Por Mario Sales
Por causa de minhas argumentações e da veemência com que as defendo, já fui acusado de ser excessivamente crítico.
A palavra “crítica” tem a sua origem na palavra grega “krysys”, que significa separação, decisão, definição.
No sentido filosófico do termo, crítica é, portanto, separar em partes menores um grande problema ou questão, no intuito de compreendê-lo mais profunda e adequadamente.
Criticar, em filosofia, não é falar mal, ou denegrir, ou infamar determinada pessoa ou instituição.
É desnudá-la, através de um processo racional; pensá-la em partes como ensinou o nobre rosacruz francês Renée Descartes, tão esquecido hoje entre os seus fratres e sorores contemporâneos, independente do fato de nosso imperator ser também de origem francesa.
É preciso recuperarmos o cartesianismo rosacruciano, ainda mais hoje, época em que a magia cerimonial, ou mesmo a chamada cabala cristã assumiram seu papel de curiosidade histórica, salvo para alguns viúvos do chapéu de ponta e das palavras obscuras.
O saudosismo de técnicas rituais dramáticas e de aspecto pirotécnico, tão criticadas por Saint Martin, ainda no tempo de Pasqualy na chefia dos Ellus Cohen, é incompreensível em dias atuais, a não ser se consideramos o papel midiático de Papus e de seus companheiros no final do XIX.
Papus como Stanislas de Guaita eram importantes intelectuais (talvez mais Guaita que Papus), mas ambos dedicados leitores e publicadores, sendo que Papus chegou a publicar 160 títulos. Os dois eram colunas de sustentação do Groupe Indépendant d’Études Ésoteriques (Grupo independente de estudos esotéricos) e reconstruíram juntos a Ordem Martinista, dizem alguns, para oferecer ao ambiente esotérico francês uma tradição que fizesse frente a Sociedade Teosófica de Helena Blavatsky, que naquela época tinha um indiscutível prestígio. Valendo-se do fato de que a Doutrina de Blavatsky era preponderantemente descrita em termos hinduístas, com uma terminologia às vezes impronunciável, enquanto a tradição do Martinismo remetia à cavalaria e aos maçons de Lyon, bem como à conceitos e valores cristãos, Papus, Guaita e Chaboseau foram extremamente bem sucedidos em amealhar rapidamente um grande grupo de adeptos aos três graus de sua iniciativa martinista, que ao contrário da vontade de Saint Martin, não liberava os seus membros de frequentar um local determinado. É sempre interessante recordar que, após a morte de Pasqualy, Saint Martin publicou vários livros, estabelecendo as bases de um movimento autônomo baseado na iniciação pessoa-pessoa, diferente do outro braço originário do finado grupo dos Ellus Cohen, o de Vilermoz, que fundou lojas ao estilo maçônico, aonde os interessados compareciam para a prática do que ele chamou de Rito Escocês Retificado.
Como já mostrei nesse espaço, a Ordem Martinista de Papus e Guaita é Willermoziana e não Martinista, na forma.
O Martinismo de Papus tinha templos, as chamadas Heptadas, compostas de sete oficiais, e graus, cujos detalhes podem ser encontrados em um interessante, esclarecedor e didático artigo disponível no site Hermanubis, no link http://www.hermanubis.com.br/OMOrdensMartinistasVisiveis.htm#OMdePapus.
Foi este momento histórico descrito, uma ação conjunta dos discípulos de Eliphas Levy, que fortaleceu a idéia de que a Magia Cerimonial ainda tinha um lugar no mundo contemporâneo. Foi preciso que Spencer Lewis fizesse a tradução e a atualização dos ensinamentos da rosacruz francesa, passados por Hyeronimus, para que o Ocidente recebesse uma versão mais adequada ao padrão do século XX. Pode-se citar ainda outras iniciativas que se esforçaram para preservar práticas mágicas tradicionais.
Em minha opinião, entretanto, a influência literária do Groupe Indépendant d’Études Ésoteriques sobre os esoteristas de todo o mundo foi muito mais marcante.
Lewis, por sua vez, de maneira brilhante e sintética, reduziu todas as práticas mágicas anteriores à visualização criativa, e concentrou toda a espiritualidade rosacruciana no modelo da via cardíaca, que entre rosacruzes já era comum antes de ser nomeada por Saint Martin. Aliás, perceber que bastaria olhar para dentro para descobrir Deus em nós e comunicar-se com o Altíssimo não era uma ideia original de Louis Claude, mas um valor consolidado entre os místicos em todo o mundo, e foi por exemplo a base para a perseguição e massacre dos Cátaros, em Languedoc na data distante de 21 de julho de 1209.
Por identificar-se com o discurso de Saint Martin, Lewis viu que precisava preservar seu legado e esforçou-se, durante a vigência da FUDOSI, para conseguir autorização e continuar o trabalho de Papus. Assim a Tradicional Ordem Martinista, TOM, passou a ser abrigada sob a égide da Rosacruz, como os conhecimentos dos essênios e dos Iluminati também o foram.
Isto é criticar, no estilo Cartesiano: analisar as partes, reconhece-las e não confundi-las.
Rosacrucianismo e Martinismo da TOM são caminhos diversos, sendo que o Universo rosacruz é muito, mas muito mais amplo e complexo.
Podem e devem ser experimentados mantendo em mente que são doutrinas diferentes nascidas de contextos também diferentes.
É a única forma de evitar a martinização do rosacrucianismo, o que seria, considerando a herança cerimonial da TOM, um retrocesso metodológico para uma Ordem como AMORC, a qual há um século, pelo esforço magnífico de síntese de Lewis, descobriu a vertente da visualização mental, do controle da imaginação, como a espinha dorsal e verdadeira da arte que antigamente era chamada magia.