Multi pertransibunt et augebitur scientia (Muitos passarão, e o conhecimento aumentará).

domingo, 27 de março de 2016

A BÊNÇÃO DO DEMÔNIO



Por Mario Sales




É dito no prefácio do Sepher Yetzirah comentado pelo rabino Arieh Kaplan, que “recomenda-se ao estudante de Cabala jamais faze-lo sozinho, já que em determinado momento do estudo, é preciso que a presença de um acompanhante evitará confusões entre o que é real e o que não é”.



Esta afirmação, que estimula a imaginação do leitor, deve ser lida com a prudência necessária.
Eu tenho nesta fase da vida um companheiro de estudo pelo que agradeço a Deus todos os dias. Estudar acompanhado, ter alguém para discutir os detalhes da leitura, profundos ou banais, torna lúdico o que seria sem esta companhia, insuportável.
E no frigir dos ovos, ler em conjunto clareia a mente e melhora a percepção. Ainda mais que, como no meu caso, o interlocutor e companheiro de leitura conhece o assunto mais do que eu.
Ao ler acompanhados, evitamos o engano, a confusão entre impressões falsas e corretas, entre interpretações equivocadas e outras mais sensatas, em consonância com o autor.
Não quer dizer apenas que evitamos que, ao realizarmos materializações ou invocações, e nos deparemos com estranhos seres ou estranhas visões, o fato de testemunhá-las a dois ou três tornaria tal experiência mais fáceis e suportáveis.
Acreditem, não são.
O que a leitura em grupo de textos esotéricos permite, isto sim, é aumentar nossa lucidez sobre os assuntos discutidos e estudados. Vejo por mim mesmo: embora a parte poética me encante, não me satisfaz. Ás vezes até atrapalha.
Em duas ou três pessoas isto fica mais evidente. O diálogo e o estudo em conjunto evita digressões como esta, aqui e agora.
Nem sei mais sobre o queria escrever.
Aliás, frequentemente enveredo por um pensamento e um encadear de idéias que me distrai como se me fascinasse por uma planta no meio do caminho e esquecesse da própria caminhada.
Paciência: não tenho prazos nem compromissos de velocidade, mas preciso aprender a manter o foco.
Talvez seja isso que o Ocultismo retire do Esoterismo puro e simples: o foco. E é isto que a Lucidez no trabalho esotérico precisa retomar.
Existe um autor rosacruz, Joshua Maguid, Ph.D., FRC, que cita Dion Fortune, (codinome de Violet Mary Firth Evans), ao dizer que a “Kabbalah prática” (ou Ocultismo, no Ocidente) “consulta à teurgia e à mágica, tentando influenciar o reino Divino e produzir efeitos práticos no mundo material. A alguma extensão, entretanto, estas distinções podem ser um tanto arbitrárias. Alguns autores modernos na tradição Hermética ou mágica vêem a mágica mais como um sistema do desenvolvimento espiritual melhor que um exercício do poder pessoal”.
Quanto a este trecho sublinhado tenho minhas dúvidas.
Se tomarmos Esoterismo como a prática de estudos teóricos da Tradição e o Ocultismo como a prática desses conhecimentos com a intenção de conseguir certos efeitos na realidade, penso que nenhuma pessoa, ninguém, dedicar-se-ia ao Ocultismo apenas para aumentar sua autopercepção, seu autoconhecimento.




Quando, e se eu faço um Golen, por exemplo, através de certas técnicas meditativas do Sepher Yetzirah, para me ajudar em meu laboratório alquímico, de forma que ninguém tenha acesso ao meu trabalho e mesmo assim eu tenha um auxiliar, existe um objetivo meramente administrativo nesse feito.
E esta é a única forma de usar o Ocultismo da forma correta. Nenhum cabalista sério faz um Golen apenas e tão somente para mostrar que pode fazê-lo. Nenhum Cabalista busca nesta realização, glória pessoal ou envaidecimento. Quer apenas ajuda com os inúmeros trabalhos que um Ocultista judeu ou não, tem em seu metiê. Daí ele cria um androide esotérico para isso. Existe uma razão prática para tal.
Doutro modo, invocar seres astrais, alterar o clima, influenciar pessoas a distância, que outra finalidade pode ter do que exercer Poder sobre tudo e sobre Todos?
Não, Ocultismo, via de regra, não busca aperfeiçoamento espiritual. Dion Fortune está errada. Ocultismo, para a maioria dos aprendizes de feiticeiro espalhados pelas sombras, é uma ponte para o prestígio, sabe-se lá em que meio, uma maneira de ter domínio principalmente sobre personalidades imaturas, prontas a curvarem-se ao primeiro Mago Simão que apareça.
Esoteristas amadurecidos não precisam de efeitos teatrais para confirmarem o que sentem em seus corações, estão livres da maldição da ignorância descrita em João 48:8:
“-Se não virdes sinais e milagres, não crereis. ”
Aliás, pessoas equilibradas não buscam nem mesmo mestres, não precisam de mestres, de Gurus. Pode parecer paradoxal um hinduísta falar estas coisas, mas não posso evitar de pensar da maneira que aprendi e com os elementos que acumulei ao longo desta existência. 
E a minha experiência é que pessoas que precisam de mestres não estão prontas para serem discípulas.
O tal ditado que diz que “quando o discípulo está pronto...” por “pronto” quer dizer amadurecido o suficiente para não ter falsas expectativas sobre qualquer relação de aprendizado. Desfruta desta relação aquele que não transfere ao seu Mentor o peso de carregar o esforço de ambos apenas em suas costas.
E assim segue a existência, com pessoas transferindo responsabilidades a outras que fingem recebe-las apenas para manter aquele status quo de dependência.
Uma coisa é consolar aqueles que sofrem e necessitam de consolo. Outra é querer tirar o direito de cada um de passar pelas dificuldades que a vida lhes apresenta.
Não digo que a convivência com homens sábios não seja útil ou necessária. Ao contrário, a companhia desses indivíduos, nem que seja no mesmo planeta já é, em si, uma bênção indiscutível.
Falo de atitudes internas, de posições mentais e psicológicas. 



É isto que destrói a possibilidade da relação de discipulado.
Quando falamos que é preciso entregar-se ao Guru, render-se à sua orientação, dizemos isto no sentido de que “só Shiva é Guru” e aquele homem ou mulher que aceitamos como nosso orientador e que nos aceita como seu orientando, representa a manifestação de Shiva no corpo de um ser humano. Não ele, mas aquilo que ele representa, deve ser nosso foco. É isto que o Guru é: um foco, um centro de Mandala no qual nos concentramos para chegar a um estado de concentração mais perfeito.


O esforço na busca desse estado perfeito de concentração, entretanto, é nosso, apenas nosso. Nenhum Mestre verdadeiro fará por seu discípulo aquilo que ele, discípulo, precisa fazer por si mesmo.
Não poderia ser de outra forma.
É uma relação entre almas evoluídas, amadurecidas, lúcidas.
Lucidez é fundamental. 

E esta é a simbologia oculta em Satã.


Satã é também Lúcifer, o portador da Luz, aquele que cai por que pensa por si mesmo, por que opta por gerir seu próprio destino e assume as consequências disto.
Uma interpretação esotérica do conceito de Lúcifer deve por isso ser também aquela que dá a ele o caráter simbólico da parte de Deus que mergulha na carne, na criação material, e mudando de meio, inverte seu sinal e modo de manifestação. Satã é um Anjo. Todo Anjo é uma extensão do Altíssimo, o Ain, o Nada que ainda assim, parafraseando Blavatsky, é o Tudo.
Lúcifer, com toda a sua riqueza simbólica e aspecto terrível, também é uma extensão de Deus.
E não admira que esteja cercada do Fogo por todos os lados, seja na sua forma ocidental cristã, como senhor dos infernos, seja na sua apresentação nos mitos gregos como Hefesto, ou nos mitos romanos como Vulcano.



É o fogo o elemento da transformação, que dá sabor ao alimento, que transforma as substâncias que a ele são expostas. Do mesmo modo a Lucidez é um fogo que tudo transforma, que queima as máscaras e revela a face das coisas e das pessoas.
Ela destrói as trevas pois todo Fogo gera Calor e Luz.
E se existe algo do que necessitamos desesperadamente nesta existência incerta e tortuosa é de Luz, da Lucidez que advém desta Luz, ao penetrarmos relacionamentos ou textos.
Existem duas formas de iluminar o Caminho: pela Intuição e pela Razão. A intuição é fenômeno de conexão com o Divino, o Uno; a Razão é a conexão com Satã, o que divide e analisa. Iluminar, muitas vezes, é ver mais claramente as partes componentes de um composto.
Em relação ao exercício interpretativo e de exegese das motivações por trás dos comportamentos das pessoas e do significado dos textos, mais que inextrincáveis que nos chegam, é da Lucidez, e neste contexto, do toque e da bênção do Demônio, que precisamos para avançar em uma floresta de personalidades e práticas todas rotuladas inadequadamente sob o mesmo nome: esoterismo.
Na verdade, o Demônio não está em nós, nós somos o Demônio, fagulha de Deus que mergulha na Carne, anjo que cai e se transforma na Humanidade que habita Malkut.
Nossa marca dessa herança, que só verdadeiros esoteristas entenderão, é a Razão que está em nós e que, quando usada chamamos de Lucidez, a capacidade de lançar Luz sobre todas as coisas e pessoas. 


Guaita


Confirmando estas reflexões, em “O Templo de Satã”, o 2º ensaio de cinco chamados de “Ensaios sobre Ciência Maldita”, o jovem Marquês Stanislas de Guaita escreve, no capítulo 1:
“No sentido vulgar – familiar a todos aqueles que a ciência divina não conta entre seus adeptos – a serpente do Gênese simboliza o Diabo, o espírito do mal, personificação de Satanás.
-Satanás? O diabo? O Maligno?...vamos, você quer que eu ria! Quem jamais o viu, espectro de fumaça? Onde aparece, senão na névoa das imaginações perturbadas e doentes ou no caleidoscópio obscuro das almas fracas e timoratas?... Alguma vez tomou forma acessível aos sentidos, ao testemunho exclusivo de que faço profissão de crer? Não; só para Deus, seu tirânico antagonista, só para Deus, seu carrasco impiedoso, a presença de Satanás se manifesta no Universo...o diabo, senhor, poderia dizer-me aonde mora?
Ao materialista que assim fala ninguém lembra de replicar com simplicidade: - Ele habita em você. ”
Verdadeiros esoteristas devem assumir sua ascendência e suas origens. Ele, Satã, com seu atributo mais exuberante, a Luz, a Lucidez, nos provê a razão que tudo queima e que extrai sentido de todos os acontecimentos.
É a Lucidez que separa, com sagacidade, Fantasia de Imaginação; dá, além disso, instrumentos de navegação ao esoterista, caso este dê o passo em direção ao Ocultismo.
Não é possível atingir refinamento esotérico, ou proficiência no seu braço prático, o Ocultismo, sem antes munir-se de Lucidez.
Esta mesma Lucidez que podemos chamar também de a verdadeira bênção do Demônio em nós.

2 comentários:

  1. Marinho, discípulo do todinho, é necessário ao verdadeiro místico, essa mística necessidade do necessário, real, para evocar e invocar ajuda aos mestres das correntes astrais. As verdadeiras sendas, exorta os seus estudantes, esta observação, a amorc é um delas.

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    1. Obrigado por seu comentário querido irmão Amadeu. Saudades.PP

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