Multi pertransibunt et augebitur scientia (Muitos passarão, e o conhecimento aumentará).

domingo, 29 de janeiro de 2017

ROSACRUCIANISMO, MARTINISMO, LEWIS E DESCARTES.



Por Mario Sales



Por causa de minhas argumentações e da veemência com que as defendo, já fui acusado de ser excessivamente crítico.
A palavra “crítica” tem a sua origem na palavra grega “krysys”, que significa separação, decisão, definição.
No sentido filosófico do termo, crítica é, portanto, separar em partes menores um grande problema ou questão, no intuito de compreendê-lo mais profunda e adequadamente.
Criticar, em filosofia, não é falar mal, ou denegrir, ou infamar determinada pessoa ou instituição.
É desnudá-la, através de um processo racional; pensá-la em partes como ensinou o nobre rosacruz francês Renée Descartes, tão esquecido hoje entre os seus fratres e sorores contemporâneos, independente do fato de nosso imperator ser também de origem francesa.
É preciso recuperarmos o cartesianismo rosacruciano, ainda mais hoje, época em que a magia cerimonial, ou mesmo a chamada cabala cristã assumiram seu papel de curiosidade histórica, salvo para alguns viúvos do chapéu de ponta e das palavras obscuras.
O saudosismo de técnicas rituais dramáticas e de aspecto pirotécnico, tão criticadas por Saint Martin, ainda no tempo de Pasqualy na chefia dos Ellus Cohen, é incompreensível em dias atuais, a não ser se consideramos o papel midiático de Papus e de seus companheiros no final do XIX.
Papus como Stanislas de Guaita eram importantes intelectuais (talvez mais Guaita que Papus), mas ambos dedicados leitores e publicadores, sendo que Papus chegou a publicar 160 títulos. Os dois eram colunas de sustentação do Groupe Indépendant d’Études Ésoteriques (Grupo independente de estudos esotéricos) e reconstruíram juntos a Ordem Martinista, dizem alguns, para oferecer ao ambiente esotérico francês uma tradição que fizesse frente a Sociedade Teosófica de Helena Blavatsky, que naquela época tinha um indiscutível prestígio. Valendo-se do fato de que a Doutrina de Blavatsky era preponderantemente descrita em termos hinduístas, com uma terminologia às vezes impronunciável, enquanto a tradição do Martinismo remetia à cavalaria e aos maçons de Lyon, bem como à conceitos e valores cristãos, Papus, Guaita e Chaboseau foram extremamente bem sucedidos em amealhar rapidamente um grande grupo de adeptos aos três graus de sua iniciativa martinista, que ao contrário da vontade de Saint Martin, não liberava os seus membros de frequentar um local determinado. É sempre interessante recordar que, a
pós a morte de Pasqualy, Saint Martin publicou vários livros, estabelecendo as bases de um movimento autônomo baseado na iniciação pessoa-pessoa, diferente do outro braço originário do finado grupo dos Ellus Cohen, o de Vilermoz, que fundou lojas ao estilo maçônico, aonde os interessados compareciam para a prática do que ele chamou de Rito Escocês Retificado.
Como já mostrei nesse espaço, a Ordem Martinista de Papus e Guaita é Willermoziana e não Martinista, na forma.
O Martinismo de Papus tinha templos, as chamadas Heptadas, compostas de sete oficiais, e graus, cujos detalhes podem ser encontrados em um interessante, esclarecedor e didático artigo disponível no site Hermanubis, no link http://www.hermanubis.com.br/OMOrdensMartinistasVisiveis.htm#OMdePapus.
Foi este momento histórico descrito, uma ação conjunta dos discípulos de Eliphas Levy, que fortaleceu a idéia de que a Magia Cerimonial ainda tinha um lugar no mundo contemporâneo. Foi preciso que Spencer Lewis fizesse a tradução e a atualização dos ensinamentos da rosacruz francesa, passados por Hyeronimus, para que o Ocidente recebesse uma versão mais adequada ao padrão do século XX. Pode-se citar ainda outras iniciativas que se esforçaram para preservar práticas mágicas tradicionais. 

Em minha opinião, entretanto, a influência literária do Groupe Indépendant d’Études Ésoteriques sobre os esoteristas de todo o mundo foi muito mais marcante.
Lewis, por sua vez, de maneira brilhante e sintética, reduziu todas as práticas mágicas anteriores à visualização criativa, e concentrou toda a espiritualidade rosacruciana no modelo da via cardíaca, que entre rosacruzes já era comum antes de ser nomeada por Saint Martin. Aliás, perceber que bastaria olhar para dentro para descobrir Deus em nós e comunicar-se com o Altíssimo não era uma ideia original de Louis Claude, mas um valor consolidado entre os místicos em todo o mundo, e foi por exemplo a base para a perseguição e massacre dos Cátaros, em Languedoc na data distante de 21 de julho de 1209.
Por identificar-se com o discurso de Saint Martin, Lewis viu que precisava preservar seu legado e esforçou-se, durante a vigência da FUDOSI, para conseguir autorização e continuar o trabalho de Papus. Assim a Tradicional Ordem Martinista, TOM, passou a ser abrigada sob a égide da Rosacruz, como os conhecimentos dos essênios e dos Iluminati também o foram.
Isto é criticar, no estilo Cartesiano: analisar as partes, reconhece-las e não confundi-las.
Rosacrucianismo e Martinismo da TOM são caminhos diversos, sendo que o Universo rosacruz é muito, mas muito mais amplo e complexo.
Podem e devem ser experimentados mantendo em mente que são doutrinas diferentes nascidas de contextos também diferentes.
É a única forma de evitar a martinização do rosacrucianismo, o que seria, considerando a herança cerimonial da TOM, um retrocesso metodológico para uma Ordem como AMORC, a qual há um século, pelo esforço magnífico de síntese de Lewis, descobriu a vertente da visualização mental, do controle da imaginação, como a espinha dorsal e verdadeira da arte que antigamente era chamada magia.

FILOSOFIA NO DIA A DIA, MARIO SERGIO CORTELA

sábado, 21 de janeiro de 2017

SUTILEZAS IMPERCEPTÍVEIS



Por Mario Sales FRC, SI




Recebi este trecho para meditação de um muito querido Frater e amigo, um defensor da Ordem Rosacruz indiscutível, artesão da Ordem como eu.
O trecho, de rara beleza, esconde, entretanto, um detalhe que me preocupou sobre maneira.
Meu último post para o blog (Discursos), não me agradou na forma embora eu reitere o conteúdo como importante. No entanto, ao relê-lo, achei que não tinha sido claro o suficiente nas minhas colocações. Foi, portanto, oportuno a chegada deste trecho de uma monografia para exemplificar de forma indiscutível o tema que eu debatia naquele texto.
Estamos transformando de maneira sutil e discreta, nossa Ordem, de uma escola esotérica em uma religião, e isso é muito preocupante.
É claro que “ o amor a Deus é indissociável do misticismo e só pode senti-lo quem vive em harmonia com as leis divinas.” O diferencial de uma Ordem Esotérica é a percepção deste aspecto sem as vestes de um grupo religioso, sem seu dogmatismo, sem rituais aonde a vela é mais importante do que a luz que ela representa.
Portanto falar em Fé Rosacruz, partindo do princípio de que os rosacruzes não creem na Ordem como devotos, mas sabem de seu papel na formação do espiritualismo internacional, é uma afirmação delicada, preocupante e equivocada quanto a natureza de nosso trabalho nestes últimos milênios.
Ao longo destes quarenta anos de envolvimento com o trabalho rosacruciano na AMORC, tenho me esforçado, como palestrante e membro, a mostrar, com dificuldade, a diferença entre as visões de um grupo meramente religioso e outro, de natureza esotérico mística.
Nem todas as pessoas têm claro para si esta peculiaridade, esta sutileza de diferençar uma e outra coisa.
Tal equivoco me fez por exemplo publicar um ensaio chamado “Desconforto”, em 26 de dezembro de 2010, aonde eu comentava o mal-estar para membros da Ordem budistas, umbandistas, hinduístas ou judeus, ao ver uma imagem de capa na revista O Rosacruz, de dezembro de 2010, em que a nave do Sanctum Celestial é reproduzida pelo artista Nicomedez Gomez, mas ao invés de no altar se visualizar um triângulo de vértice para baixo violeta, via-se a imagem do Cristo, como se estivéssemos em uma igreja católica.



Talvez muitas pessoas achem um excesso de zelo preocupar-se com tais detalhes, mas recebi comentários de budistas rosacruzes que disseram terem sentido o mesmo desconforto, o desconforto que atinge todos que se vêem preteridos em suas crenças particulares, no momento em que uma dessas crenças recebe um destaque especial, destaque este que dentro de uma Ordem Esotérica com um grupo heterogêneo de pessoas não faz o mínimo sentido.
Não somos uma fé.
Não existe uma fé rosacruz, mas uma tradição preservada por nossa Ordem que é, como de resto todas as tradições são, resultado do cruzamento de várias culturas e compreensões de mundo, desde o Egito Antigo, passando pela Grécia, Roma, pelos Essênios, pela Europa do Sul e do Norte, com a participação ativa de pensadores de linha protestante na elaboração dos Manifestos do século XVII, nos quais reproduziam símbolos universais, atemporais, e como tal capazes de ser absorvidos por esoteristas pertencentes a qualquer linha de crença religiosa.
As palavras têm um peso e um significado, e mesmo aqueles que não se dão conta disso, são influenciados e levados a determinadas visões de mundo por causa dessas palavras.
Por isso é preciso muito cuidado com o que escrevemos para evitar equívocos, para não cairmos em discursos que lembrem uma fala religiosa, principalmente em função da história perversa ligada a crenças e a diferenças de visão de mundo. Precisamos nos esforçar, nós os responsáveis pelo trabalho e pelos textos da AMORC, tenhamos ou não cargos burocráticos na sua administração, de manter estes textos em um nível de neutralidade suficiente para impedir que nossos fratres e sorores se sintam desconfortáveis.
É preciso lembrar que nem todos nós, membros da Ordem, embora respeitemos o trabalho do Cristo, temos o cristianismo como religião. É preciso lembrar que alguns de nós não tem religião alguma e se sentem confortáveis em pertencer a um grupo em que sua sensibilidade espiritual não está submetida a dogmas.
É preciso, finalmente, não esquecer que o rosacruz não tem fé em seu conhecimento, mas confiança, oriunda de verificação de efetividade e aplicabilidade desses conhecimentos e técnicas que compõem nosso saber tradicional.
Esta fala não é minha, mas de Spencer Lewis, e está disponível em todas as monografias que li, e que acredito que todos os artesãos como eu leram,  ao longo desses últimos quarenta anos.

terça-feira, 17 de janeiro de 2017

DISCURSOS,DISCURSOS,DISCURSOS

Por Mario Sales FRC, SI

Emil Cioran



Estimular comportamentos éticos é sem dúvida um objetivo meritório. É a primeira função dos educadores e líderes sociais,principalmente com seu exemplo pessoal.
Existem, portanto, duas formas de provocar modificações positivas de caráter em outras pessoas: pela demonstração prática ou por elaborações teóricas convincentes, a técnica da persuasão.
Dentre as técnicas teóricas podemos distinguir também dois tipos: através de provocações teóricas intelectualmente instigantes ou pelo método do discurso moralista.
Em uma coletividade de pessoas voltadas para a finalidade de autoaperfeiçoamento, manda a boa estratégia que se use o primeiro tipo de abordagem teórica, aquela que provoca reações mais profundas. Para isso, não é preciso reinventar a roda.
A humanidade dispõe de um acervo de reflexões intelectuais de grande beleza e elegância, acervo este construído do trabalho intelectual de vários e magníficos pensadores ao longo das épocas.
São filósofos e poetas, além de escritores místicos que deixaram suas ideias registradas em textos iluminados sobre variados temas importantes à convivência humana, à construção de uma personalidade digna e a estruturação de um suporte intelectual que possa fortalecer o espírito de tantos seres humanos que tem em comum, na experiência da existência, a perplexidade com a força do acaso em nossas vidas e o receio do sofrimento e da morte, seja a nossa ou de entes queridos.
Embora tenhamos várias vezes, a vaidade de acreditar termos a habilidade de organizar em palavras, a partir de nossa própria experiência, um conjunto de textos, que descrevam ideias e sensações capazes de servir de farol para a vida de outras pessoas, poucos entre nós tem este talento, este dom, de falar sobre as coisas da existência sem o apelo a uma abordagem piegas e melodramática.
Abordagens que recorrem a lugares comuns, com a profundidade de uma poça de chuva em uma estrada de terra, abundam nas livrarias e constituem uma fonte de lucros fáceis, já que embora existam pensadores que defendam que o homem supere, por seu próprio esforço, a necessidade de muletas, o inevitável constrangimento da vida social, com suas idas e vindas, principalmente no campo dos relacionamentos, faz com que o exercito de necessitados espiritualmente de orientação aumente a cada dia.
Infelizmente, este fato gera como todos sabem um mercado extremamente lucrativo para charlatães e embusteiros de todas aas espécies.
A grande maioria das pessoas tem um modo de pensar extremamente simplista, são psicologicamente infantis e emocionalmente influenciáveis. E é exatamente dessa fragilidade que os maus intencionados se aproveitam para criar em torno de si uma legião de seguidores dependentes, fenômeno tão comum em nossos dias como em épocas passadas. E existem charlatães em todos os meios, seja na política como no espiritualismo, no meio esotérico e mesmo entre respeitados escritores.
Mas esse é outro tema para outro ensaio. Aqui nos cabe discutir a natureza dos discursos estimuladores do caráter.
Consciente daquela herança cultural supracitada que a humanidade detém, a Ordem Rosacruz tem por hábito colocar na contra capa de suas apostilas trechos de pensadores consagrados, página esta conhecida como Concordância, no sentido de demonstrar que o assunto tratado naquela apostila encontra apoio no pensamento de filósofos ou pensadores renomados de todas as épocas.
Mesmo assim, nós, artesãos, temos visto uma piora na qualidade dos discursos internos, lidos nas reuniões reservadas da fraternidade. Muitos textos lidos em loja nos parecem mais com um conjunto de repreensões morais do que um estímulo a reflexão e a um comportamento mais equilibrado.
Em alguns momentos, aos mais antigos membros da Ordem, parece que nos tornamos um grupo de moralistas e que nossos discursos internos visam nos dizer como devemos viver ao invés de nos fortalecer com elementos conceituais consagrados que ajudem o fortalecimento de nosso espírito crítico e nos municie nesta perigosa guerra mental na qual estamos permanentemente envolvidos.
E de que tipo de guerra estamos falando? Guerra contra as ideias superficiais, contra a mediocridade, contra a charlatanice de toda a espécie. Guerra, enfim, contra a mesmice intelectual.
A única defesa contra a mediocridade é a cultura. Nossos textos internos devem, embora acessíveis, manter a característica de evitar cair no lugar comum da autoajuda, das frases de efeito, das recomendações banais acerca de um comportamento social deste ou daquele tipo.
Não são todos os textos que apresentam estes vícios, mas alguns são difíceis de crer que tenham sido preparados para uma reunião de elevação espiritual.
Sempre me orgulhei de pertencer a uma Ordem que não discutia assuntos de natureza pessoal, que fazia considerações sobre escolhas pessoais, orientação política ou sexual. Nosso objetivo como rosacruzes é nos tornarmos seres humanos melhores a partir do ponto em que estamos, e não a partir de um critério de perfeição determinado por alguém em alguma sala fechada.
O espírito se manifesta de variadas formas, ou como lembra o Bhaghavad Gita, o mesmo Krishna tem milhares de bocas e rostos. O que importa, portanto, é estimular nossos membros a consumirem alimento espiritual de boa qualidade, a lerem os filósofos, mesmo aqueles que como Cioran[1] “nasceram sem o órgão da fé”. Não importa. Muitas vezes o raciocínio de um ateu é mais interessante e preciso do que o discurso piegas de um crente. E um raciocínio adequado, com ideias claras e distintas, ajuda as mentes a construírem uma personalidade imune aos cantos de sereia dos vampiros de almas espalhados pelo planeta.
A Ordem Rosacruz, ao contrário das religiões, não consola sofredores, mas os instrui, para que se fortaleçam e cresçam em capacidade mental e espiritual.
Nossos discursos lidos em ambiente reservado devem ser, portanto, didáticos e claros, mas sempre livres do apelo fácil das recomendações de conduta, focando estimular cada um dos membros a procurar, por seu próprio esforço, as respostas aos seus questionamentos, não só na tradição esotérica, mas, principalmente, na tradição intelectual filosófica e científica, que em si representa o esforço coletivo da humanidade para libertar-se da ignorância, essa sim, nossa verdadeira e mais perigosa inimiga.
Contra ela voltemos todas as nossas forças.

[1 Emil Cioran (Rasinari, 8 de abril de 1911 - Paris, 20 de junho de 1995) foi um escritor e filósofo romeno radicado na França. Em 1949, ao publicar "précis de decomposition", passa a assinar E.M. Cioran, influenciado por E.M. Forster -esse "M" não tem nenhuma relação com outros nomes do filósofo (como Michel, Mihai, etc.