Multi pertransibunt et augebitur scientia (Muitos passarão, e o conhecimento aumentará).

quarta-feira, 26 de agosto de 2020

O PAPEL DO LEITOR

 Por Mario Sales

 

“Por si só, um texto não é nada, como uma viagem não é nada em si mesma. É preciso uma alma que reúna os valores desta e as frases daquele, fazendo-os brilhar ao contato dessa luz misteriosa que se chama verdade ou que leva o nome de beleza.”

Padre Antonin-Dalmace Sertilanges, prefácio de “A Vida Intelectual”, editora Kírion, 2019







Toda criação artística ou intelectual tem pelo menos dois polos humanos: aquele que a produz e aquele que a consome como alimento do espírito.
O primeiro é estímulo; o segundo é reação, reação que se transforma em novo estímulo que contagia outros além dele.
Todo ato de criação é coletivo, não pertence ao pintor, ao escultor ou ao escritor, mas molda-se ao longo de eras, pela contribuição ativa dos que serão inspirados por suas cores, formas ou palavras, e que repercutindo suas emoções contemplativas espalharão a boa nova da beleza em milhares de almas, por centenas de anos.
Como uma corda que só emite som quando tangida pelo músico, para que ouçamos anos a fio o som de uma obra prima é preciso que não só o autor, mas outros que tenham sido encantados por sua beleza continuem a ferir a mesma corda ou cordas, no mesmo tom, para preservar a sua propagação, a sua existência.
Como a música não é possível apenas com um instrumento, sem um musico que o toque, um quadro ou um texto dependem não só de suas cores e conceitos, mas de quem se maravilhe e emocione com o que vê ou com o que lê.
Esse é o papel do contemplador, do leitor, que com suas experiencias no contato com a obra, e suas reações aos afetos que extrai desta vivência, multiplica-a muitas e muitas vezes e amplia o significado antes simples e único em interpretações complexas e múltiplas.
Como os quadros precisam de quem os contemple, os textos dependem daqueles que os lêem e com eles se encantam. O escritor, por mais isolado que pareça em seu ofício, busca o contato com todos os seres, denuncia sua ânsia de compartilhar apenas pelo simples gesto de escrever e descrever sentimentos, imagens, ideias.
Você que me lê, não me lê apenas, mas com minha permissão, entra no meu mundo intelectual e participa por algumas horas, das minhas visões de mundo e dos meus anseios os mais íntimos, mesmo que eu os expresse de forma velada e metafórica.
Existe em todo autor uma expectativa muda, intensa, acerca de cada encontro de seus textos com um novo par de olhos, um novo coração. Talvez entre todos, os poetas sejam os mais explicitamente engajados em provocar respostas afetivas aos seus jogos de letras e expressões; entretanto, independente do estilo, quem escreve sempre espera ser lido e mais que isso, compreendido, aceito, amado por quem o lê, dada sua imensa necessidade de carinho e atenção.
Cada texto é um convite para uma dança espiritual que, espera-se, seja aceito com alegria, para que mais alguém reconheça tanto a existência do dançarino como a beleza de dançar.
Escrever ou ler é como dançar, em um ritmo específico, onde um guia e o outro acompanha.
Nesta dança compartilhamos instantes, carinho e arte.
E a essência da arte é compartilhar beleza e inspiração.
Oxalá meus textos dancem com alegria por anos, independente de minha presença.

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