Por Mario Sales
“Gostaríamos de ver e temos medo de ver. Eis o limiar sensível de todo o conhecimento.”
Gaston Bachelard, “A Poética do Espaço”, 1ª
edição brasileira, 1989
Bachelard
Deus me perdoe por dizer isso, mas este período de reclusão
da quarentena por causa desta epidemia tem sido extremamente produtivo,
intelectualmente falando.
Retomei minhas leituras e entre elas, Bachelard, pelo qual
nutro admiração significativa desde que meu antigo professor, José Américo Mota
Pessanha, o apresentou.
Este químico e epistemologista, que de modo tardio descobriu
a poesia e glorificou a fenomenologia na intenção de conhecer melhor seus próprios
sentimentos e o mundo que o cercava, alargou nossos horizontes, tornando-nos,
nós, seus leitores, cúmplices de sua caminhada na direção da descoberta do
númeno.
O númeno que na visão de Kant era inatingível e impossível
de ser percebido; o númeno, essência da coisa, do objeto, do ser que
contemplamos, tocamos e cheiramos, na sua manifestação, na sua apresentação
diante de nós como fe-nômeno.
Fazer fenomenologia é retirar os véus que encobrem a verdade
ao mesmo tempo que a tornam passível de ser percebida.
Nós esoteristas costumamos pensar o encoberto como um desafio
ou um disfarce da coisa em si, do númeno, mas na verdade o fenômeno representa
uma adaptação necessária a este meio denso, nós que também somos essências
encobertas pelo corpo físico e por nossa mente, como o fogo dentro do lampião
de vidro.
Para ir a um ambiente sem oxigênio, como no vácuo do espaço,
ou aonde nossos pulmões não possam respirar, como o fundo do mar, nós nos
protegemos com vestes especiais que garantem que nos mantenhamos vivos nestas
regiões hostis a nossa sobrevivência. Tais vestes não são disfarces ou produtos
de nossa vontade, mas sim consequências da necessidade de explorar novos
ambientes, novas dimensões de existência.
Somos todos exploradores da realidade.
Como tal, certas estratégias se fazem obrigatórias para
garantir a observação e o estudo sereno desta rica dimensão em que mergulhamos
para aprender e, assim, evoluir.
Da mesma maneira, tudo a nossa volta e dentro de nós manifesta-se com um sem numero de camadas que lhe são acrescentadas pela necessidade de tornar este ente, coisa ou ser vivo, manifesto.
Uma metodologia que aprofunda nossa capacidade de compreensão
e entendimento da verdadeira natureza destes entes é a técnica fenomenológica.
Por natureza, fenomenologizar a vida
é despir o fenômeno de suas cascas e capas e além disso, despir-se, a nós mesmos, de pré-conceitos, e toda vez que limpamos nossa visão, tornamos melhor nossa percepção do mundo.
Os preconceitos são obstruções à uma visão clara e transparente
e nos distorce a realidade, provocando equívocos os mais variados.
Na intenção de evitarmos esses dissabores, precisamos
fenomenologizar nossa percepção do mundo, para conseguir transcender os limites
e as fronteiras kantianas de nossa percepção.
Husserl
O ideal de Husserl de superar as barreiras que Kant
descortinou ao analisar a forma como compreendemos o mundo, a mim me parece
bastante complexa e mais um horizonte a ser perseguido do que uma conquista a
ser comemorada.
No entanto, repetindo Platão pela boca de Sócrates, quanto mais
eu me afaste do erro, mais perto estarei da verdade e, portanto, diminuir meu
círculo de equívocos só pode ser positivo.
Um místico precisa perseguir este ideal, não como uma
decorrência de aspectos morais e éticos, mas como consequência do emprego da
técnica filosófica.
Claro que falo a partir de meu próprio ponto de vista.
Aprecio a dignidade e a honra presente nos discursos morais
de boa índole, porém hoje em dia, confesso, eles me cansam profundamente.
No melhor espírito científico, meu interesse hoje não é no “quê”
fazer, mas sim no “como” fazê-lo.
Dizer a um indivíduo que seu comportamento deve ser nobre é
simples e correto, porém em um mundo muitas vezes cheio de armadilhas,
tentações e desafios como é possível ser digno de maneira segura, sem que nossa
nobreza e bondade se transforme em fraqueza e fragilidade?
O desafio do místico contemporâneo, como lembrava Lewis, não
é ser digno, nobre e santo em um mosteiro, isolado da sociedade, mas sim mergulhado na vida mundana e mesmo assim ser
capaz de manter essa atitude voltada para a devoção ao Altíssimo, sem que sua
conexão com as coisas espirituais possa ser um estorvo para aqueles com os
quais convivamos, sem que nossa fé seja ostensiva ou constrangedora àqueles que não
a têm.
Por isso é preciso convicção de seus valores, mas também bom senso, moderação e discrição ao vivenciar
nossas crenças já que a catequese, seja de que crença for, pode afastar em vez
de atrair pessoas para o caminho da espiritualidade.
Usar de métodos psicológicos ou filosóficos para compreender
mais profundamente o mundo é mais palatável a maioria dos espíritos que lidam
melhor com as coisas que podem compreender do que com aquelas que precisam
sentir.
Sentir o mundo é um talento que nem todos possuem.
Sentir o outro também.
Por isso, quando interagimos, nós portadores dessa conexão
com o Altíssimo comum aos místicos podemos e devemos manter nossa verdadeira
natureza encoberta pelo bom humor e pela simplicidade, estratégias que tornam a
convivência leve e agradável.
Dentro deste espírito, a fenomenologia é um método complexo,
sim, mas interessante de estimular as pessoas a olhar o mundo de outra forma, uma
forma ao mesmo tempo que mais qualificada, com menos adjetivos e mais substantiva.
A ausência de juízo provocada pela Epoché[1] Husserliana estimula a prudência
na análise dos fenômenos e dos indivíduos com os quais dividimos esta
experiência na carne.
É uma estratégia, elegante e eficaz.
Talvez com esta abordagem percebamos a responsabilidade que
assumimos de conhecer as coisas como elas são, e não como gostaríamos que
fossem, o que não só implica empenho mas também coragem.
Nosso maior receio sempre será abandonar posições psicológicas
fáceis e confortáveis por outras que implicam esforço e trabalho mental. Nem
todos estamos equipados para isso, digo, moralmente equipados.
A prática, entretanto, leva a perfeição.
Para aprender é preciso superar a preguiça e o medo.
Esta atitude será decerto, recompensadora.
Epoché cética
A suspensão do juízo caracterizava a
atitude dos céticos gregos,
especialmente Pirro. Para os céticos, a epoché era a
única atitude capaz de levar à imperturbabilidade. Eles afirmavam que duvidar
do caráter bom ou mau de todas as coisas leva o indivíduo a não aceitar nem
rejeitar coisa alguma, tornando-se imperturbável.
Epoché fenomenológica
Na filosofia moderna,
especialmente na obra de Edmund Husserl e outros fenomenologistas,
o termo epoché adquire um significado diferente. Ao invés de
efetivamente chegar a negar a existência, como faziam alguns sofistas,
a epoché fenomenológica implica a "contemplação
desinteressada" de quaisquer interesses naturais ou psicológicos na
existência. Em outras palavras, a suspensão de juízo fenomenológica não põe em
dúvida a existência, como no caso dos céticos, mas se abstém de emitir juízos
sobre ela.
Nenhum comentário:
Postar um comentário