ignição e disparo do projétil bem como do peso e forma do próprio projétil, que ao longo dos anos teve alterações de formato de uma simples esfera de ferro para um cilindro pontiagudo, entendido como muito mais aerodinâmico.
Assim, dependendo da ação que desencadeemos com nossas escolhas, ela disparará uma cadeia de eventos que redundará em uma consequência, a semelhança do projétil lançado do canhão que eventualmente explodirá em seu alvo. Nossos atos terão uma consequência imediata que dependerá de sua importância, de nossos objetivos ao fazer tais escolhas e intensidade das emoções envolvidas naquele ato. Algo parecido com a importância da serenidade, tanto para disparar um projétil quanto para realizar escolhas. Quanto mais sereno o armeiro, mais preciso é o tiro; quanto mais serena uma escolha, mais benéficas são suas consequências. De qualquer forma, até que determinada consequência ocorra, os eventos encadeados também descreverão uma parabólica no espaço cármico, primeiro ascendendo até a elevação máxima e depois numa descendente até tocar o alvo e o solo. É só pouco antes deste momento que podemos supor que dificilmente os fatos deixarão de ser como a trajetória do projétil indica. Isto pode ser chamado de um trecho determinista, mas vejam, apenas este pequeno trecho, o trecho final da precipitação dos eventos, onde as consequências podem ser chamadas, sim, predestinadas. 

CURVA DE EVENTOS


Se o Universo recrutar alguém neste ponto da cadeia de acontecimentos, muitas vezes esta pessoa participará de um drama cósmico de forma inconsciente que redundará em um desfecho antecipável e inevitável. Ela será atraída para este desfecho por várias razões indescritíveis, mas a razão mais importante estará sempre relacionada aquele que representará o papel mais destacado deste drama, no nosso exemplo, a senhora que vem a falecer vítima das consequências de um simples esbarrão em uma rua movimentada.
Os seres humanos gostam de se sentir senhores de suas vidas,  mas na verdade, o Senhor de nossas vidas é outro e só na harmonia com sua vontade podemos compartilhar alguma coisa deste poder. Nossa vida nunca foi, nem nunca será nossa, mas alguns de nós são mais conscientes disso do que outros, como salmões que nadam rio acima contra a corrente para atender os desígnios de seu instinto reprodutivo  e o surfista que cavalga uma onda que não criou e que não controla, mas com a qual se harmoniza para divertir-se e dar a impressão que a controla.
Gera bom carma ceder ao fluxo da onda; gera bom carma guiar-se pela vontade do Altíssimo, vontade esta marcada a ferro e fogo em nossos corações e que Platão chamou em uma imagem memorável, Physys. Cada um de nós tem um propósito nesta e em todas as nossas existências e é nossa missão descobrir esta natureza em nós e segui-la, cavalgando-a e usando-a o melhor que pudermos, como o surfista faz.
Como eu disse antes, Carma é uma reação inteligente e quantitativa e qualitativamente diferenciada caso a caso, à ações determinadas por nossas escolhas.
E as escolhas são moduladas pelo grau de consciência espiritual, como comentei.
Isto nos leva a outras considerações sobre o Carma, sua potencialidade de causar dor ou prazer. Prazer, sim, já que a retribuição impessoal de que fala HPB não é especializada apenas em dissabores ou eventos desagradáveis.
Tanto as vicissitudes quanto as recompensas, portanto, modificam-se ao longo dos diferentes níveis espirituais que a alma atravessa em direção à plenitude.
Em um primeiro momento, a alma em evolução se vê envolta em uma dicotomia dor/prazer, quase um condicionamento pavloviano, que o empurra em direção a um comportamento mais seguro, social e capaz de garantir descendência. No segundo momento, a alma se vê em um ambiente social mais complexo, numérica e qualitativamente, de tal forma que o grupo se vê obrigado a estabelecer convenções de relacionamento como a Lei e a Religião. Já em um terceiro nível de complexidade a alma atingiu um tal grau de refinamento que passa a ser guiada apenas pela sua conexão com o Altíssimo, aquela consciência espiritual de que falei antes, mas agora desperta, e as dificuldades da existência, se elas ocorrerem, nesse estágio são recebidas com serenidades e compreendidas como orientações diretas do Alto, na direção do aperfeiçoamento, um pacto entre nós e a força que nos sustenta, como o surfista e a onda aonde ele surfa.
Para essas pessoas, graças a interação harmônica com a Vontade de Deus, Carma é garantia de prazer e proteção. Existem muitos exemplos públicos de pessoas que têm uma vida produtiva e enriquecedora, e que graças a justiça universal, desfrutam de uma encarnação de luz e que a muitos ilumina. Existem sim, sem fantasias, vidas que são exemplos deste argumento e, feita a ressalva de que, no corpo, somos todos frágeis e sujeitos às intempéries físicas e emocionais comuns a nossa condição humana, tais vidas são mesmo abençoadas e abençoam a todos que com elas convivem.
Pensar o Carma como uma simples Lei de Retribuição não é incorreto, mas incompleto e imperfeito. Carma é um mecanismo de equalização e modulação complexa, diferenciada e não apenas uma sucessão de extremos maniqueístas.
O Universo é muito, muito mais elaborado do que isso.

(1) Considerações de ótica esotérica


Como complementação ao aprofundamento da noção de Carma e interação multidirecional, imaginemos o seguinte experimento:
Em um quarto de lados absolutamente iguais, colocamos em seu centro uma cadeira. A parede em frente a cadeira, para onde a cadeira está virada, é toda ela espelhada. Acima da cabeça do indivíduo, sentado, existe uma luz apagada ligada a um potenciômetro, que possibilita a intensificação gradual da luminosidade até um ponto máximo.
O indivíduo, paulatinamente, vira o botão do potenciômetro, de forma que a imagem do indivíduo vai surgindo aos poucos à sua frente.
Uma imagem, um espelho, um reflexo.
Agora, mantidas as condições acima, façamos em nossa imaginação que a parede imediatamente atrás do nosso observador sentado também se torne espelhada.
Agora, quando aos poucos ele aumentar a luminosidade, verá surgir a sua frente um numero infinito de imagens produto da reflexão contínua entre o espelho da frente e o de trás.
Para aumentar a complexidade, transformemos em espelhos as paredes laterais do quarto. A sensação de profundidade será incrementada e a enormidade de reflexos dará ao observador uma pequena idéia do conceito de infinito.
Poderíamos ainda criar paredes adicionais espelhadas, transformando o quarto de um quadrado perfeito em um hexágono ou um octógono, ou para fugir aos números pares, um eneágono, todo feito de paredes espelhadas que se refletem, umas as outras de modo ininterrupto.
Esta é a imagem que me vem a mente quando considero as complexas interelações cármicas desencadeadas por um único evento.

sábado, 3 de janeiro de 2015