Multi pertransibunt et augebitur scientia (Muitos passarão, e o conhecimento aumentará).

domingo, 17 de fevereiro de 2013

AINDA OS TEMPLÁRIOS


por Mario Sales

"A história prefere lendas à  homens, nobreza à brutalidade, discursos inflamados às ações discretas. A História lembra das batalhas , mas esquece o sangue."

Do início do filme "Lincoln, caçador de vampiros"



Como houve uma intensa repercussão sobre a análise histórico crítica dos Templários, acho pertinente aprofundar o tema. Algumas reações foram mesmo de desconforto e este é o papel da reflexão verdadeiramente desassombrada, descompromissada com qualquer preconceito, em busca apenas da contemplação da realidade possível de ser contemplada.
Possível, porque como alguém comentou, tudo tem dois lados, e obviamente análises, sejam favoráveis ou desfavoráveis ao analisado, são sempre parciais.
Então, sinto-me bem por ter exposto "o outro lado da lua", para muitos que a admiram apenas como o "astro dos enamorados". A Lua, vista de perto, é cheia de crateras e rochas mortas. A sua indiscutível beleza em nosso céu, à noite, tem a ver com uma luz que não é propriamente sua, mas foi roubada do Sol, e nos é refletida de forma que seu verdadeiro dono não recebe o crédito.
As Ordens de Cavalaria também são assim. Recebem uma importância ao longo de séculos que tem mais a ver com nossos próprios ideais de perfeição romântica, e como com a Lua, esquecemos que estas Ordens tem um lado escuro, por serem parte de um exército, existiam para combater; e para vencer, era preciso que destruíssem seus inimigos, tirando-lhes a vida.



Mesmo aqueles que saíram de sua zona de conforto ao lerem aquelas linhas, por serem pessoas diferenciadas intelectualmente, como sei que são, concordarão que, como naquela época, na nossa é moda corrente tratar os árabes como bárbaros sem alma, seres no mínimo não civilizados. Esta é a história contada pelo Ocidente, sobre um tipo de povo ao qual o Ocidente deve praticamente toda a sua ciência e conhecimento.
Devemos aos árabes nossa matemática e astronomia (Al Biruni), nossa medicina e filosofia (Averróis e Avicena).
Os números que usamos em nossos cálculos são conhecidos como algarismos arábicos.
A Tábua de Esmeralda (ou Tábua Esmeraldina) , "o texto que deu origem à Alquimia islâmica e ocidental", foi primeiramente publicado em árabe , para ser traduzido  apenas no século XII para o Latim e aí sim começar a influenciar a Europa. Surgiu primeiramente nos textos seguintes: Kitab Sirr al-Khaliqa wa Sanat al-Tabia (c.650 d.C.), Kitab Sirr al-Asar (c.800 d.C.), Kitab Ustuqus al-Uss al-Thani (século XII), e finalmente, no Secretum Secretorum (c. 1140). É lá, na Tábua, que encontramos a frase tão decantada por maçons e rosacruzes: "Quod est inferius est sicut quod est superius, et quod est superius est sicut quod est inferius, ad perpetranda miracula rei unius", traduzida como "O que está embaixo é como o que está em cima e o que está em cima é como o que está embaixo, para realizar os milagres de uma única coisa.”



São estes mesmos árabes que conquistam Jerusalém e que são combatidos por Ordens de Cavalaria ocidentais, comandadas por Roma. É desses inimigos, chamados bárbaros, mas muito mais naquela época do que na nossa, representantes de uma civilização altamente refinada, que estamos falando.
Por outro lado, existe o aspecto literário. Como foram uma Ordem em princípio gerada no seio da chamada "Santa Madre Igreja", os Templários tiveram sua história banhada por textos que a enalteciam, escritos exatamente pelos únicos intelectuais e escritores que eram funcionários públicos com estabilidade no emprego e direitos trabalhistas assegurados, em uma época em que comer todos os dias não era para todos: os padres. E entre eles, São Bernardo de Claraval, que escreve sobre eles: "Um Cavaleiro Templário é verdadeiramente, um cavaleiro destemido e seguro de todos os lados, pois sua alma é protegida pela armadura da fé, assim como seu corpo está protegido pela armadura de aço. Ele é, portanto, duplamente armado e sem ter a necessidade de medos de demônios e nem de homens."[1]
Ora, isto tem um impacto no imaginário de qualquer nação. Ainda mais quando descrito e repetido em meio as missas que ocorriam a todo momento em todas as partes da Europa cristã.
Mas são os templários apenas um engodo, produto do marketing e da propaganda de Roma, ou teriam dentro de suas fileiras algum valor espiritual real?
É preciso, para ser sensato, lembrar que nenhuma Ordem, seja religiosa, esotérica ou de Cavalaria é totalmente homogênea. Mesmo entre os grupos mais cruéis encontramos lampejos de nobreza.
O que não quer dizer que não possamos falar em uma Ordem dos Templários AJM e PJM (antes de Jacques de Molay e pós Jacques de Molay).
O martírio do Grão Mestre arquitetado por Felipe IV e pelo Papa Clemente V teve um papel de divisor de águas na vida da Ordem.
A Ordem que reverenciamos não é aquela das batalhas na Terra Santa, nem a que acumulava tesouros indescritíveis, nem mesmo a que se dizia "pobre" e "casta", mas que gerava expressões como até hoje de diz na Alemanha: "beber como um Templário". A Ordem que reverenciamos, às vêzes de modo excessivo, era o que eu dizia no outro ensaio, é a Ordem Templária PJM.
Perseguidos, desmoralizados, sem a proteção de outrora da chamada "Santa Madre Igreja", eles são obrigados a fugir e mergulhar na clandestinidade, conhecendo o que os rosacruzes chamam de "a noite negra da alma".
Porque da mesma forma que hoje muitos se iludem julgando nobres e probos homens que primavam pela violência e às vêzes barbárie, como parte de seu cotidiano, também os próprios templários foram iludidos pelo mesmo discurso que os criou e alimentou sua existencia AJM.
De cavaleiros cuja  "alma, é protegida pela armadura da fé, assim como seu corpo está protegido pela armadura de aço" passaram a ser fugitivos perseguidos, humilhados pela própria Igreja que antes os idolatrava.
A desilusão que se seguiu (desilusão - perda da ilusão) deve ter tido, como teve, um forte impacto psicológico em suas vidas pessoais e este novo período da Ordem foi, provavelmente, uma busca de novos valores, mais perenes, menos católico-romanos e mais humanos, não mais baseados na literatura dos padres, em seus discursos de ódio contra os árabes, que antes de serem homens sem Cristo eram concorrentes da política expansionista das Igreja que deveriam ser destruídos a qualquer custo.
Os Templários PJM eram agora homens mais lúcidos, menos embalados por fantasias e mais conscientes de que o poder corrompe e o poder absoluto corrompe absolutamente.
Não há mais a vontade de conquistar e destruir um inimigo contra o qual foram lançados como cães adestrados por um treinador malicioso.
São agora senhores de sua vontade, sem rédeas ideológicas, sem uma bandeira de intolerância religiosa, sem ódios pré programados em suas mentes.
Começam um novo tipo de existência, muito semelhante a outras Ordens que conhecemos, discretos, voltados para a sua própria evolução como homens dignos, quase como um período de expiação de culpas pelas barbaridades da guerra, que com certeza foram muitas, pois não existe guerra que não seja bárbara.
É neste contexto de renascimento das cinzas, com a espada agora sendo mais um símbolo do que um instrumento de morte, que eles atravessam os séculos seguintes, do XIII até o XVIII, quando aparecem em meio a reorganização da Maçonaria na França, na pessoa do Cavaleiro de Ramsay (1686-1743). O trecho a seguir é retirado de "Maçonaria: a descoberta de um mundo misterioso" de Angela Cerinotti, Ed. Globo: "André Michel de Ramsay,( ... ) havendo se transferido para a França e se tornando "Grande Orador da Ordem" ( um cargo criado pela maçonaria francesa, não contemplado na Inglaterra), preparou para o dia 12 de março de 1737, em ocasião de um encontro entre expoentes de várias lojas, um discurso destinado a ter repercussão, depois de sua publicação. Na verdade, Ramsay não propôs, como muitos acreditam,a criação de graus suplementares, mas limitou-se a afirmar a superioridade da Maçonaria Escocesa quanto à pureza da tradição.(...) Muito provavelmente Ramsay não tinha consciência de quanto as implicações de seu discurso se revelariam determinantes para as novas feições da Maçonaria na Europa Continental.(...) Mas o modelo ético de que ele se serviu para traçar o retrato do maçon ideal não era mais o do "pedreiro-livre", e sim a do "cavaleiro"; e o contexto não era mais o canteiro de obras da catedral gótica  e sim o campo dos Cruzados, onde haviam lutado, juntos, a fidelidade a uma elevada tarefa religiosa e a honra do exercício das armas. Ramsay sustentou que o apelativo free-mason não deveria ser entendido pelos Irmãos "em sentido literal e grosseiro", como se "os fundadores da Ordem tivessem sido simples trabalhadores de pedras ou do mármore ou gênios curiosos que queriam aperfeiçoar as artes"  ou "apenas hábeis arquitetos que queriam dedicar seus talentos e seus bens à construção de templos exteriores". Os verdadeiros fundadores da Maçonaria tinham sido, segundo Ramsay, "príncipes religiosos e guerreiros que queriam", de acordo com a definição dada por São Paulo, "iluminar, edificar e construir os Templos vivos do Altíssimo".
Por esta longa citação, que foi apoiada no texto "Simbologia Maçônica, Graus Escoceses" de U. Gorel Porciatti, citado no texto de Angela Cerinotti, pode-se concluir que a chamada ligação Maçônica Templária nasce, e esta é a conclusão mais óbvia, de uma construção literária do cavaleiro de Ramsay, com o único intuito de estabelecer parâmetros de nobreza que envaidecessem os membros da Ordem Maçônica em França, geralmente provenientes da Aristocracia.
A negação da origem da maçonaria nas Guildas Inglesas de construtores, a suposição de que na verdade os maçons fossem produto do esforço de Nobres de construir uma Ordem de Cavalaria, tudo isto brota das tintas de um texto e não de fatos históricos.
A reunião entre maçons e templários do período PJM só se sustenta na necessidade de proteção e abrigo no segredo daqueles que, tendo sido antes poderosos, eram agora apenas e tão somente fugitivos sem pátria.
Ao contrário do que Ramsay diz, todas as evidências históricas apontam para um início da Maçonaria em moldes de humilde relacionamento entre pedreiros, que eram obrigados a conviver por séculos, já que uma catedral levava dezenas de anos para ser construída ( a de Barcelona levou duzentos anos). Em dois séculos, os construtores iniciais morrem e transmitem seus legados aos seus filhos que continuam seu ofício, e as ligações entre as famílias se aprofundam, com um alto grau de solidariedade entre os que estão expostos aos riscos de uma engenharia sem as medidas de segurança que hoje conhecemos. Uma única pedra que caísse, mataria dezenas de homens. Um tal grau de risco comum cria laços, não os laços da Guerra, como propunha Ramsay, mas os laços de um destino comum de trabalho e amizade.
Quanto ao fato de originalmente os Templários serem assim chamados por terem erigido sua sede sobre as ruínas do Antigo Templo de Salomão, simbolismo este que até nossos dias é consagrado entre maçons, isto não quer dizer que o simbolismo bíblico fosse fundador da Ordem Maçônica, mas sim que , a posteriori, estes fatos foram alçados ao imaginário e transferidos arbitrariamente ao passado como fato fundador. A Maçonaria Simbólica é posterior a Maçonaria Operativa, portanto o valor de símbolos como o Templo de Salomão só é consagrado em nossa Ordem quase ao final da Maçonaria Aristocrática, nos século XVII e XVIII.

O Incêndio de Londres



A maçonaria sempre foi uma Ordem Esotérica, no sentido do segredo, mas o tipo de segredo que guardou e guarda mudou ao longo dos séculos. No início, este esoterismo serviu a preservação de técnicas profissionais de corte das pedras, no intuito de manter a reserva de mercado, o que sustentou a Ordem até o incêndio de Londres, de 2 a 5 de setembro de 1666, quando a destruição da cidade foi tão grande que foi necessário chamar pedreiros de outros países, quebrando o monopólio da Guilda ou Sindicato Londrino de Construtores, os primeiros maçons. É neste contexto que a Maçonaria, unicamente no sentido de buscar sua própria sobrevivência, acelera o fenômeno dos maçons aceitos, o qual já ocorria desde o século XIV, com a entrada na Ordem de pessoas que não tinham em princípio vínculos com a Arte de Construir Catedrais ou o que quer que fosse, mas eram, isto sim, membros da Aristocracia, fascinados com o apelo de pertencerem a uma sociedade secreta. Entre os séculos XIV e XVIII, a maçonaria se transformaria, agora sim, de uma Ordem Secreta Profissional, em uma Ordem Esotérico-Simbólica, com uma metamorfose progressiva de seus ritos, a adoção de um ritual de Iniciação no lugar do Banquete de Aceitação que acontecia antes para os que nela ingressavam. É neste período, provavelmente sob a influência dos rosacruzes que se tornaram membros de suas fileiras, que a Bíblia passou a ser a fonte das reflexões maçônicas, e não mais apenas e tão somente a camaradagem entre os Irmãos.
Não surgimos como filósofos, nem mesmo como Cavaleiros, mas como pedreiros proprietários de uma técnica única de corte de pedras ensinada, mais uma vez , por padres arquitetos na virada do século X, quando começa a reconstrução da Europa após a Guerra de Cem Anos, humildes e acostumados ao trabalho braçal e à cerveja, mas com um forte senso de pertencimento a um grupo solidário e leal.
Existiram templários dentro da maçonaria sim, mas no período PJM. Eram já outro tipo de templários, mais preocupados em construir do que destruir, talvez até mais templários maçonizados do que maçons templarizados, dada a influência positiva de uma convivência com seres pacíficos e solidários, tendo pouco a ver com aqueles templários AJM, que matavam e saqueavam árabes. Para estes templários, a batalha real tornou-se apenas uma lembrança, nas sombras do anonimato forçado.
A conotação de origem templária da maçonaria e a construção de um passado imaginário de lutas e glórias associada àquela Ordem, AJM, está, como demonstramos, dentro de um contexto literário e discursivo, algo do qual fomos convencidos em uma noite de março de 1737, pela habilidade retórica de um poderoso orador.



[1] Bernard de Clairvaux, c. 1135, De Laude Novae Militae—In Praise of the New Knighthood

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