Multi pertransibunt et augebitur scientia (Muitos passarão, e o conhecimento aumentará).

sexta-feira, 14 de março de 2014

JAN VAN RUYSBROECK


por Mario Sales, FRC,SI,CRC

RUYSBROECK (1293-1381)

Jan van Ruysbroeck, chamado 'o Admirável', foi um místico belga, de expressão flamenga, nascido em 1293, na aldeia que lhe deu o nome, nas proximidades de Bruxelas. Depois de estudos em Bruxelas, Jan van Ruysbroeck foi ordenado sacerdote em 1317. Ali permaneceu a serviço da catedral de Santa Gúdula. Por volta dos seus 50 anos se retirou para uma ermida numa floresta, acompanhado por seu tio e outros amigos. Ali iniciaram uma vida austera, meio eremítica e meio conventual, alternando a oração com o trabalho. Ao ser organizada a comunidade em mosteiro regular, foi eleito seu primeiro Prior, em 1350, fato que gerou ao mesmo tempo sua grande influência. Ruysbroeck era procurado por inúmeras pessoas procurando orientação espiritual e mística.

(in http://coracaomistico.blogspot.com.br/2007/12/ruysbroeck.html)




JAN VAN RUYSBROECK

Amadeu me telefona. 
"- Marinho, Américo (Américo Sommerman, Editora Polar) está publicando um livro muito bom, sobre um místico belga do século 13, voce precisa ler, eu estou lendo e vou mandar pra voce".
"Mas se Américo está publicando está na praça, diga o nome que eu compro por aqui" respondo.
"Não, deixa que eu mando", insiste ele.
Passam-se alguns dias, e Frater Amadeu liga novamente hoje :
"-Olha, já postei o livro, quando chegar me avisa"
Hoje a tarde, repousava, quando o correio me chama da grade. Não sei porque alguns carteiros tem uma predileção pelo drama e pelos gritos quando um civilizado toque de campainha seria suficiente.
Tem uma encomenda e quer que eu assine.
Pensei :"-Não pode ser o livro, Amadeu está em Uberaba, não chegaria tão depressa."
Era o Livro. Olhei o pacote, espantado pela velocidade com que chegou. Estava indisposto, voltei a deitar pensando "Mais tarde eu abro".
Assim fiz. Qual não foi o meu espanto quando vejo, abaixo do nome de Amadeu, no remetente, um endereço da Vila Madalena, em São Paulo.
"Puxa, Amadeu esteve aqui tão perto e nem pra me visitar", penso com meus botões.
Abro o pacote e cuidadosamente embrulhado em papel bolha, vejo o livro. Surpresa: grudado elegantemente ao centro, um cartão pessoal do próprio Américo.



Américo Sommerman


Olho o pacote com mais atenção.
É uma correspondência da própria editora Polar.
Tudo fica mais claro. "Amadeu está prestigiado", penso.




Fora a gentileza de Américo, instigado por Amadeu, suponho, um livro novo é sempre uma experiência gratificante. Ainda mais em impressão tão bem cuidada. Gostei até da capa, com essa luz que surge e se expande por trás do título. A cor é sóbria, agradável aos olhos. Muito elegante, em suma.
A obra deste místico belga que foi chamado "O Admirável" é pouca conhecida por estes lados e é mais um serviço que Américo Sommerman presta aos místicos brasileiros e portugueses ao disponibilizar no nosso idioma, em um único volume, os três livros que compõem estes ensaios deste sensível escritor.
Precisamos, penso, desesperadamente destes textos. Eu particularmente, como rosacruz, não tenho mais nenhuma atração pelo esoterismo, mas sim pelo misticismo. Aos textos de Martinez de Pasqualy, prefiro os de Louis Claude de Saint Martin.
Aos de Elyphas Levy, os relacionados a Philipe de Lyon.
Precisamos ler sobre aqueles que buscaram o contato direto, que mergulharam no ato devocional, que se interessaram pela essência do trabalho místico: o contato com a Fonte de Todas as Coisas. Isto nos fortalece e nos alimenta na senda.
Esoterismo é distração. Misticismo é motivação.

Lucia Primo

Na orelha desta edição, traduzida do flamengo para o inglês por C.A.Wynschenk Dom, e do inglês para o português por Lucia Beatriz Primo, está dito que Ruysbroeck, já com seus 50 anos, abandona a cidade de Bruxelas e refugia-se com um tio e amigos em um local ermo aonde fundam uma pequena comunidade, cansado do "contraste entre (suas) formidáveis intuições da Eternidade e o excessivo formalismo religioso, (sem falar) na insuportável agitação da cidade".
Qual de nós, hoje, não sente o mesmo, enquanto místicos? Não sentimos todos nós, que o espírito de Deus não pode ser contido em um ritual? Não sentimos que, mesmo fora do ambiente iniciático, Sua Presença é indiscutível e poderosa? Que esta mesma Divina Presença, esta Shekinah, plana sobre nossas cabeças ao lavar um prato do almoço, ao tomar café pela manhã, da mesma forma que durante um ritual esotérico?
Como reter o canto de um rouxinol em uma gaiola?
Nada contra os rituais mas podem eles, em si, serem as únicas estratégias de provocar esta conexão, ou terão um papel transitório, didático, que uma vez alcançado, faz com que percam sua importância? O ritualismo excessivo nos aproxima ou nos afasta de Deus?
Por  outro lado, a intuição, uma vez desperta, estabelece uma conexão direta entre nossa mente e a mente divina, refaz nossa união, jamais perdida, mas esquecida e negligenciada por uma educação ateísta e medíocre.
Educar é formar pessoas sensíveis e capazes de buscar o conhecimento por si mesmas. Este despertar da educação propicia a inspiração de idéias, outro nome para Intuição Captativa.
Qualquer místico de intuição desperta sabe que ser tocado pela influência não só não é um fenômeno restrito a iluminados, como também é mais fácil do que nos fizeram supor por séculos os "Doutores da Igreja", mais interessados em nos separar de Deus do que nos aproximar.
Assim, Ruysbroeck também sentiu o peso deste formalismo e optou pelo retiro e pela meditação no silêncio. Imaginem no século XIII e XIV alguém achar uma cidade demasiadamente agitada.
Não teriam senão alguns minutos de vida em meio ao burburinho de São Paulo ou do Rio de Janeiro.
Mas tudo é muito relativo. O que importa é que embora sete séculos nos separem, os problemas dos místicos continuam os mesmos.
E de que trata este texto, publicado originalmente em três volumes?
Diz Ruysbroeck:
“Para que o espírito possa contemplar a Deus por Deus mesmo nessa luz divina, sem intermediários, é preciso, da parte do homem, três coisas. A primeira é que ele deve estar perfeitamente ordenado exteriormente em todas as virtudes e deve estar sem nenhum entrave interiormente e tão desligado de todas as obras exteriores que é como se elas não existissem; pois, se seu vazio for perturbado interiormente por algum ato de virtude é porque existe uma imagem; e enquanto isso durar, ele não pode contemplar.
“A segunda condição é que ele deve unir-se a Deus interiormente, com intenção amorosa, como um fogo ardente que queima e é impossível de ser extinto. Enquanto estiver nesse estado, ele é capaz de contemplar.
“Em terceiro lugar, deve ter perdido a si mesmo numa ausência de modos em uma Treva na qual todos os espíritos contemplativos são tragados fruitivamente, incapazes de jamais se encontrar segundo o modo das criaturas".
E conclui ele:
"É no abismo dessa Treva, na qual o espírito amante morreu para si mesmo, que começa a manifestação de Deus e a vida eterna. Pois é aí, nessa Treva, que brilha e engendra-se uma Luz incompreensível, o próprio Filho de Deus, no Qual nós contemplamos a vida eterna!". 
Sim, é preciso mergulhar na Treva para que a Luz brilhe. Paradoxal, mas correto. As Trevas sempre foram, senso comum, associadas ao Mal e a Perdição.
Mas o Cabala nos lembra que Luz, em si, é um atributo do Ser, e não o Ser, e que a Luz, Kav, é o instrumento através do qual o Ser cria o mudo visível, nas palavras de Luria, dentro da esfera aberta dentro do próprio Ser pelo Tzim Tzum.
A Luz é o modo pelo qual a imagem da criação (Maya, no sânscrito) surge, como a projeção de cinema já citada nestes espaço. Mas o projetor do filme em si, embora produza luz, não é Luz em si mesmo, mas uma fonte desta Luz que jogará na Tela a nossa frente, alegrias, tristezas, dramas e maravilhas.
 É de uma máquina oculta nas trevas atrás e acima de nossas cabeças na sala de projeção que surge a vida do filme a nossa frente num raio de luz mágico que dá vida ao que antes era apenas uma tela em branco. (Koilon, para os teósofos)
Portanto, mergulhar em Deus, fonte de tudo, não é prestar atenção no filme que assistimos, por mais belo que ele nos pareça, por mais emoções que nos provoque. O filme, em si, não passa de uma ilusão cinematográfica, uma efeito óptico, com duas únicas finalidades: divertir e ensinar.
A fonte de tudo está atrás de nós, nas Trevas que nos circundam na sala de projeção, e precisamos de algum esforço para romper o vínculo psicológico com esta inversão moderna da Caverna de Platão e sairmos em busca, não da Luz, como no mito, mas da Verdade, oculta nas Trevas.
A Fonte da Luz, pois, está nas Trevas.
É preciso que fechemos os olhos para ver, verdadeiramente.
 A Luz, as imagens, neste caso, distraem o místico de seu objetivo, oculto nas Trevas.
"... pois, se seu vazio for perturbado interiormente por algum ato de virtude é porque existe uma imagem; e enquanto isso durar, ele não pode contemplar."
A virtude, a nobreza, como qualquer adjetivo ou qualificativo, definem a necessidade de um sujeito a ser qualificado, adjetivado; portanto, um ego, uma imagem social do indivíduo.
As Trevas devem absorver esta ilusão de ser um ser separado de Deus, para que a fusão ocorra. É na perda da ilusão de ser algo que mergulhamos no todo.
Não podemos ter um nome, uma reputação, uma imagem, portanto. Não podemos ter algo a preservar.
Preservar-se é ancorar-se, é deter nosso barco no fluxo do rio da existência. Sem que o barco navegue, não existe avanço.
A água precisa correr pelo rio para manter-se limpa. Se a água pára, fica turva e depois, torna-se lama.
Fluir é a única preservação possível. É quando esquecemos o que somos que nos tornamos o que realmente somos.
Devir, transformar-se, ininterruptamente. Este é o verdadeiro Ser.
Sem imagem, resta a escuridão, a ausência de contorno, de forma.
Essa é a Divina Escuridão em que aquele que busca o Absoluto, mergulha.
É neste estado que é possível a segunda condição, a adoração interna. Livre das distrações externas, das imagens, o místico mergulha em si, no seu interior, no terreno solitário de seu coração, território aonde se dá o encontro entre Devoto e a Divindade.
Não há outro espaço possível para tal encontro, lembra Jan Van Ruysbroeck. Este é o templo verdadeiro, o oratório secreto, o sactum sanctorum onde cada místico realizará este contato. Mais que um contato, trata-se da busca de uma fusão, que aqui é chamada eufemisticamente "casamento", no caso um "casamento espiritual". O que buscam os noivos? Fundirem-se apaixonadamente em um só, gerarem o um, o filho, a partir desta fusão, filho no qual pai e mãe se transformam definitivamente em algo diferente deles, mas resultante de sua união.
É isto que busca o místico em sua fusão com o Divino. A resultante desta fusão é algo mais perfeito, uma síntese deste encontro, a qual pode retornar sobre aquele que se funde. O mistério é que aquele que é o noivo e que se "casa" com a "Alma de Deus", seja também o próprio filho desta União, já que emerge dela transfigurado pela experiência.
A isto chamamos Iluminação, ou no caso aqui, "Entrevação", o mergulho nas Trevas do Desconhecido, mergulho do qual emergimos transformados.
E conclui Ruysbroeck:
""É no abismo dessa Treva, na qual o espírito amante morreu para si mesmo, que começa a manifestação de Deus e a vida eterna. Pois é aí, nessa Treva, que brilha e engendra-se uma Luz incompreensível, o próprio Filho de Deus, no Qual nós contemplamos a vida eterna!". 
É disso que trata esta obra, passo a passo.
Desfrutemo-la.
Telefonarei a Américo para agradecer o gesto carinhoso.
Quanto a voce Amadeu, sem palavras. Meu muito obrigado.

4 comentários:

  1. marinho,
    enviei um exemplar deste(o ornamento do casamento espíritual), editado pelo ameriquinho(sic editora Polar), pra você. Que inclusive estou lendo, o trem e bão. digamos batuta.
    amadeuzinho

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  2. Eu fiz esta análise depois de receber o livro agradeço imensamente

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  3. Prezado Mário, meu estimado Frater,
    Esse autor foi objeto, “no último grau” (rs) de uma referencia e, se não me engano, também na “Concordância” de uma de nossas Monografias - ainda escrita (ditada) por Mestre Harvey Spencer Lewis. (12T ANTIGO);
    P.P.

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