Por Mario Sales
Esses dias de reclusão têm sido produtivos, intelectualmente.
A sociedade teosófica, da mesma forma que a AMORC, tem feito Lives, de segunda
a domingo, com grupos de estudo de 7 temas diferentes. O tema das segundas
trabalha as Cartas dos Mahatmas, um conjunto de missivas de Ku-Thu-Mi, Morya e
Hilarion, entre os anos de 1870 a 1900 entre diversas pessoas, entre as quais,
parentes de Blavatsky, que recebem a primeira delas, e depois um editor chamado
Alfred Percy Sinnet, um amigo seu, Alan Octavian Hume, e o próprio coronel
Olcott, fundador juntamente com Blavatsky da Sociedade Teosófica.
O interesse dos Altos iniciados com esta correspondência,
que viria a publico apenas nas primeiras décadas do século XX, a partir de
1939, portanto após a morte de Sinnet e de todos os citados, era estratégica, e
visava dar a conhecer ao mundo ocidental, sua existência, seus trabalhos e a
natureza complexa de sua instituição, a assim chamada Grande Loja Branca.
As cartas foram objeto de controvérsia, e Blavatsky foi
mesmo acusada de forjá-las por um perito de uma sociedade de pesquisas inglesa,
cujo relatório, devastador na época, em 1885, foi objeto de retratação pela própria
instituição que o produziu, 101 anos depois, em 1986. Após a revisão feita por
um segundo investigador ficou esclarecida a má intenção do primeiro
investigador, seus graves erros de investigação, que trouxeram grande
sofrimento moral à “velha senhora”.
Uma coisa que salta aos olhos nas cartas é a preocupação dos
Mestres ou Mahatmas (Grandes Almas) de deixar claro sua natureza eminentemente
humana. Em todas as ocasiões possíveis, procuram afastar de si todo estereótipo
de seres divinos e anormais, deixando claro que eram e são apenas seres humanos
como todos nós que atingiram pelo tempo e esforço uma condição física, mental e
espiritual diferenciada, superior a nossa, mas a qual todos que tiverem o mesmo
percurso poderão e deverão atingir. A preocupação em afastar de si o manto de
santos como são conhecidos os seres elevados espiritualmente pelos católicos e
cristãos, é constante nas cartas.
Ku-Thu-Mi é um dos mestres envolvidos mais diretamente nesta
correspondência. Junto com Morya, mestre pessoal de Blavatsky, ele fomenta a
criação da sociedade teosófica, com ela e Olcott.
Não por coincidência, K-H, como é conhecido, é também o
Hierofante da Ordem Rosacruz.
KU-THU-MI
A palavra hierofante tem o significado de “sacerdote que,
nas religiões de mistérios do Egito e da Grécia antiga, notadamente em Elêusis,
instruía os futuros iniciados”.
Ou seja, trata-se do responsável espiritual por nossa Ordem.
Daí a importância destas cartas para a maioria dos rosacruzes como uma
oportunidade objetiva de conhecer o pensamento de nosso mais elevado dignitário.
Ordens como a AMORC são associações voltadas a transmissão
do conhecimento da tradição, e a levarmos em conta o esforço para desfazer
equívocos em relação a natureza deles mesmos, reafirmando sua condição humana,
os Mestres como Ku-Thu-Mi não fundaram escolas como se funda religiões, ou
seja, jamais chamaram para si quaisquer aspectos de caráter devocional, deixando
claro que o Universo tem leis, como a Lei do Karma, e que a prosperidade, a
felicidade e o sucesso de cada individuo estão diretamente ligados a suas ações
no mundo, pelas quais serão cobrados ou abençoados por sua responsabilidade.
Não há no ensinamento das escolas esotéricas o culto a
personalidades que fariam por nós nosso trabalho, como é comum ver nas
religiões.
Aliás, escolas esotéricas não são religiões, mais centros de
formação de mentes mais lucidas, evoluídas e aperfeiçoadas de forma que os
membros destas escolas tornam-se lideres
sociais como também espirituais.
Nas cartas, Ku-Thu-Mi e Morya são bastante críticos em
relação a todas as religiões, inclusive ao cristianismo, não como instituições,
mas como organizações. A fé como manifestação de devoção a Deus é um fenômeno nobre
e digno, e se sincero, representa uma manifestação de evolução espiritual e mística.
HUME
SINNET
O problema surge quando alguém tenta organizar esta fé em
uma estrutura hierárquica e organizada, aonde rituais repetitivos e
padronizados substituem a espontaneidade da livre manifestação do contato com
Deus. Estas tentativas de organização da fé são as diversas manifestações
religiosas, que implicam em uma estrutura, ao fim e ao cabo, de poder, e que
resultam muitas vezes, na distorção daquilo que dizem representar.
Exemplo histórico disso é o massacre dos Cátaros, na França,
ou a perseguição contra esoteristas feita pela Igreja Católica com a Inquisição,
que levou apenas e tão somente ao massacre de pessoas inocentes que tinham como
um único defeito pensarem de modo diferente daqueles que detinham poder politico
e militar por trás de suas crenças.
Lavoisier, Cagliostro, e o próprio Cristo, foram mortos em
função da singularidade de seus pensamentos e atitudes, em situações e
contextos diferentes, mas pelo mesmo grave pecado de pensar com suas próprias
cabeças e seguirem seu coração.
Nas cartas os Mestres deixam claro que a finalidade de
escolas esotéricas era a divulgação do conhecimento da tradição, sem preconceito
de classe, cor ou religião, já que todos os seres humanos fazem parte da mesma
espécie e merecem receber, de acordo com sua capacidade, acesso a este conhecimento.
Nenhuma escola esotérica deve ceder à tentação de transformar-se
em um grupo religioso, perigo constante para aqueles que lidam com assuntos
espirituais.
LEWIS
Lewis, nosso primeiro imperator para o atual ciclo de
atividades da rosacruz, também tinha esta preocupação.
Em um texto chamado “Perguntas e respostas rosacruzes”,
publicado em português pela Grande Loja, à época conhecida como Grande Loja do
Brasil, cuja 2ª edição tenho em mãos, de maio de 1983, tem como primeiríssima questão, na página 164, a pergunta: “Constituem os rosacruzes um culto
religioso?”; pergunta a qual responde, enfaticamente, da seguinte forma:
“Os rosacruzes não constituem um culto, religioso ou de
qualquer outra espécie. Constituem uma fraternidade de homens e mulheres, como
qualquer outra fraternidade ou irmandade. Os membros da organização”, continua
ele, “pertencem a todas as denominações religiosas e não se lhes pede que mudem
suas crenças religiosas de modo algum. Portanto,” conclui, “a organização não é
um culto.”
Tamanho cuidado não era exagerado.
Os equívocos de interpretação humanos são notórios e mentes
simples e pouco elaboradas tendem a compreender de modo errôneo os fenômenos que
testemunham ou as ideias que lhes são apresentadas.
Para muitas pessoas, é quase impossível separar religião e
esoterismo, já que ambos, pelo menos em princípio, visam o crescimento
espiritual humano.
Por motivos óbvios, as religiões não são espaços
democráticos. Não existe ali possibilidade de reflexão livre sobre os mistérios
e seus cânones.
Quem entra em uma religião concorda tacitamente que aceita
os dogmas desta crença e se dispõe a conduzir sua vida dentro dos parâmetros estabelecidos
pelas autoridades desta seita.
Escolas esotéricas, como esclarecido pelo próprio Ku-Thu-Mi,
em suas cartas, devem ser associações de livres pensadores que terão
oportunidades de estudar e compreender as verdades ocultas da natureza e
eventualmente superar as limitações da ignorância, prestando reverencia apenas
e tão somente, como dizem os rosacruzes, ao Deus de seu coração, Deus de sua
compreensão. Não há santos nem demônios em escolas esotéricas. Ninguém erra ou
acerta por influência de espíritos do bem ou do mal.
Não existem Íncubus ou Súcubus que nos induzam ao pecado.
Cada homem e cada mulher é responsável, pela lei do Karma, sobre seus atos,
pela maior ou menor misericórdia que demonstram aos seus companheiros de
espécie, e aos outros seres deste mundo, chamados animais, e que, no mais das
vezes tem um comportamento mais nobre que o nosso.
Escolas esotéricas, ao contrário das religiões, não
transferem a responsabilidade dos indivíduos para seres invisíveis e
fantasmagóricos.
Cada um deve responder por seus atos; cada um é senhor de
suas ações e aprenderá com seus erros.
Por isso o cuidado dos fundadores de escolas esotéricas de
deixar claro que estas não são nem visam tornar-se religiões, já que estamos
falando de instituições completamente diferentes.
A Ordem Rosacruz não é, portanto, uma ordem cristã, ou
budista, ou maometana, ou mesmo judaica.
Não faria o menor sentido esta adjetivação, mesmo que aspectos
destas tradições religiosas sejam exaltados, quando assim mereçam, em nossos
textos.
Entretanto, estamos no ocidente do planeta, aonde o discurso
religioso cristão tem uma força cultural mais evidente.
Sendo membro de uma seita cristã, os Metodistas, Spencer
Lewis teve um cuidado redobrado de separar a Ordem Rosacruz de qualquer
simbolismo que pudesse associá-la a uma prática religiosa de natureza cristã.
Talvez o símbolo mais sagrado dos rosacruzes, já definido no
próprio nome da Ordem, seja o mais delicado neste aspecto, uma vez que a cruz é,
no Ocidente e mesmo no Oriente, símbolo do cristianismo, pelo fato de seu
fundador ter morrido desta forma.
Em vários textos e discursos, Lewis deixa claro que para os
rosacruzes, a cruz tem um significado diferente daquele que tem para os
cristãos.
Chega ao detalhe de referir que a cruz como símbolo é um fenômeno
transcultural, estando presente em várias civilizações, entre elas a
civilização egípcia, de onde se origina, tradicionalmente, nossa ordem.
Lá, segundo nossa tradição rosacruz, a cruz venerada como símbolo
era cruz ansata, cuja forma representava um homem de braços abertos. Seu papel
como hieróglifo era simbolizar a eternidade e dessa forma aparece nos escritos
dos papiros nas mãos dos deuses. ( Manual Rosacruz, Editora Renes, sexta
edição, página 66)
CRUZ ANSATA
A cruz rosacruz não é a cruz cristã, não simboliza a morte,
mas a vida.
A cruz rosacruz, segundo Lewis, nada tem a ver com a cruz da
religião ocidental, mesmo que os rosacruzes reconheçam a beleza da mensagem de
Jesus.
Não temos como rosacruzes que rezar para nossa cruz como os
cristãos rezam para a sua, pois não somos religiosos embora estejamos como místicos
imbuídos de intensa religiosidade.
A cruz rosacruz é um símbolo como qualquer outro e serve tão
somente como elemento de foco para nosso pensamento no momento de nossa
meditação.
Toda a força que buscamos está dentro de nós e não em um símbolo
externo, e os símbolos servem como as letras, apenas, para nos guiar na busca
de uma informação ou de uma compreensão sintética dos valores espirituais.
O próprio Lewis, no Manual acima citado, sobre o aspecto
dubio no Ocidente da cruz, escreve:
“Se a cruz e outros símbolos confundem os sábios contemporâneos,
não é de admirar que em épocas passadas houvesse muitos que nada viam nesses símbolos
senão sinais de natureza indefinida.” (página 67, Idem)
Portanto, da mesma forma que me causou incômodo, a mim
que não sou cristão, mas hinduísta, como também, como soube depois, a um outro frater budista, a substituição, na capa de uma edição de O
Rosacruz, do tradicional triangulo de
vértice para baixo no altar do Sanctum Celestial, pela face do Cristo, imagem
que analisei aqui no blog com o ensaio “Desconforto” (https://imaginariodomario.blogspot.com/2010/12/desconforto.html),
senti de novo o mesmo em relação a uma imagem recente em que uma Columba de
mãos postas, parece rezar para uma cruz rosacruz, numa atitude que, salvo
engano, lembra mais um ato religioso que esotérico.
O autor pode, acredito, ter visto beleza na imagem, devocionalidade,
e sem nenhuma preocupação, usou-a provavelmente de boa-fé, na intenção de
simbolizar um ato de espiritualidade.
O problema reside na confusão entre religiosidade e religião,
entre cristianismo e rosacrucianismo.
Parece um preciosismo, mas precisamos, a meu ver, separar as
coisas em seus devidos campos, não por antagonismo, mas por cuidado, deixando
claro que o espaço das ordens esotéricas está aberto a todos, sejam ou não
membros de uma denominação cristã.
Acredito, repito, que este equívoco também tenha a ver com o fato
da AMORC proteger e abrigar uma Ordem, frequentada por rosacruzes, que se denomina cristã, a Ordem
Martinista.
Como exaustivamente venho repetindo, entretanto, Martinismo
não é Rosacrucianismo. E, não podem ser confundidos um com o outro.
São duas nobres tradições, com discurso e jargão próprios,
definidos, mas além disso, com uma perspectiva esotérica particular a cada uma.
Por não se definir como eminentemente cristã, a Rosacruz é,
em princípio, um espaço mais amplo e mais tolerante a outras linhas de
pensamento, além de ser mais antiga e tradicional.
Quanto a Cruz, sigamos a tradição cristã: cada um deve
carregar a sua.
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