por Mario Sales, FRC,SI,CRC
Frater Paulo, eu e Sóror Teresa, atrás à direita.
Os rosacruzes são impressionantes, pela sua heterogeneidade, pela sua sensibilidade e pelas histórias pessoais. Saímos no sábado passado, à noite, para jantar, eu, o Mestre da Loja Rosacruz Recife, Frater Paulo Dutra, e sua família, a esposa sóror Teresa e seu filho.
Entre um e outro assunto, revelo que não sou cristão, mas que minhas tendências espirituais são ligadas ao hinduísmo. Mestre Paulo me confidencia então que ele é devoto de Satya Sai Baba e que já havia estado duas vezes em seu ashram,o Prasanthi Nilayam (Morada da Paz Suprema), em Puttaparthi, no estado de Andhra Pradesh. Em uma delas, contou-me, trabalhou na cozinha do asrham, acordando às quatro horas da manhã, o trabalho mais difícil e talvez o mais recompensador karmicamente, se bem executado.
Satya Sai Baba
E daí pra frente, enquanto a pizza se consumia a nossa
frente, a conversa se desloca para os interesses vedanticos, o Gita, Arjuna, enquanto
uma chuva fraca e breve caía sobre o Recife.
Eu, hinduísta, jamais estive perto do Ganges.
Meu Ganges, como já disse uma vez, é o Paraíba do Sul, em
torno do qual construí minha história pessoal de várias maneiras e com várias
pessoas. E como diz o título do blog que Frater De La Maria de Recife gosta,
"minha montanha é aonde estão meus pés".
Ganges, Khumba Mela de 2010, Haridwar, Utharakand, Índia
Ele, Frater Paulo, no entanto, relatava que já esteve lá no
Ganges e banhou-se em suas águas, se bem que cuidadosamente, cumprindo uma
obrigação kármica de todo praticante do hinduísmo.
Frater Paulo lembra Arjuna. Faltam-lhe talvez os músculos
que aparecem nos quadros que retratam o príncipe reticente da batalha de
Kuruksetra; mas o bigode está lá.
E se existe alguma coisa que identifica Arjuna mais do que
seu arco, é seu bigode, ao que parece parte do estilo de época.
Frater Paulo, com seu nietzschiniano bigode, me fala de suas
peripécias em suas duas viagens ao território indiano, esse país complexo e
heterogêneo, em que todas as tendências da humanidade estão representadas,
tantos aquelas de características típicas ocidentais quanto aquelas ligadas ao
mundo oriental.
E é desta conversa que obtenho a inspiração para o próximo
ensaio a trabalhar: Kuruksetra, a batalha para alguns histórica e metafórica da
qual muitos sentidos e ilações podem ser extraídos.
Humano, demasiadamente humano, que em Recife, terra do
frevo, comendo uma pizza paulista com borda recheada de queijo cheddar, passássemos
uma noite entre goles de guaraná e considerações sobre Krishna e Arjuna, seu
diálogo, seu simbolismo.
Kuruksetra tem um oceano de sinais para quem sabe
reconhecê-los.
Frater Paulo, como eu, bebeu na fonte de Yogananda, em seus
livros, seus rodapés de página, seus comentários. E entre esses livros, para
compreender o básico do trabalho deste transmissor da cultura hinduísta para o
Ocidente muito mais didático e muito menos hermético que Blavatsky, o livro de
ouro é Autobiografia de um Yogue Contemporâneo, do qual tenho um exemplar
traduzido da 11a edição norte americana de 1971 pela Dra Adelaide Petters Lessa
Pantas para a Summus Editorial, em 1976. Paramahansa encarna muito bem a minha
idéia de conexão entre os dois pólos do planeta. Ele é indiano, mas forma-se em
literatura. Como religioso, torna-se devoto da Virgem Maria Cristã, e reconhece
nela a manifestação feminina da Divindade Sem Nome, presente em tantas
tradições.
Paramahansa Yogananda
Cita em seu livro passagens da Bíblia bem como dos Vedas,
realizando o sonho de um misticismo verdadeiramente planetário. Seus textos são
pessoais e humanos e seu linguajar simples e direto.
Sua biografia narrada de forma elegante e concisa nos faz
participar do cotidiano da Índia, desde seus aspectos mais corriqueiros e
mundanos até os mais sagrados e esotéricos. E ele passa de um a outro campo
sem ruptura de continuidade, sem que sintamos que deixamos o terreno do profano
e passamos ao do sagrado, aliás, sua narrativa desfaz a separação entre uma
coisa e outra.
E isto sempre me fascinou.
Toda Tradição precisa de Tradução.
Paramahansa com seu texto, traduz a tradição, e a revela.
E os rodapés de página? Pequenas preciosidades, só lembradas
por alguém que se dedicou ao trabalho docente com jovens na Índia durante toda
a sua vida.
Ele cita a literatura hindu, o Ramayana, o Mahabharata. Ele
cita a Bíblia Cristã, Mateus, João; cita também São João da Cruz.
Existem, no entanto, apenas alguns comentários de rodapé em
Autobiografia de um Yogue Contemporâneo acerca do Bhagavad Gita. Ele é citado
no primeiro capítulo como o preferido para a meditação do pai do grande yogue,
homem austero e reservado, segundo sua descrição, e espartano em sua vida
pessoal.
Yogananda reservou um texto independente para fazer seu
comentário pessoal sobre o Gita , em "A Yoga do Bhagavad Gita",
copyright de 2009, do qual eu tenho uma edição em português, também de 2009, da
Self Realization Fellowship (SRF), sua fundação, que existe desde 1920 e que
reúne seus seguidores.
Aqui ele além de fazer a sua própria tradução do texto para
o inglês, aproveitou para tecer suas considerações acerca deste épico e de suas
possíveis significações.
No prefácio da SRF, lemos um trecho de Paramahansa sobre o
tema:
"A mensagem de Sri Krishna no Bhagavad Gita é
a resposta perfeita para a idade moderna e para qualquer idade: a yoga da ação
determinada pelo dever, do desapego e da meditação para se alcançar a
realização divina. Trabalhar sem a paz interior de Deus é o inferno; e
trabalhar com a alegria de Deus sempre borbulhando na alma é levar consigo,
aonde quer que se vá, um paraíso portátil interior."
Krishna, o Azul, já que veio do céu
E mais adiante, neste mesmo livro, Paramahansa, na página
27, avança na leitura do simbolismo do confronto entre Bharatas e Pandavas, ao
dizer que " o corpo e a mente humanos são verdadeiros campos de batalha na guerra
entre a sabedoria e a força enganosa consciente que se manifesta como avidya
(ignorância). Todo aspirante espiritual que tem como objetivo estabelecer em si
mesmo o governo do Rei Alma precisa derrotar os rebeldes: o Rei Ego e seus
poderosos aliados."
É isso.
Estes são, no entanto, apenas algumas possibilidades interpretativas,
mas, de longe, não são as únicas.
Por exemplo, a relação entre Arjuna e suas obrigações e os vínculos afetivos entre ele e os seus adversários sempre foram os temas que mais me atraíram. Porque quando falamos de vínculos afetivos geralmente pensamos em relacionamentos com parentes, esposas, maridos, filhos, etc. Em todos estes anos, no entanto, jamais vi alguma interpretação que considerasse este mesmo apego em relação à coisas mais etéreas como convicções pessoais, valores que carregamos por nossas vidas e nos quais acostumamos a nos apoiar para dar conta de nosso cotidiano. E na mente estas coisas etéreas são tão sólidas quanto sentimentos, e devem ser considerados pois a fala de Paramahansa é que o corpo e a mente humanos são verdadeiros campos de batalha na guerra entre a sabedoria e a força enganosa consciente que se manifesta como avidya (ignorância), o que sugere algo como a fala de Paulo em Gálatas 5:17 que diz :" Porque a carne milita contra o Espírito, e o Espírito contra a carne; e estes opõem-se um ao outro, para que não façais o que quereis", só que, no meu entender, não é esta a melhor interpretação, esta não é a única acepção possível do trecho de Paramahansa. Ele diz " o corpo e a mente... são campos de batalha " e não que existe uma batalha entre corpo e mente. Dito de outra forma, corpo combate corpo, ajudado pela mente, na busca por disciplina, saúde, diligência, determinação e mente combate mente,("... Rei Alma precisa derrotar os rebeldes: o Rei Ego e seus poderosos aliados...") ajudada pelo corpo, no esforço em busca de sabedoria, resistência aos preconceitos, destruição da ignorância, dos vícios e obsessões. A maioria dos espiritualistas do Ocidente fazem uma leitura infantil e simplista do nosso Kuruksetra cotidiano, achando que o corpo é sempre nosso inimigo e que a Alma sempre é nossa aliada. É preciso ressalvar que sem o corpo não haveria possibilidade de estar aqui e vivenciar dilemas que são úteis e necessários ao nosso aperfeiçoamento.
Por exemplo, a relação entre Arjuna e suas obrigações e os vínculos afetivos entre ele e os seus adversários sempre foram os temas que mais me atraíram. Porque quando falamos de vínculos afetivos geralmente pensamos em relacionamentos com parentes, esposas, maridos, filhos, etc. Em todos estes anos, no entanto, jamais vi alguma interpretação que considerasse este mesmo apego em relação à coisas mais etéreas como convicções pessoais, valores que carregamos por nossas vidas e nos quais acostumamos a nos apoiar para dar conta de nosso cotidiano. E na mente estas coisas etéreas são tão sólidas quanto sentimentos, e devem ser considerados pois a fala de Paramahansa é que o corpo e a mente humanos são verdadeiros campos de batalha na guerra entre a sabedoria e a força enganosa consciente que se manifesta como avidya (ignorância), o que sugere algo como a fala de Paulo em Gálatas 5:17 que diz :" Porque a carne milita contra o Espírito, e o Espírito contra a carne; e estes opõem-se um ao outro, para que não façais o que quereis", só que, no meu entender, não é esta a melhor interpretação, esta não é a única acepção possível do trecho de Paramahansa. Ele diz " o corpo e a mente... são campos de batalha " e não que existe uma batalha entre corpo e mente. Dito de outra forma, corpo combate corpo, ajudado pela mente, na busca por disciplina, saúde, diligência, determinação e mente combate mente,("... Rei Alma precisa derrotar os rebeldes: o Rei Ego e seus poderosos aliados...") ajudada pelo corpo, no esforço em busca de sabedoria, resistência aos preconceitos, destruição da ignorância, dos vícios e obsessões. A maioria dos espiritualistas do Ocidente fazem uma leitura infantil e simplista do nosso Kuruksetra cotidiano, achando que o corpo é sempre nosso inimigo e que a Alma sempre é nossa aliada. É preciso ressalvar que sem o corpo não haveria possibilidade de estar aqui e vivenciar dilemas que são úteis e necessários ao nosso aperfeiçoamento.
O corpo não é nosso adversário, mas sim um instrumento de
trabalho, como também é o escafandro para o mergulhador que estuda a biologia marinha
abissal.
O corpo não pode ser culpado pelos atos de quem o habita e
nem muito menos este que o habita deve se eximir de suas responsabilidades
morais e espirituais culpando o corpo pelas suas falhas.
Ninguém em sã consciência culparia a roupa de um assassino
pelo fato deste ser um assassino ("sou inocente, matei porque meu paletó
me obrigou a isso"), ou um macacão de um mecânico pela graxa que se
acumula nele enquanto efetua seu trabalho. A graxa de um macacão de um mecânico
são as marcas de seu ofício, sinais dignos de sua labuta e de sua competência,
e não indícios de falta de higiene. Nosso corpo não possui pecado em si, qualquer
biólogo sabe disso. Se o Mal está em nós, está portanto em nós, e não em nosso
corpo.
Como alguém já disse, não somos um corpo tendo uma
experiência espiritual, mas espíritos em uma experiência carnal.
A carruagem de Arjuna, com quatro cavalos, a Quadriga. Krishna é o
cocheiro.
E é na mente que devemos concentrar nossa atenção, não no
corpo; no cocheiro da quadriga, da carruagem, e não na carruagem em si.
É neste cocheiro, que em Kuruksetra representa a própria
Presença Divina, que reside o segredo de nossa vitória ou derrota neste mundo
de conflitos e estímulos permanente.
E quando fraquejarmos e deixarmos, paralisados pelo medo,
nosso arco cair de nossas mãos, não será a carruagem que nos aconselhará mas o
cocheiro da carruagem. Ele dirá: "- Levante-se e lute.",
como Krishna disse a Arjuna. Ao ver nossa hesitação, Deus nos indagará, no
silêncio antes da luta "- Meu querido ..., como foi que estas
impurezas desenvolveram-se em ti? Elas não condizem com um homem que conhece o
valor da vida. Elas não conduzem aos planetas superiores, mas à infâmia. Ó
filho de Pritha, não cedas a esta impotência degradante. Isto não te fica bem.
Abandona esta mesquinha fraqueza de coração e levanta-te, ó castigador dos
inimigos."
Krishna instrui e inicia Arjuna no Yoga
Não será nosso inocente corpo que nos levantará, porque
também não foi ele quem nos lançou ao solo, mas nossa mente, a mesma que nos
constrói ou nos destrói.
Bem lembram os
Budistas que a mente é a fonte de toda ilusão e de todo equívoco. Mente
equilibrada, visão de mundo equilibrada, vida equilibrada; ao contrário, mente
desequilibrada, visão de mundo desequilibrada, vida desequilibrada.
Nosso Kuruksetra principal, é portanto o Kuruksetra
Mental.
É lá que vamos resolver medos, inseguranças, receios,
preconceitos, e aonde daremos o golpe de misericórdia em nosso pior inimigo, a
ignorância. Só a falta de conhecimento pode, verdadeiramente, ser chamada de O
Mal. E aqueles que pregam a favor da chamada "simplicidade" a qual,
na verdade, é a identidade secreta da "Mediocridade Espiritual",
pregam a favor do Mal.
Todo homem e mulher cultos são complexos.
Tudo que é aparentemente simples e facilita enormemente
nossa vida é, em verdade, altamente complexo.
A mente não é o Mal, mas por ser extremamente complexa,
precisa ser objeto de estudo demorado e profundamente conhecida e dominada para
ser usada em toda a sua plenitude, senão, por uso inadequado, nos levará a
equívocos constantes, ao erro e ao sofrimento.
Dê um tablet, estes computadores com telas sensíveis ao
toque, a uma criança de menos de dois anos e observe.
Sua inexperiência fará com que golpeie com força
desnecessária a tela, sem conseguir extrair desta os resultados que
ela pode dar.
Falta-lhe conhecimento; falta-lhe a iniciação.
O uso da mente é igual. É preciso que tenhamos a iniciação
necessária no campo mental para entendermos que culpar o corpo pelos erros da
mente é ridículo como culpar o paletó pelas bobagens que fala quem o veste.
É a mente que comanda nossa interação com o mundo e
precisamos aperfeiçoá-la como limpamos a lente de nossos óculos para enxergar
melhor. Lentes limpas, visão clara; lentes sujas, visão turva, deformada.
O interessante é que da mesma maneira que não somos o corpo,
também não somos a mente, mas usamos um e outro para nos relacionarmos com a
criação a nossa volta. Nós não somos nossas roupas, nós não somos nossos
óculos; mas sem eles não poderíamos viver aqui.
Quando falamos de um Kuruksetra Mental não queremos dizer
com isso um combate à nossa própria mente, "aos nossos próprios óculos",
mas sim um esforço "para mantê-los sempre limpos e transparentes",
pois se o Mal está na Mente, não é a Mente em si o próprio Mal, mas sim seu uso
inadequado. A Mente sempre foi considerada por Budistas um problema a ser
superado, mas me pergunto se ela não é, mais que isso, um instrumento a ser
dominado.
Como uma espada de samurai, muito afiada, que pode cortar um
fio de cabelo com seu gume, e que se bem manipulada torna-se poder para seu usuário,
mas se mal manipulada pode decepar a mão de quem a segura.
Para os rosacruzes, a Mente é um instrumento poderoso e pode
e deve ser conhecida, para poder ser adequadamente utilizada.
Este é nosso desafio, este é nosso mais importante
Kuruksetra, que sempre será um grande desafio, diante do qual algumas vezes
fraquejaremos.
Nessa hora, ouçamos o Deus Interior, o cocheiro da Quadriga,
que nos lembrará de nossa linhagem, de nossa dignidade, dizendo-nos "-
Voce é um Rosacruz, nunca se esqueça disso. Levante-se e lute."
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