A CHAMADA "FALSA
LUZ"
por Mario Sales, FRC,SI,CRC
Hyeronimus Boch
Nesta terceira e última parte me dedicarei novamente a
tentar desmistificar o intelecto como inimigo da santidade, instrumento do
demônio para perverter a pureza dos simples ou simplesmente a marca de Caim dos
vaidosos, símbolo portanto do Mal.
Tudo começa muito tempo atrás, em um mundo onde os maçons
não haviam começado a construir suas catedrais e os rosacruzes ainda se
mantinham fora da Europa. Todo o mundo ocidental era um caos permanente só
descrito com fidelidade pelas obras, bem posteriores, de Jeroen van Aeken
ou Hieronymus Bosch.
Sem saneamento básico, sem saber o que era uma bactéria, sem
antibióticos ou vacinas, a humanidade jamais ultrapassava um milhão de pessoas.
Não havia medicina, apenas curandeiros.
A comida escassa, a ignorância atroz.
Em meio a este Caos, alguns se mantinham com certa dignidade: eram os sacerdotes, com estabilidade no emprego, comida farta e acesso a
cultura grega que deveriam preservar no interesse do conhecimento humano e da
manutenção do monopólio da sabedoria nas mãos da Santa Madre Igreja.
Os padres sabiam ler e eram formadores de opinião. O púlpito
e os sermões lhes dava a chance de transmitir valores, idéias, conceitos e
preconceitos. Gutemberg (Johannes Gensfleisch zur Laden zum Gutenberg ou
Johannes Gutenberg : Mogúncia, 1398 — 3 de fevereiro de 1468 ) ainda
não nascera e portanto os textos, se houvessem, eram desenhados a bico de pena
em salas de escrever, chamadas em Latim "scriptorium". Ilustrações
belíssimas eram colocadas ao lado dos textos, tão belos e tão coloridos que
iluminavam as páginas e eram por isso chamados "iluminuras".
Neste mundo de contraste, entre a opulência dos humildes
servos de Cristo, e a miséria escabrosa do resto da população, a forma de
manter o status quo era convencer a todos de que aquilo era normal, de que
haviam causas transcendentais para este desastre social e que a culpa de tudo o
que ocorria não era de Deus, mas da própria vítima de tudo, o ser humano comum,
através da intermediação de uma entidade fabricada para fazer o papel de vilão,
a quem chamou-se Satã. Este enredo de crime e culpa foi divulgado nos púlpitos
e pregações em todo o mundo europeu, de forma a que de tanto ser repetido,
transformou-se em uma verdade inquestionável.
É nesta época que os Cultos, maquiavelicamente, iniciam o
processo de glamorização da miséria e, além disso, de exaltação da ignorância
como um símbolo de santidade. Os que tinham pouco ou quase nada, os miseráveis,
chamados eufemicamente de "simples" foram convencidos de que estavam
mais perto de Deus exatamente por causa de sua miséria e que, a pobreza era um
sinal de sua humildade, lhes dando dignidade.
Os nobres poderiam ser bem alimentados e fortes, mas não
estavam espiritualmente tão bem e isto era um consolo suficiente e definitivo.
Como a miséria, a ignorância deveria ser cultivada para que
o homem não fosse tomado pelo pecado do orgulho, do qual os padres que liam,
liam e liam estavam livres graças às orações constantes e pela prática de uma
vida aparentemente recatada.
Este quadro perdurou até a reforma, quando Lutero
indignou-se com o óbvio e, ao perceber que seus apelos não seriam atendidos
resolveu fundar sua própria igreja, baseado em uma visão diferente da Igreja de
Roma. Martinho Lutero, em alemão Martin Luther, (Eisleben, 10 de novembro de 1483 — Eisleben, 18 de fevereiro de 1546) nasce 15 anos depois da morte de Guttemberg. A
tipografia avançava e a popularização dos livros se acelerava. Mais pessoas
liam sobre mais coisas, embora o texto mais consultado ainda fosse a Bíblia. Só
que a Bíblia, como o nome diz, não é um livro, mas um conjunto de livros, e
muitos assuntos ali se misturavam. Aspectos de Arquitetura e Matemática, nos
relatos sobre a construção de templos; de Estratégia Militar, bem como
Medicina, Política e Sociologia.
Novos livros foram sendo escritos sobre estes livros, outros
traduzidos da língua árabe e do grego.
A Igreja já não tinha o monopólio da cultura. Começava o
Renascimento.
O Mal, no entanto, estava feito. Um conhecimento passado
atrelado ao medo ou a uma emoção equivalente em força, se fixa de modo mais
firme do que Poesias alegres ou Comédias Gregas.
O Medo é como um peso amarrado nas pernas de uma informação
e assim ela afunda com ele nas águas escuras de nosso hipocampo. Como um
parasita este conhecimento se instala e mesmo a psicoterapia mais contundente
tem dificuldade de retirá-lo de lá, como um tumor tão enraizado que, se
retirado, mata o paciente. O aspecto mais diabólico desta situação é que este
trauma tenha sido consumado através de recomendações disfarçadas em uma
aparente Moral Elevada. Lacan, em uma palestra lembrava que "Freud já
dizia, que não o Mal, mas é o Bem que gera e que alimenta a Culpa".
Essas associações conceituais ( Bem=Culpa; Ignorância=Humildade; Miséria=Santidade) foram fundidas umas às outras e juntas escondidas na
circunvoluções cerebrais.
E assim o nosso Imaginário foi contaminado por estas
perversões filosóficas, por este condicionamento nefasto, de tal modo e com tal
intensidade, que todo homem de ciência, de conhecimento, inspira não só Medo,
mas, acima de tudo, desconfiança.
Quanto mais ignorante for o indivíduo, mais forte será sua
aversão às coisas da Lógica, ao bom senso, ou a qualquer sinal de disciplina
mental.
Cito como exemplo um dado assustador que só percebi a partir
de um comentário casual de um amigo, médico e pediatra. Lembrava ele que, no
mundo das histórias em quadrinhos, este preconceito perseverava, de modo que o
vilão tinha quase como um sinônimo a expressão "Gênio do Mal", ou por
outra, que sempre havia em algum lugar um "cientista louco", enquanto
o herói se destacava pelos seus músculos e força física.
Quanto mais músculos, mais bondade; quanto mais cérebro,
mais maldade.
Sim, eu lembro de heróis científicos, que não prosperavam,
mas se existia um cientista do Bem era sempre em antagonismo a outro, do Mal.
O Herói, o modelo a ser seguido, seguia o mesmo figurino,
quase sempre: vida simples, muitos músculos e tendência ao auto sacrifício. Os
vilões sempre em opulência e luxo, as vezes muito cultos e refinados.
Para muitos, portanto, de modo inconsciente, a bondade está
fortemente associada a pobreza da mente e à força do corpo.
Quanto mais estúpido e musculoso, quanto mais ingênuo e
inocente, mais nobre é o indivíduo.
A Sagacidade foi elevada a categoria de qualidade do Mal,
associada às artimanhas do Caído, hábil com as palavras como as pessoas cultas,
todas, portanto, demoníacas.
Quanta maldade é necessária para se matar um espírito, uma
mente? Não bastasse as barbaridades da contra reforma, a Inquisição, a Igreja,
fonte de toda a demonização da ciência e exaltação do medo e da culpa,
perseguiu, por séculos, até supor morta, a inteligência humana.
Bruno e Galileu foram vítimas mais famosas; decerto outras
sucumbiram ao seu empenho maléfico contra o conhecimento, anônimos, cujos nomes
jamais chegaram as páginas da história, ceifados física ou espiritualmente
antes que despontassem.
Um amigo me adverte que a mesma Igreja que perseguia e
matava também foi a responsável pela transmissão da mensagem do Cristo. Fato.
Só que existem sérias dúvidas sobre a fidelidade desta transmissão e das
interpretações feitas de suas palavras, em seu santo nome.
Religiões guerreiras ou ligadas ao Estado sempre me causaram
receio e desconfiança. Duas em particular tem este título: o Catolicismo Romano
e o Islamismo Maometano. Não se sabe que monges budistas tenham invadido,
espada na mão, uma província qualquer na Índia ou no Butão para chacinar
dissidentes. Ou que Xintoístas perseguissem os Confucionistas e os Taoistas. Não.
Somente estas duas grandes linhas guerreiras religiosas são a fonte de toda
tensão, de todo confronto entre os homens, há séculos. E muitas foram as
vítimas físicas e principalmente psicológicas de sua sanha de poder.
Contra isso, ao menos os membros de escolas esotéricas
deveriam se levantar, não fisicamente, mas mentalmente.
Deveriam antes de qualquer coisa varrer de suas mentes
qualquer pensamento depressivo ou de depreciação da vida, originado neste
discurso católico-judaico-cristão.
A vida biológica deveria receber a importância que merece no
meio destas escolas e a raridade da existência da raça humana neste mundo
frágil e improvável, exposto a radiação de uma estrela gigantesca e a fúria dos
vírus e dos elementos do clima, precisa ser reconhecida.
Já é hora de escolas esotéricas serem esotéricas não porque
interpretam textos obscuros e com um tom de autoflagelação em nome da santidade,
mas sim se transformando na Casa de Salomão, a Casa dos Sábios descrita por
Francis Bacon, Imperator Rosacruz, em seu livro Nova Atlântida.
Em seu projeto da Grande Restauração ( Instauratio
magna), Bacon, no texto da Nova Atlântida, antecipa a preocupação em construir
uma sociedade apoiada no conhecimento e na ciência. Não é estranho que esse
seja um autor e um rosacruz inglês, talvez a nação que mais precocemente confrontou
as intenções políticas por trás do discurso religioso de Roma.
Foi um pensador e sociólogo alemão entretanto, Max Weber, em
um livro perspicaz ( A ética protestante e o espírito do Capitalismo) o
responsável por demonstrar que quanto mais cedo as nações se afastaram de Roma
e de sua pregação nefasta, mais prosperaram. Os países do Norte da Europa, em
geral protestantes, são exemplos de sociedades saudáveis mental e financeiramente,
enquanto o1s países do sul da Europa expressam a sequela do Catolicismo Romano
e de sua influência.
Não vou falar de coisas já sabidas como as consequências nas
Américas desta cascata de dominós ideológicos e religiosos.
O que é importante neste ensaio é ressaltar que os
rosacruzes do Círculo de Tübingen que redigiram os Fama Fraternitatis ( O
Relatório da Irmandade) o Confessio Fraternitatis (A Confissão da
Fraternidade), bem como as Bodas Alquímicas de Cristian Rosencreutz eram
protestantes e portanto, militantes anti papais.
E sua militância era baseada na percepção clara de que os
métodos de Roma eram contrários aos métodos de Deus , como expressos na Natureza
a nossa volta, que é plena, abundante e rica, e que prospera em todos os
sentidos para a Sua Glória.
Os mares estão abarrotados de peixes e os céus repletos de
aves, o Universo não tem um tamanho conhecido e quanto mais o investigamos ,
maior ele nos parece.
Deus, portanto, jamais foi pobre ou miserável e sua obra, a
criação, merece a classificação de, no mínimo, exuberante.
A miséria física como um caminho para Deus é uma invenção
religiosa; da mesma maneira que o culto da estupidez intelectual como sinal de
simplicidade e santidade.
A luz do intelecto, pela qual tantos rosacruzes lutaram, e, entre
estes, o mais conhecido é Comenius, o educador checo que hoje é símbolo da
UNESCO, deve ser restaurada a sua condição de Luz, não verdadeira ou falsa, mas
Luz como outra qualquer.
A inteligência precisa ser estimulada, pela leitura, pela
arte e pela música, principalmente em uma época como a nossa aonde o
conhecimento é farto e se derrama ante nossos olhos, sem que o tenhamos
solicitado.
Categorias como Bem=Culpa; Ignorância=Humildade; Miséria=Santidade
devem ser banidas e substituídas por outras onde o amor ao conhecimento, típico
da história dos rosacruzes, ganhe a importância que merece.
Rosacruzes, só por serem rosacruzes, devem cultuar a cultura
e lutar contra a superstição e a ignorância. E superstição é todo conhecimento
infundado limitante, que paralisa o indivíduo, que o obriga a comportamentos
descabidos sem base na experiência real e cotidiana.
Só o conhecimento consegue discernir entre superstição e
crença mística, mas este já seria um bom critério: a crença mística traz
alegria e contentamento e a superstição medo e paralisia.
Lutemos todos, com todas as luzes, a da inteligência e a da
sabedoria, lembrando que ambas, Hockhmah e Binah, são a sustentação de Kether,
a Coroa da Árvore da Vida.
Sem elas, em conjunto, não haveria transmissão da Luz de
Deus aos planos inferiores, Atziluth não existiria.
Rosacruzes são e devem ser sempre esoteristas e místicos
diferenciados e o que os diferencia é sua capacidade de reflexão unida a sua
devocionalidade.
Uma sem a outra só os enfraquece.
Não somos religiosos; somos esoteristas e místicos.
Façamos valer nossa história de luta contra a barbárie e as
trevas com a Santa Luz do Intelecto, instrumento de transmissão da Inspiração
Divina.
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