Por Mario Sales, FRC, SI
Olho para o lado e vejo um senhor de cabelos brancos
aproximar-se da estação de atendimento da recepcionista daquela oficina
autorizada, para tratar de detalhes sobre o seu carro.
Sentado, aguardo a minha
própria revisão.
Ele se volta e ao me ver se dirige amistosamente para mim:
“-
Dr. Mario! Prazer em vê-lo, acho que o Sr não está me reconhecendo. Sou o filho
da Sóror Maria (nome fictício) .”
O impacto emocional foi rápido e forte.
Diante de mim está o mesmo homem, um advogado nos seus
cinquenta anos, que conheci forte e jovial, cabelos pretos, poucos anos atrás.
Está extremamente abatido, física e psicologicamente.
“-Eu estou passando por alguns problemas”, inicia ele a
narrativa esclarecedora. “-Estou em tratamento de um câncer, já com lesões
metastáticas”, diz ele.
Só aí percebo os esparadrapos em seu braço, na altura da
veia mediana do cotovelo. “A quimioterapia é muito cansativa”, continua, “e o
problema é que tenho uma filha pequena e minha esposa também está com câncer de
mama em acompanhamento, e também meu pai. Quem cuida do tratamento e do suporte
ao meu pai sou eu, pois sou filho único. Meu medo é que quando eu me for não tenha
ninguém para cuidar da minha filha”, diz ele.
Ele não fala com rancor ou revolta. É uma narrativa quase
didática, clara, descritiva.
Embora eu seja médico, aquilo me afetou. Pensei sobre os
desdobramentos da vida da família daquela nobre rosacruz que conheci e
respeitei e com a qual dividi, eventualmente, a administração do nosso capítulo
na cidade.
Era uma boa irmã, acredito que leal aos princípios que
norteiam ou devem nortear o comportamento de todos os rosacruzes. Mesmo assim,
após sua transição, também consequência do hábito do fumo, contemplo sua
família se desintegrando aos poucos, como um papel que queima aos poucos.
Tudo é ilusão e nossa vida física é finita, sim, teoricamente
eu sei de tudo isso, mas se não vivêssemos como se eternos fôssemos, não
haveria graça na existência. Nossa ilusão de permanência nos faz viver como se
este fosse nosso único e último corpo. Por isso atravessar situações assim é
tão difícil.
Quanto às dores da existência, aos sofrimentos inerentes à
condição humana, estes devem ser administrados, com serenidade, já que não
podem ser evitados por iniciados ou não iniciados.
São uma espécie de preço a pagar pela participação neste
drama, nesta encenação.
Não, preço não, verdadeiramente são parte do script deste
drama, pensando melhor.
Da mesma maneira como nos comportamos, entretanto, como se
fossemos permanentes e não finitos no corpo, aceitamos como verdadeiras as
dores que nos atingem, talvez porque se não tivermos algum envolvimento
emocional com os acontecimentos que nos atingem não viveremos as transformações
psicológicas inerentes aos mesmos, que ao fim e ao cabo são a sua finalidade.
Esteja na categoria de bom ou mal, cada acontecimento, é
minha crença, tem uma finalidade e um significado na montagem de um mosaico,
que ao final e apenas ao final tornar-se-á uma imagem clara.
Apenas saber essas coisas, entretanto, não nos garante a
serenidade necessária para atravessar estas intempéries, estas inevitáveis
intercorrências do viver.
A filiação à uma ordem esotérica qualquer também não nos
protege, magicamente, como alguns supõem, de problemas, nem nos cerca com uma
redoma protetora, como possa parecer à mentalidades mais simples.
Estamos expostos a todas as coisas que todas as pessoas
estão, sejamos ou não iniciados.
Espera-se, mas não é garantido, que nosso comportamento
diante dos problemas da existência seja mais tranquilo e sereno, e que as
emoções não nos devastem, e que nosso medo não nos domine, seja na vigência,
seja na iminência de dor ou sofrimento intenso.
Que sentido tem o que está acontecendo com a família desta
minha querida e saudosa sóror? Não tenho a menor ideia. Só que todo este quadro
me comoveu. Vi na narrativa a demonstração prática da finitude humana e da
irrelevância de nossas convicções diante de situações irreversíveis, como uma
doença terminal.
Escrever sobre essas situações, aqui, me enche de
misericórdia e tristeza por essa família.
Vivenciar este drama como parte ativa dele deve ser, por sua
vez, um sofrimento e uma angústia muito maior.
E o sentido destes acontecimentos continuará oculto no
coração daqueles que atravessam o problema.
Só eles poderão dizer o que significará para cada um essa
inexorabilidade dos fatos, esta iminência de destruição e morte que os ronda.
Nós que contemplamos tudo como espectadores só podemos pedir
a Deus que lhes dê serenidade suficiente para também olharem para esta situação
como expectadores, para desfrutar da experiência em detalhes e atingir a
compreensão do que deve ser compreendido nesta circunstância, como de resto em
qualquer evento da vida humana. Tudo é didático, tudo tem uma função.
Não posso crer em sofrimento sem razão ou objetivo, embora
seja assim que tudo pareça ser aos que não compartilham destas crenças.
Não sei também se este sofrimento nos fortalece.
Só o que sei é o que disse um colega psiquiatra em um curso
do qual participei: viver dói.
E só a capacidade de atravessar a dor com equanimidade e
equilíbrio nos garante capacidade de olhar para os acontecimentos com a
distancia psicológica necessária a diminuir ao máximo a dor associada.
Isso se chama em psiquiatria resiliência, a capacidade de
suportar os problemas com fleugma, elegância e dignidade.
Esta era a postura de uma antiga escola filosófica grega, os
Estoicos.
Místicos deveriam ter sempre um comportamento estoico diante
da dor, mas nem sempre é possível.
Antes de Místicos somos seres humanos, capazes de nos
compadecer ou nos exaltar. Talvez nenhum conhecimento seja tão fundamental a
vida como o treino de nossas mentes, não de nossos corpos, para poder
atravessar a existência com paz e equilíbrio, sem romantismo, sem ilusões.
Técnicas da Yoga e do Budismo são muito úteis neste particular.
Talvez devêssemos todos estudá-las, independente de sermos
ou não adeptos destas linhas de pensamento. Pelo menos pelo aspecto operacional,
pois nada nos torna mais estoicos do que a serenidade budista do desapego a
matéria, ou do treino para este desapego, ou a visão de distância da
consciência dos acontecimentos que a mente percebe, a técnica de observar,
indiferente, o que nos atinge, e em um nível mais profundo, observarmos-nos
enquanto observamos nossa própria mente, o mais alto grau de meditação da Yoga.
São instrumentos poderosos de fortalecimento da resiliência.
O que precisamos senão isso? Sermos capazes de olhar nossos
momentos bons e ruins com a mesma postura, sem nos deixar arrastar pelos
afetos?
A mente é o campo de batalha verdadeiro, não o mundo.
E como qualquer batalha, seremos feridos, derrotados, ou venceremos,
não existe meio termo.
Paramahansa Yogananda tem um texto em que descreve que
Kuruksetra, a épica batalha do Bhagavad Gita, é a representação desta batalha
diária que se trava em nossa própria mente.
Penso que é uma imagem correta. A serenidade e a
imperturbabilidade são armas poderosas neste conflito.
Oxalá, sem perder a misericórdia pela dor de quem padece,
possamos todos desenvolver esta fundamental habilidade.
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