por Mario Sales
Em um seminário ontem a noite em uma loja Maçônica, lá pelas
tantas o palestrante entrou pela seara da Cabala.
Como de hábito, dentro da maçonaria, não se faz distinção entre
Cabala Judaica, de Luria ou de Moshe de Leon, com a Cabala Cristã, este
Frankstein nascido da mente perturbada do pensador italiano Pico de la
Mirandola, catequista cristão de primeira hora e que causou, a meu ver, com seu
trabalho, um grave desserviço ao estudo do verdadeiro misticismo judeu que
desembocou no que se chamou de Cabala Esotérica; mas isto é assunto para outra
hora.
O que me chamou a atenção, no entanto, foi a colocação do
conceito de que o Ain, o Nada de onde Tudo provém, é essencialmente doador e
que ao homem resta a condição de eterno recebedor da Luz do Ain, não tendo
maior papel na Criação a não ser receber cada vez mais e melhor esta Luz, pela
retirada paulatina dos véus que inibem sua percepção.
Usando uma interessante metáfora na explicação das “cascas”
que envolvem o homem, o palestrante comparava estas obstruções à véus que são
jogados sobre um abajur em número cada vez maior e que aos poucos chegam a ocultar
quase por completo a luz que dele emana.
O processo de avanço espiritual, concluía ele, seria a
retirada de véu após véu, até que a luz pudesse novamente voltar a brilhar
desimpedida.
Quanto a estas duas afirmações, de que Ain é apenas doador e que
Malkuth e os seres que neste plano habitam são apenas receptores, (conceito que
o palestrante deve ter colhido em algum dos milhares de textos sobre Cabala que
existem pelo planeta hoje em dia, repito, sem a distinção clara daquilo que é genuinamente
judeu e o que é oriundo da salada conceitual chamado Cabala Cristã), argumentei
que, na minha opinião, (paradoxalmente usando um exemplo do esoterismo
árabe-ocidental, a Tábua de Esmeralda), não via da mesma forma a relação , via
Árvore da Vida , entre Ain e Malkuth.
Considerando que a Tábua ensina que “o que está em cima está
embaixo e o que está embaixo está em
cima” vejo a Árvore como uma estrada de duas mãos e Malkuth como o
espelho de Deus, tese que encontra amparo em Luria, com sua teoria do Tikun
Olam, ou o conserto do Mundo.
Como sabem, após a Shevira Hakelin, Luria diz que os cacos
espalhados devem ser recolhidos e reunidos em um único conjunto, de forma a
desfazer a dispersão das luzes causada pela explosão das sefirot pela fraqueza dos Vasos iniciais em suportar a Luz de Deus, na primeira tentativa de criação de Malkuth.
A Shevira Hakelin, ou Explosão dos Vasos, para Luria, causou
uma situação tal que, sem o concurso e a colaboração de cada um de nós, o
Universo e a Criação jamais serão de novo reorganizados, e cada vez que faço
algo bom, praticando um ato de misericórdia, ajudando alguém que precisa, demonstrando
compaixão, estou envolvido diretamente no processo de Tikun Olam, ou seja,
estou reorganizando as luzes espalhadas, reunindo-as e restaurando a Unidade
perdida. Para Luria, o ser humano comum, por mais simples que seja, pode e deve
colaborar com o Ain na administração e aperfeiçoamento da Criação o que, ao
contrário da tese defendida pelo palestrante ontem à noite, faz de Malkuth um
lugar de intensa atividade, e não uma região passiva.
Assiah, o nível onde Malkuth se encontra é, pois, uma região
viva e atuante.
Então, na minha opinião, melhor seria considerar a Árvore,
como disse, uma via de duas mãos e Malkuth como o Espelho de Deus, como já
defendi neste espaço mais de uma vez.
Deus, em sua Sabedoria, não é inerte ou
imóvel, como preconiza a visão filosofica de doutores e pensadores da Igreja Catolica, como Agostinho, mas evolui, como pensa o Hinduísmo e sua filha dileta , a Teosofia Blavatskiana, e parte importante desta evolução depende dos experimentos
que realiza em cada Criação, em cada Universo que produz, sucessivamente.
Não uma única criação, um único Tzim-Tzum, dentro do espaço
em seu interior, como ensina Luria, mas sucessivas criações, a seguinte sempre
mais aperfeiçoada que a anterior, consequência das infindáveis informações
colhidas por nós, suas sondas energéticas, que neste ambiente temporário de
milhões de anos e em sucessivas encarnações ( sim, o Cabala aceita a
reencarnação, a Guilgul Neshamot, a Transmigração das Almas, como descrita no
Sepher Bahir e no Zohar) buscamos a retirada dos tais véus citados pelo
palestrante, não apenas para receber mais luz, mas para melhorar a compreensão
de Deus de si mesmo.
Talvez uma imagem mais didática seja a do espelho do
banheiro durante um banho muito quente.
Toda vez que saímos do chuveiro após um banho muito quente
que tenha produzido muito vapor, encontramos o espelho embaçado e precisamos
limpar com as mãos o vidro para que possamos fazer a barba ou terminar nossa
higiene matinal.
Deus cria, da mesma maneira, sucessivos Universos, e estes
são como espelhos embaçados em que ele procura se olhar e se conhecer melhor. O
tempo de duração de um único universo, de uma única experiência de Criação,
entre muitas, é o tempo que Deus leva para “desembaçar o espelho” à sua frente.
O Ain cria mundos e universos para se ver melhor.
Malkuth é o espelho que reflete a Luz que vem do Alto de volta
à fonte, imagem reflexa essa sem a qual Ele, o Incognoscível, não poderia ver-se e conhecer-se melhor.
Penso na maioria do tempo como um filosofo Sankhya e
acredito no aforisma desta grande escola hindu que diz "Ishwar Avydya”, ou seja “Deus
não se discute”.
Com isso quero dizer que discutir a natureza de Deus não
leva a parte alguma já que, como se disse, ele é, para nós, algo acima de nossa
compreensão.
Discuto , entretanto, estes aspectos acima, animado pelo debate de ontem a noite, apenas porque isto diz respeito à vida humana em Malkuth, e não
porque esteja em meio a uma investigação metafísica abstrata.
Se entendermos, como Luria propõe, que somos parte da
solução, nossa responsabilidade e nossa auto estima aumentam, na mesma proporção
que entendemos a importância de cada ato nosso, por menos importante que
pareça, na melhoria da compreensão de Deus de si mesmo e no aperfeiçoamento do
próprio Universo. Não somos mais vítimas de um destino, mas criadores do Destino, tão criadores quanto Deus em si já que somos suas extensões.
Todos nós somos, portanto, como diz lindamente o Martinismo, Agentes Divinos na Terra, e nesse sentido nunca poderíamos desempenhar papel de simples
receptores da Luz divina, sendo nossa única obrigação, se aceitarmos esta
compreensão, ficar cada vez menos afastados da luz de Deus, que nos banha, mas
passivos, como alguém que se bronzeia ao sol, em uma praia.
Alguns dirão: não, não se trata disso, pois a exposição à
luz de Deus pela retirada dos véus que interrompem o livre fluxo da luz divina
pressupõe atividade e aperfeiçoamento e não passividade. Concedo. Só que esta
explicação é, embora correta, insuficiente.
A melhoria de nossa espiritualidade não visa apenas o nosso aperfeiçoamento
isoladamente, mas o aperfeiçoamento da própria criação, do conjunto do Adan
Kadmon, a Humanidade.
Portanto, podemos buscar a progressiva retirada dos véus não
pensando em melhorar a nós mesmos, mas ativamente praticando o bem, sem olhar a
quem, melhorando o mundo, como um todo.
Quando a bondade em nós se tornar um hábito espontâneo,
quando ver o outro não como um estranho, mas como membro de uma comunidade e de
um tecido ao qual eu pertenço, tecido este que deve ser preservado por todos
para que todos, inclusive nós mesmos, possamos desfrutar de um ambiente melhor,
também estamos nos desfazendo dos véus que nos bloqueiam a visão e que impedem
de vermos, não diferenças, mas semelhanças entre nós, seres humanos.
Isto também é Tikun Olam, a restauração da Criação, o trabalho
de reunir os cacos resultantes da Shevira Hakelin.
Queria dizer , por último, que alguns véus não se tornaram
véus apenas por deficiência da espiritualidade humana.
O fato de estarmos em Malkuth, no plano de Assiah, nos
obriga a lançar mão de instrumentos de adaptação a este ambiente material, de
densidade diferente, da mesma forma que usamos trajes de mergulho especiais que
reduzem nossos movimentos e tolhem nossa capacidade de visão como os antigos
escafandros, ao mergulharmos em águas profundas.
A maioria dos cabalistas e esoteristas supõem que as
explicações das dificuldades do homem são ligadas a problemas de caráter e
falta de evolução. Insisto que devemos considerar a possibilidade de que esta seja,
como imaginam Hindus, o físico Marcelo Gleiser e alguns Cabalistas, uma criação imperfeita, que não
permite ainda maior liberdade às suas "sondas divinas de investigação", nós, seres
humanos, tendo-as feito de tal forma mal acabadas que enfrentam graves
dificuldades de adaptação na troca entre planos como Atziluth e Briah, Briah e
Yetzirah e finalmente, Yetzirah para Assiah, aonde se encontra Malkuth.
Em vez de supor que as dificuldades do homem sempre são consequência
de suas opções, consideremos misericordiosamente, que nós humanos fazemos o que
podemos dentro das condições que esta criação em particular nos permite fazer,
e que mais do que isto, neste atual modelo, seria impossível realizar.
Esta visão, de que o homem é o culpado de sua dor e não a
Criação em aperfeiçoamento que o cerca, é bastante judaico-cristã. Culpa e
pecado são conceitos caros a estas duas culturas.
Na verdade, sem tirar de cada pessoa sua responsabilidade por
seus atos, insisto que temos limitações e que precisamos ter tanta compreensão
e misericórdia com os outros quanto conosco, nesta difícil caminhada que é a
reconstrução do Universo, deste em que ora estamos, bem como de todas as outras experiências de Universo
que o Criador, o Ain, em sua imensa curiosidade sobre Ele mesmo, produzirá, ao
longo das eternidades.
Por muito tempo ainda Deus esfregará o espelho da criação
com suas mãos para retirar o vapor que o encobre apenas para ver-se, ou talvez
terminar de fazer sua própria barba, a divina barba do Criador.