por Mario Sales, FRC, SI e MM
Nós Rosacruzes, repetimos orgulhosamente que somos herdeiros de Descartes, Bacon e Comênius. Os dois primeiros, pensadores e filósofos reconhecidos em Teoria da ciência e metodologia de pesquisa; o terceiro, educador por natureza e profissão.
E aí temos, séculos mais tarde, Spencer Lewis, em um esforço absurdo de organização didática de um curso por correspondência que atingisse o maior número de pessoas possível, traduzindo em linguagem contemporânea os empoeirados alfarrábios de Sir Hyeronimus e seus companheiros, na Europa.
Foi este sistema educacional, que espiritualizava pela ciência e dava cientificidade à sensibilidade de cada um, que se tornou a base de AMORC, no inicio do século XX. Trabalho magistralmente ampliado e continuado por Ralph Lewis até que, finalmente, seu tempo de trabalho terminou.
Daí pra cá passamos por várias alterações administrativas, naturais em empreendimentos tão grandiosos e ambiciosos como uma escola de esoterismo e misticismo mundial.
E a sua universalidade só foi conseguida graças à fundamentação educacional que sempre foi o espírito do rosacrucianismo de AMORC. Nunca que eu me lembre, até tempos recentes, precisamos apelar para um viés devocional para levar em frente nossos trabalhos em todo mundo, já que qualquer ato de devoção implica um foco ao qual se devotar, seja uma personalidade ou uma causa sócio política.
Religiões embora visem a espiritualidade, geralmente tem um efeito divergente na sociedade humana,separam pessoas por causa de crenças, enquanto a ciência e o estudo, ao contrário, fazem com que todos convirjam em busca do avanço tecnológico, independente de origem geográfica, credos pessoais ou valores morais.
A ciência e o avanço tecnológico nos une.
Tais coisas, traços de credos religiosos, são estranhas ao nosso trabalho, já que por princípio, evitamos até mesmo o culto de personalidades, grandes rosacruzes contemporâneos, exatamente para evitar estes personalismos tão danosos a certas pessoas.
Somos uma fraternidade de seres curiosos e estudiosos, por isso classificados em geral como estudantes rosacruzes, e não necessariamente rosacruzes em si.
Estudamos todos na busca de conseguir o título de discípulos de um Adepto e não de Mestres de qualquer coisa. Preparamo-nos todo o tempo, para sermos estudantes melhores, e não professores.
Só que é exatamente o ato de estudar que se fortalece no ato de tentar ensinar e esclarecer as dúvidas alheias.
Por isso nosso foco deveria ser o estudo e não o ato devocional. Embora entenda que a Tradicional Ordem Martinista, como Papus a concebeu, seja uma nobre Ordem, penso que ela trouxe alguns conflitos existenciais aos rosacruzes, importantes: o primeiro por ser uma ordem autodenominada Cristã, o que pode causar desconforto aqueles que não professam a crença no Cristo como um símbolo religioso, mesmo por que, para Pasqually, este Cristo, Yeshoua, é considerado o Grande Arquiteto do Universo, cargo e título reservado nas Ordens Maçônicas ao conceito de Deus. Segundo: se o Marquês de Guaita, em sua maravilhosa mensagem aos membros da Ordem Martinista, os libera de crenças para pertencer à Ordem, como deixar de notar o contraste entre sua visão e uma Ordem que tem como um de seus símbolos mais importantes um personagem símbolo de devoção religiosa para tantos no mundo? Como não confundir esoterismo como uma simples prática religiosa, com todos os riscos ligados a este equívoco?
E isto se deve ao fato de que o Martinismo não foi criação de um indivíduo, mas a intersecção de uma série de posturas e perspectivas esotéricas, embora se reconheça a importância de Papus e Chaboseau em seu restabelecimento, feito a ressalva de que era uma Ordem de perfil eminentemente francês e, naquela época, Paris ainda se julgava, e com razão, a capital do mundo civilizado. Talvez por este aspecto de importância histórica internacional naquele dado instante da civilização ocidental, os parisienses supusessem que suas visões de mundo eram o próprio mundo de per si, e que sua visão seria necessariamente a sínteses de todas as visões esotéricas do planeta. O trabalho de Gurdieff na Armênia estava se iniciando bem como o de Paramahansa Yogananda na Índia. E para ser sincero, a visão multicultural de Blavatsky não era bem compreendida.
Paris, no entanto, julgava-se capaz de representar o mundo quando no máximo, representava o pensamento ocidental do esoterismo.
Havia como já comentei aqui, além disso, a demanda por outra abordagem do Esoterismo, tão em voga naquela época, que oferecesse uma opção aos complexos conceitos vedânticos da Doutrina Blavatskyana e Teosófica, que, naquele momento, dominava o universo esotérico.
Uma ordem com uma história francesa, de maçons franceses, restaurada por um grupo de esoteristas franceses, teria muito mais aceitação entre aqueles que por natureza, buscassem algo mais familiar aos seus hábitos e práticas ocidentais cotidianas e culturais.
A TOM, como restaurada por Papus, embora proposta como universalista, na verdade só consegue ser uma manifestação eurocêntrica cristã, recheada de valores ligados a esta visão social de mundo, em absoluto universal ou capaz de contemplar a enorme diversidade de crenças e costumes espalhados pelo planeta.
A AMORC, ao contrário, tem uma história bem mais antiga e mundial que a TOM, tendo, se considerarmos a tradição, percorrido todos os centros culturais do planeta ao longo dos séculos, desde as pirâmides, passando pela Babilônia, Alexandria, Atenas, e depois Europa, tanto na Alemanha quanto na França, para finalmente chegar ao continente americano. E como os judeus colheram aos poucos seus elementos culturais de cada civilização sob o jugo das quais permaneceu escravo, como a Shekinah Egípcia ou os Anjos da Babilônia, também a AMORC hoje é uma intersecção de tradições as mais variadas que incluem entre algumas delas, as tradições da Ordem dos Essênios, dos Illuminatti alemãs, e dos Cabalistas Cristãos de Pico de La Mirandola, na Itália.
Essas heranças cabalista e magista, onde despontam personagens como John Dee e outros, tinham sido aos poucos transcendidas pelos modernos rosacruzes, como práticas interessantes, mas já desnecessárias, dada a descoberta de que todo o poder que precisamos está em nós, em nossa mente e em sua capacidade de Visualização Criativa.
O encontro com a TOM fez com que esses assuntos voltassem à baila, a meu ver, de maneira historicamente válida, mas cujo senso prático me escapa.
Além disso, confundiu em todo o mundo o cerne de milhares de rosacruzes que sempre viram em AMORC, definitiva e essencialmente, uma escola de conhecimento de amplo espectro, sem fixação em formas específicas de espiritualidade como o Cristianismo e suas derivações, mas sim em busca de denominadores comuns em várias outras linhas, como na sabedoria do Buda, da filosofia do Tao de Chuan Tze, no Vedanta dos Rishis, e na Teosofia de Blavatsky, por que não dizer.
Não há, nem nunca houve qualquer constrangimento a quem não fosse seguidor de uma linha essencialmente cristã de pertencer à AMORC, pois escolas não são religiões e por isso o Cristo pode e deve ser usado como exemplo de ser humano e de místico e espiritualista sem a necessidade de que isto implique em uma prática devocional de aspecto religioso ou que lembre uma religião. Embora eu esteja me repetindo, tenho certeza, ao tocar neste tema, me parece que ele tenha raízes psicológicas e subconscientes tão profundas que seja necessário a repetição destas abordagens por vários ângulos até que se entenda que nosso foco não deve ser perdido, na minha opinião, e que , sem prejuízo do trabalho espiritual desenvolvido dentro da prática martinista, é importante que, como a tradição dos terapeutas essênios ou a dos Illuminatti alemãs, a tradição da TOM sofra uma rosacrucianização, universalizando-se e liberando-se de características essencialmente ligadas a uma visão cultural datada e geograficamente determinada.
E só com a ideia força de que Somos uma Escola e não uma Religião poderemos nos libertar desta armadilha psicológico-esotérica de não saber ao certo mais o que somos, se esoteristas ou religiosos, correndo o risco de não sermos mais nada ao fim e ao cabo.
Essa é a minha preocupação com essas reflexões.
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