Por Mario Sales
São João da Cruz
SALMO 88
Ó, SENHOR,
meu Deus e Salvador, dia e noite, na Tua presença, eu clamo a Ti.
Ouve a minha oração; escuta o meu grito pedindo socorro.
Pois as aflições que caíram sobre mim são tantas, que já estou perto da morte.
Sou como aqueles que estão para morrer; já perdi todas as minhas forças.
Estou abandonado no meio dos mortos; sou como os soldados mortos jogados nas covas;
Sou como aqueles que foram completamente esquecidos por Ti e que não tem mais a Tua proteção.
Ouve a minha oração; escuta o meu grito pedindo socorro.
Pois as aflições que caíram sobre mim são tantas, que já estou perto da morte.
Sou como aqueles que estão para morrer; já perdi todas as minhas forças.
Estou abandonado no meio dos mortos; sou como os soldados mortos jogados nas covas;
Sou como aqueles que foram completamente esquecidos por Ti e que não tem mais a Tua proteção.
Tu me
atiraste no mundo dos mortos, lá no fundo, na escuridão.
A Tua ira pesa sobre mim, e as Tuas ondas me esmagam.
A Tua ira pesa sobre mim, e as Tuas ondas me esmagam.
Tu
fizeste com que os meus amigos me abandonassem e olhassem com nojo para mim.
Sou como o preso que não pode escapar.
Tenho sofrido tanto que quase já não enxergo. Ó Senhor Deus, dia após dia eu te chamo e levanto as mãos em oração.
Será que fazes milagres em favor dos mortos? Será que eles se levantam e te louvam?
Será que no mundo dos mortos se fala do Teu amor?
Será que naquele lugar de destruição se fala da Tua fidelidade?
Tenho sofrido tanto que quase já não enxergo. Ó Senhor Deus, dia após dia eu te chamo e levanto as mãos em oração.
Será que fazes milagres em favor dos mortos? Será que eles se levantam e te louvam?
Será que no mundo dos mortos se fala do Teu amor?
Será que naquele lugar de destruição se fala da Tua fidelidade?
Será que
naquela escuridão são vistos os Teus milagres?
Será que
na terra do esquecimento se pode ver Tua fidelidade?
Ó Senhor Deus eu Te chamo pedindo ajuda; todas as manhãs eu oro a Ti.
Por que me rejeitas, ó Senhor? Por que Te escondes de mim?
Desde moço tenho sofrido e estado perto da morte; ando esgotado com o peso dos Teus castigos.
A Tua ira e o Teu furor caem sobre mim; os teus ataques terríveis acabam comigo.
O dia todo eles me cercam como uma enchente; eles me rodeiam por todos os lados.
Ó Senhor Deus eu Te chamo pedindo ajuda; todas as manhãs eu oro a Ti.
Por que me rejeitas, ó Senhor? Por que Te escondes de mim?
Desde moço tenho sofrido e estado perto da morte; ando esgotado com o peso dos Teus castigos.
A Tua ira e o Teu furor caem sobre mim; os teus ataques terríveis acabam comigo.
O dia todo eles me cercam como uma enchente; eles me rodeiam por todos os lados.
Tu
fizeste com que os meus queridos e meus vizinhos me abandonassem, e agora tenho
como companhia a escuridão.
Bíblia Sagrada, Ed Paulinas, nova
tradução na linguagem de hoje,2006
Estamos todos, por causa da pandemia deste ano, aprisionados
em nossas casas, impedidos de ver uns aos outros, a não ser por artifícios
tecnológicos que nos permitem ver-nos sem tocar-nos.
Achamos que isto nos constrange, que nos angustia e tortura.
Foi inevitável na minha cabeça a comparação com os sofrimentos de outro
prisioneiro, que seria mais tarde o guia dos que estão isolados da sociedade,
não por algum constrangimento externo, mas por opção e perfil pessoal.
Falo de São João da Cruz, o guia da vida monástica, aquele
que ao escrever sobre a vida retirada inspirou e ainda inspira monges e
freiras.
Nem de longe nosso isolamento pode ser comparado às
dificuldades físicas que acompanharam este monge, em 1577.
Eis um resumo: “Na noite de
2 de dezembro de 1577, um grupo de carmelitas contrários às reformas invadiram
a casa de João em Ávila e o prenderam. Ele havia recebido ordens de alguns
superiores contrários às suas ideias a deixar Ávila e voltar para sua casa
original, mas ele se recusou alegando que seu trabalho havia sido aprovado pelo
núncio espanhol, uma autoridade superior, o que resultou em sua prisão.
Ele foi levado para um mosteiro em Toledo, que era, na época, o mosteiro
carmelita mais importante em Castela, abrigando provavelmente uns 40
frades. João foi acusado de desobedecer às ordens de Placência e, apesar
de seus argumentos, acabou sendo condenado à prisão. Encarcerado no
mosteiro, João foi mantido sob um regime brutal que incluía uma surra de
chicote em público ao menos uma vez por semana e um isolamento completo numa
cela minúscula (3m x 2m) que mal abrigava seu corpo. Com exceção das raras
ocasiões nas quais recebia permissão para utilizar uma lamparina, João era
obrigado a subir num banco para conseguir ler
seu breviário utilizando a luz que escapava do cômodo vizinho através
de um buraco na parede. Ele não podia trocar de roupas e era alimentado apenas
com pão, água e restos de peixe salgado. Foi neste período que João compôs
grande parte de seu famoso poema "Cântico Espiritual" (além de outros
menores) em papel fornecido por um outro frade que era encarregado de vigiar
sua cela. João finalmente conseguiu escapar nove meses depois, em
15 de agosto de 1578, através de uma pequena janela que existia na cela vizinha
depois de conseguir soltar as dobradiças da porta de sua cela.”
Meu computador vara
a noite produzindo palavras e textos de forma ininterrupta, limitado apenas
pela minha disposição e lucidez. Ao contrário de João, que nem papel conseguia
com facilidade, isto não me torna mais produtivo. É impressionante que naquelas
condições, “João compôs grande
parte de seu famoso poema "Cântico Espiritual" (além de outros
menores) em papel fornecido por um outro frade que era encarregado de vigiar
sua cela.”
Existem relatos em várias partes da literatura que atestam o
papel inspirador da miséria física na elaboração da boa literatura espiritual,
se bem que, a história do misticismo sugere que iluminados não são escritores
ou mesmo descritores de suas próprias percepções elevadas. Suas vidas são um
doar-se tão constante que qualquer interrupção para registrar seus princípios
éticos e espirituais seria como uma represa em um fluxo por natureza
ininterrupto em direção ao oceano cósmico.
Outros que ao contemplarem as suas águas límpidas e seu
ritmo inexorável o descrevam. A natureza do iluminado é fluir e permitir em si
mesmo este fluxo.
Cristo, Buda, Isaac Luria e mesmo Sócrates tiveram seus
evangelistas e relatores, que os imortalizaram em textos até hoje vigorosos e
admirados, como em um desdobramento compulsório da presença e passagem desses
iluminados pelos locais aonde passaram.
De qualquer maneira, não são condições materiais ideais que
promovem o bom trabalho intelectual, mas um determinado estado de espírito que
requer concentração e determinação, em uma palavra, foco.
Tudo que me dá conforto me distrai. Não sou favorável ao
faquirismo, esclareço, mas a vida espartana tem seu valor psicológico, no
sentido de reduzir todos os fatores que possam dificultar a manutenção estável
de nossa concentração.
Patânjali, o codificador do Yoga, descreveu o Ashtanga
Sádhana, o Caminho de oito partes. Os quatro últimos formam um conjunto de
fases ascendentes até o estado de despertar da consciência, temporário ou
definitivo, o Samadhi. A concentração, Dharana, é o segundo desses quatro
passos, e antecede o estado meditativo, Dhyana. O primeiro desses últimos 4
passos é Prathyahara, a Abstração, retirar a atenção das coisas a nossa volta
para alcançar um estado de foco adequado em um único ponto. Tudo que não seja
este ponto é seu adversário, seu inimigo, luta contra ele e contra a
estabilidade de nossa atenção. São a periferia da Mandala à frente do
meditador, a mesma periferia que deve tornar-se cada vez mais difusa e
invisível, até que desapareça por completo e reste apenas o centro do mesmo
Mandala, tão somente o centro, o nosso verdadeiro foco. Aí sim, passamos ao
período de ascensão gradual, aonde a perfeição de um estado leva a outro.
Perfeita abstração é igual a concentração. Perfeita concentração é igual ao
estado de Meditação. Perfeito estado meditativo, é igual a despertar da
consciência, mergulhar no todo, esquecer-se de si mesmo.
É possível fazer alguma coisa nesse estado de abandono, de
ausência de identidade pela identificação com o Altíssimo? Experiências como a
de São João sugerem que sim. Sem conforto, com fome, cansado, sendo açoitado
uma vez por semana, ainda assim com pedaços de papel conseguidos a duras penas,
São João da Cruz escreve e cria sua obra mística que depois iria aperfeiçoar.
Só consegue escapar nove meses depois, o mesmo tempo necessário a geração da
criança no ventre de sua mãe, como numa reprodução simbólica da maternidade. O
que nasce aqui, no entanto não é corpo, mas espírito; não é a carne, mais a
alma, e junto com ela um diário desta gestação resumido no chamado “Cântico
Espiritual”, sua obra do cárcere.
Tudo que nos dá conforto, nos distrai, nos prende ao mundo
dos sentidos, fortalece em nós a ideia de que “sim, somos o corpo”, e não que
“estamos no corpo”, temporariamente. Não é a matéria que nos prejudica, mas a
distração que ela nos causa, impedindo o foco correto no espirito, que não implica,
como demonstra a historia de João da Cruz, na inação, na aceitação passiva das
circunstancias adversas, mas que pode sim ser ambiente propicio ao surgimento
da beleza.
Quem já teve a curiosidade de estudar as diversas fases de
formação do feto sabe que a forma final que a criança apresenta no dia do parto
foi o resultado de mudanças progressivas que atravessam fases algumas das quais
em nada nos lembraria um ser humano. Olhos esbugalhados e afastados, cabeças
gigantescas em relação ao corpo, proporções que vão se ajustando ao longo das
semanas até que a criança está pronta para a aventura for a do útero.
Processos que em momento algum podem ser interrompidos,
cumulativos, com um único objetivo: a preparação do corpo para a vida em
ambiente aéreo, respirando não líquido, mas ar.
Assim também o espírito atravessa processos preparatórios à
iluminação, fases nas quais o foco é apenas um: a evolução. Todas as
experiências visam apenas a Ascenção da consciência aos níveis que a atraem
desde que chega a este mundo, arrastada pela imensa saudade da Unidade que já
conhecera antes desta experiência de aparente autonomia e independência.
O mesmo João da Cruz que encontrou forças e foco para
resistir a esta gestação moral nestes nove meses entre 1577 e 1578, descreveu
com brilhantismo em sua obra literária a Noite Negra da Alma, o momento mais
escuro que o espírito atravessa antes da iluminação, a angustia comparável a do
corpo no canal do parto, na hora de sua expulsão do corpo de sua mãe.
Antes protegido, aquecido, mergulhado em líquido, o feto é
trazido a um meio ruidoso, ofuscado por uma luz desconhecida, e tem seus
pulmões inflados de modo súbito pelo processo de respiração.
Sair do estado material para o espiritual é da mesma maneira
um brusco salto qualitativo, após um longo acumular quantitativo, um salto que,
mesmo aparentemente súbito, apenas continua e coroa um processo que começou
muito, muito tempo antes.
A evolução lembra mais cangurus do que cisnes em um lago.
Não deslizamos ao longo das vidas, saltamos de existência em existência, de
nível para nível, na escada espiralada da evolução.
O desconforto e o sofrimento nos afetam e entristecem, como
entristeceu o próprio rei David do salmo 88, em epígrafe. Mas isto não
significa que não possa ser um estímulo e uma oportunidade de melhorarmos nosso
foco espiritual privados que estamos das distrações habituais.
Continuemos trabalhando porque eventualmente tudo passará,
porque tudo, absolutamente tudo passa.
E não percamos a chance de usarmos este período desconfortável
a nosso favor.
Tudo faz parte de nosso próprio processo de desenvolvimento,
mesmo que leve nove meses, como em uma gravidez normal.
Digno Mestre,
ResponderExcluirAprecio a leitura de suas reflexões.
Nobre é a jornada daquele que marca poeticamente sua eternidade espiritual em seu instante físico.
São João da Cruz nos deixou um belo sinal pra compreendermos que a noite escura é um instante de profundo crescimento espiritual, noto que essa marca ajuda o místico a não desistir.
Obrigada por deixar sua marca.
Gosto de ler suas reflexões, mas "meus passos são curtinhos pra acompanhar suas passadas".
Posso deixar um pseudônimo pra marcar minhas observações...
Uma flor lilás.