Multi pertransibunt et augebitur scientia (Muitos passarão, e o conhecimento aumentará).

terça-feira, 16 de junho de 2020

TEMOS DE CARREGAR A NOSSA PRÓPRIA CRUZ


Por Mario Sales





Esses dias de reclusão têm sido produtivos, intelectualmente. A sociedade teosófica, da mesma forma que a AMORC, tem feito Lives, de segunda a domingo, com grupos de estudo de 7 temas diferentes. O tema das segundas trabalha as Cartas dos Mahatmas, um conjunto de missivas de Ku-Thu-Mi, Morya e Hilarion, entre os anos de 1870 a 1900 entre diversas pessoas, entre as quais, parentes de Blavatsky, que recebem a primeira delas, e depois um editor chamado Alfred Percy Sinnet, um amigo seu, Alan Octavian Hume, e o próprio coronel Olcott, fundador juntamente com Blavatsky da Sociedade Teosófica.
O interesse dos Altos iniciados com esta correspondência, que viria a publico apenas nas primeiras décadas do século XX, a partir de 1939, portanto após a morte de Sinnet e de todos os citados, era estratégica, e visava dar a conhecer ao mundo ocidental, sua existência, seus trabalhos e a natureza complexa de sua instituição, a assim chamada Grande Loja Branca.
As cartas foram objeto de controvérsia, e Blavatsky foi mesmo acusada de forjá-las por um perito de uma sociedade de pesquisas inglesa, cujo relatório, devastador na época, em 1885, foi objeto de retratação pela própria instituição que o produziu, 101 anos depois, em 1986. Após a revisão feita por um segundo investigador ficou esclarecida a má intenção do primeiro investigador, seus graves erros de investigação, que trouxeram grande sofrimento moral à “velha senhora”.  
Uma coisa que salta aos olhos nas cartas é a preocupação dos Mestres ou Mahatmas (Grandes Almas) de deixar claro sua natureza eminentemente humana. Em todas as ocasiões possíveis, procuram afastar de si todo estereótipo de seres divinos e anormais, deixando claro que eram e são apenas seres humanos como todos nós que atingiram pelo tempo e esforço uma condição física, mental e espiritual diferenciada, superior a nossa, mas a qual todos que tiverem o mesmo percurso poderão e deverão atingir. A preocupação em afastar de si o manto de santos como são conhecidos os seres elevados espiritualmente pelos católicos e cristãos, é constante nas cartas.
Ku-Thu-Mi é um dos mestres envolvidos mais diretamente nesta correspondência. Junto com Morya, mestre pessoal de Blavatsky, ele fomenta a criação da sociedade teosófica, com ela e Olcott.
Não por coincidência, K-H, como é conhecido, é também o Hierofante da Ordem Rosacruz.



KU-THU-MI


A palavra hierofante tem o significado de “sacerdote que, nas religiões de mistérios do Egito e da Grécia antiga, notadamente em Elêusis, instruía os futuros iniciados”.
Ou seja, trata-se do responsável espiritual por nossa Ordem. Daí a importância destas cartas para a maioria dos rosacruzes como uma oportunidade objetiva de conhecer o pensamento de nosso mais elevado dignitário.
Ordens como a AMORC são associações voltadas a transmissão do conhecimento da tradição, e a levarmos em conta o esforço para desfazer equívocos em relação a natureza deles mesmos, reafirmando sua condição humana, os Mestres como Ku-Thu-Mi não fundaram escolas como se funda religiões, ou seja, jamais chamaram para si quaisquer aspectos de caráter devocional, deixando claro que o Universo tem leis, como a Lei do Karma, e que a prosperidade, a felicidade e o sucesso de cada individuo estão diretamente ligados a suas ações no mundo, pelas quais serão cobrados ou abençoados por sua responsabilidade.
Não há no ensinamento das escolas esotéricas o culto a personalidades que fariam por nós nosso trabalho, como é comum ver nas religiões.
Aliás, escolas esotéricas não são religiões, mais centros de formação de mentes mais lucidas, evoluídas e aperfeiçoadas de forma que os membros destas escolas  tornam-se lideres sociais como também espirituais.
Nas cartas, Ku-Thu-Mi e Morya são bastante críticos em relação a todas as religiões, inclusive ao cristianismo, não como instituições, mas como organizações. A fé como manifestação de devoção a Deus é um fenômeno nobre e digno, e se sincero, representa uma manifestação de evolução espiritual e mística.
                    



HUME   

SINNET
                                           
O problema surge quando alguém tenta organizar esta fé em uma estrutura hierárquica e organizada, aonde rituais repetitivos e padronizados substituem a espontaneidade da livre manifestação do contato com Deus. Estas tentativas de organização da fé são as diversas manifestações religiosas, que implicam em uma estrutura, ao fim e ao cabo, de poder, e que resultam muitas vezes, na distorção daquilo que dizem representar.
Exemplo histórico disso é o massacre dos Cátaros, na França, ou a perseguição contra esoteristas feita pela Igreja Católica com a Inquisição, que levou apenas e tão somente ao massacre de pessoas inocentes que tinham como um único defeito pensarem de modo diferente daqueles que detinham poder politico e militar por trás de suas crenças.
Lavoisier, Cagliostro, e o próprio Cristo, foram mortos em função da singularidade de seus pensamentos e atitudes, em situações e contextos diferentes, mas pelo mesmo grave pecado de pensar com suas próprias cabeças e seguirem seu coração.
Nas cartas os Mestres deixam claro que a finalidade de escolas esotéricas era a divulgação do conhecimento da tradição, sem preconceito de classe, cor ou religião, já que todos os seres humanos fazem parte da mesma espécie e merecem receber, de acordo com sua capacidade, acesso a este conhecimento.
Nenhuma escola esotérica deve ceder à tentação de transformar-se em um grupo religioso, perigo constante para aqueles que lidam com assuntos espirituais.


LEWIS

Lewis, nosso primeiro imperator para o atual ciclo de atividades da rosacruz, também tinha esta preocupação.
Em um texto chamado “Perguntas e respostas rosacruzes”, publicado em português pela Grande Loja, à época conhecida como Grande Loja do Brasil, cuja 2ª edição tenho em mãos, de maio de 1983, tem como primeiríssima questão, na página 164, a pergunta: “Constituem os rosacruzes um culto religioso?”; pergunta a qual responde, enfaticamente, da seguinte forma:
“Os rosacruzes não constituem um culto, religioso ou de qualquer outra espécie. Constituem uma fraternidade de homens e mulheres, como qualquer outra fraternidade ou irmandade. Os membros da organização”, continua ele, “pertencem a todas as denominações religiosas e não se lhes pede que mudem suas crenças religiosas de modo algum. Portanto,” conclui, “a organização não é um culto.”
Tamanho cuidado não era exagerado.



Os equívocos de interpretação humanos são notórios e mentes simples e pouco elaboradas tendem a compreender de modo errôneo os fenômenos que testemunham ou as ideias que lhes são apresentadas.
Para muitas pessoas, é quase impossível separar religião e esoterismo, já que ambos, pelo menos em princípio, visam o crescimento espiritual humano.
Por motivos óbvios, as religiões não são espaços democráticos. Não existe ali possibilidade de reflexão livre sobre os mistérios e seus cânones.
Quem entra em uma religião concorda tacitamente que aceita os dogmas desta crença e se dispõe a conduzir sua vida dentro dos parâmetros estabelecidos pelas autoridades desta seita.
Escolas esotéricas, como esclarecido pelo próprio Ku-Thu-Mi, em suas cartas, devem ser associações de livres pensadores que terão oportunidades de estudar e compreender as verdades ocultas da natureza e eventualmente superar as limitações da ignorância, prestando reverencia apenas e tão somente, como dizem os rosacruzes, ao Deus de seu coração, Deus de sua compreensão. Não há santos nem demônios em escolas esotéricas. Ninguém erra ou acerta por influência de espíritos do bem ou do mal.
Não existem Íncubus ou Súcubus que nos induzam ao pecado. Cada homem e cada mulher é responsável, pela lei do Karma, sobre seus atos, pela maior ou menor misericórdia que demonstram aos seus companheiros de espécie, e aos outros seres deste mundo, chamados animais, e que, no mais das vezes tem um comportamento mais nobre que o nosso.
Escolas esotéricas, ao contrário das religiões, não transferem a responsabilidade dos indivíduos para seres invisíveis e fantasmagóricos.
Cada um deve responder por seus atos; cada um é senhor de suas ações e aprenderá com seus erros.
Por isso o cuidado dos fundadores de escolas esotéricas de deixar claro que estas não são nem visam tornar-se religiões, já que estamos falando de instituições completamente diferentes.
A Ordem Rosacruz não é, portanto, uma ordem cristã, ou budista, ou maometana, ou mesmo judaica.
Não faria o menor sentido esta adjetivação, mesmo que aspectos destas tradições religiosas sejam exaltados, quando assim mereçam, em nossos textos.
Entretanto, estamos no ocidente do planeta, aonde o discurso religioso cristão tem uma força cultural mais evidente.
Sendo membro de uma seita cristã, os Metodistas, Spencer Lewis teve um cuidado redobrado de separar a Ordem Rosacruz de qualquer simbolismo que pudesse associá-la a uma prática religiosa de natureza cristã.
Talvez o símbolo mais sagrado dos rosacruzes, já definido no próprio nome da Ordem, seja o mais delicado neste aspecto, uma vez que a cruz é, no Ocidente e mesmo no Oriente, símbolo do cristianismo, pelo fato de seu fundador ter morrido desta forma.
Em vários textos e discursos, Lewis deixa claro que para os rosacruzes, a cruz tem um significado diferente daquele que tem para os cristãos.
Chega ao detalhe de referir que a cruz como símbolo é um fenômeno transcultural, estando presente em várias civilizações, entre elas a civilização egípcia, de onde se origina, tradicionalmente, nossa ordem.
Lá, segundo nossa tradição rosacruz, a cruz venerada como símbolo era cruz ansata, cuja forma representava um homem de braços abertos. Seu papel como hieróglifo era simbolizar a eternidade e dessa forma aparece nos escritos dos papiros nas mãos dos deuses. ( Manual Rosacruz, Editora Renes, sexta edição, página 66)

CRUZ ANSATA


A cruz rosacruz não é a cruz cristã, não simboliza a morte, mas a vida.
A cruz rosacruz, segundo Lewis, nada tem a ver com a cruz da religião ocidental, mesmo que os rosacruzes reconheçam a beleza da mensagem de Jesus.
Não temos como rosacruzes que rezar para nossa cruz como os cristãos rezam para a sua, pois não somos religiosos embora estejamos como místicos imbuídos de intensa religiosidade.
A cruz rosacruz é um símbolo como qualquer outro e serve tão somente como elemento de foco para nosso pensamento no momento de nossa meditação.
Toda a força que buscamos está dentro de nós e não em um símbolo externo, e os símbolos servem como as letras, apenas, para nos guiar na busca de uma informação ou de uma compreensão sintética dos valores espirituais.
O próprio Lewis, no Manual acima citado, sobre o aspecto dubio no Ocidente da cruz, escreve:
“Se a cruz e outros símbolos confundem os sábios contemporâneos, não é de admirar que em épocas passadas houvesse muitos que nada viam nesses símbolos senão sinais de natureza indefinida.” (página 67, Idem)



Portanto, da mesma forma que me causou incômodo, a mim que não sou cristão, mas hinduísta, como também, como soube depois, a um outro frater budista, a substituição, na capa de uma edição de O Rosacruz, do  tradicional triangulo de vértice para baixo no altar do Sanctum Celestial, pela face do Cristo, imagem que analisei aqui no blog com o ensaio “Desconforto” (https://imaginariodomario.blogspot.com/2010/12/desconforto.html), senti de novo o mesmo em relação a uma imagem recente em que uma Columba de mãos postas, parece rezar para uma cruz rosacruz, numa atitude que, salvo engano, lembra mais um ato religioso que esotérico.



O autor pode, acredito, ter visto beleza na imagem, devocionalidade, e sem nenhuma preocupação, usou-a provavelmente de boa-fé, na intenção de simbolizar um ato de espiritualidade.
O problema reside na confusão entre religiosidade e religião, entre cristianismo e rosacrucianismo.
Parece um preciosismo, mas precisamos, a meu ver, separar as coisas em seus devidos campos, não por antagonismo, mas por cuidado, deixando claro que o espaço das ordens esotéricas está aberto a todos, sejam ou não membros de uma denominação cristã.
Acredito, repito, que este equívoco também tenha a ver com o fato da AMORC proteger e abrigar uma Ordem, frequentada por rosacruzes, que se denomina cristã, a Ordem Martinista.
Como exaustivamente venho repetindo, entretanto, Martinismo não é Rosacrucianismo. E, não podem ser confundidos um com o outro.
São duas nobres tradições, com discurso e jargão próprios, definidos, mas além disso, com uma perspectiva esotérica particular a cada uma.
Por não se definir como eminentemente cristã, a Rosacruz é, em princípio, um espaço mais amplo e mais tolerante a outras linhas de pensamento, além de ser mais antiga e tradicional.
Quanto a Cruz, sigamos a tradição cristã: cada um deve carregar a sua.

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