Multi pertransibunt et augebitur scientia (Muitos passarão, e o conhecimento aumentará).

segunda-feira, 24 de agosto de 2020

TRES CRENÇAS FUNDAMENTAIS

Por Mario Sales

 


No ensaio anterior eu discuti os aspectos operacionais do rosacrucianismo, os quais tornam o trabalho de AMORC mais próximo da ciência, por ser mais pragmático do que do esoterismo clássico, eminentemente intelectual e não prático.

Talvez quem tenha lido possa imaginar, já que estamos no século do equívoco, que isso significa que não creio em coisas não manifestas, coisas digamos assim demasiadamente sutis.

Em primeiro lugar isso nos leva, de novo, ao terreno das crenças, e como disse antes, embora não possamos viver sem crenças, mesmo que não demonstráveis, o que eu alegava é que estas não serviam para a construção de um conhecimento solido.

Como citei textos considerados sagrados, o fiz no interesse de mostrar que nós, em última análise, construímos nossa vida moral e às vezes intelectual, muitas das vezes em função de coisas que lemos ou ouvimos e nos tocam o coração, e não em fatos que presenciamos ou em vivencias nas quais a vida nos envolve.

Esta é uma das questões mais antigas da filosofia e em resumo, reflete a luta entre duas escolas de pensamento. 

Uma delas afirma que valores morais e certas compreensões estão em nós antes da experiência, a priori

A outra afirma que somos o resultado de nossas experiências, coisas que ocorrem conosco no convívio social e existencial, ou seja, uma estrutura mental e moral construída a posteriori.

Que ambas as influencias nos moldam, (valores íntimos, identificações quase imediatas com percepções de mundo, sem quaisquer necessidade de demonstração e, ao mesmo tempo, ocorrências externas a nós que nos atingem e determinam um forte impacto emocional em nossas posições pessoais), quanto a isso não existe dúvida.

A questão, cujo último sistema filosófico a trabalhar a questão foi o sartreano, não está em negar um destes dois aspectos, mas estabelecer qual prepondera sobre qual, quem é causa e quem é consequência.

Os defensores do aspecto da consciência falam que temos uma bagagem sim, que nos prepara para a vida fazendo que nos comportemos desta ou daquela forma diante das vicissitudes da existência. 

Os defensores do ponto de vista existencial, pensam que esses valores são resultantes dos eventos, e não seus intérpretes.

Místicos e esoteristas costumam alegar que esta discussão jamais terá solução enquanto trabalharmos com o pressuposto de que só se vive uma vez.

Sem o elemento reencarnacionista não chegaremos nunca a entender como podemos ter experiências inatas, que fazem alguns terem mais discernimento que outros, mais tolerância, mais, para usar uma palavra da moda, resiliência com os problemas do dia a dia, enquanto outros são tomados facilmente pela revolta, pelo ódio, e saem, como resposta ao sofrimento, imediatamente em busca de culpados, de outras pessoas que possam ser responsabilizadas pela dor que o atinge.

Homens esclarecidos intelectualmente sempre temem, de modo compreensível, que aceitar que a dor tem uma razão educativa e didática é render-se à um estado passivo, que resultará na inação, ou no estado pré iluminista de supor que a causa de todas as coisas não está em nós e em nossas escolhas, mas na graça divina, e que portanto, nada podemos fazer para evitar a ocorrência, permanência ou mesmo repetição dos problemas

É, entretanto, possível, aceitar as duas posições, ser capaz de compreender a inevitabilidade de certas ocorrências desagradáveis e saber que podemos fazer algo para melhorar nossa qualidade de vida.

Para isso, temos que trabalhar com conceitos não demonstráveis, com convicções íntimas, que se baseiam na evolução espiritual de cada um, e não em experiências testemunhadas ou vivenciadas, nesta vida.

E o principal desses pressupostos, destes conceitos não demonstráveis, é o reencarnacionismo. Sem saber, intimamente e não porque alguém nos disse, que tivemos e teremos outras vidas apara aprender e corrigir condutas, nada parecerá fazer sentido.

A dor, o fracasso, a morte, nos parecerão sempre injustas e tristes. Principalmente aquelas que sigam o padrão do Livro de Jó, que discute exatamente porque pessoas boas sofrem, e muito.

A religião às vezes não ajudará, principalmente aquelas que não consideram o reencarnacionismo como uma doutrina aceita.

A razão, cega para a realidade espiritual, dirá que essas ideias são absurdas e improváveis.

Aceito que são improváveis, porém continuam sendo reais, da mesma forma que muitas outras coisas são improváveis, ou de difícil demonstração, mas existem.

Estão nesta categoria fenômenos como a matéria e a energia escura, matematicamente prováveis, mas ainda não demonstráveis, ou subpartículas atômicas, cuja existência em aceleradores de partículas, são atestadas apenas por traços em filmes, cujo percurso é interpretado por especialistas em interpretar estas manchas no filme, cuja opinião é aceita pela comunidade científica.

Alguns físicos inclusive se queixam, entre eles nosso conhecido Marcelo Gleiser, que certas áreas, principalmente de astrofísica, trabalham com conceitos que não podem, pelo menos no momento, ser testados, e que, portanto, a priori, não são científicos.



Traços e rastros de partículas subatômicas pós colisão de átomos em aceleradores de partículas esperando ser interpretados pelos especialistas


No outro ensaio eu falava da noção junguiana de inconsciente coletivo, largamente aceita nos meios psicológicos ligados a esta escola, mas que obviamente, não foi e tão cedo poderá ser demonstrada, o que faz dela uma hipótese e apenas isso, mesmo que brilhantemente descrita e aparentemente pertinente.

Reencarnação, portanto, é uma condição si ne qua non para o mistico e o esoterista, independente de sua estirpe e tradição, trabalharem com a realidade. As outras duas condições são a crença na existência de Deus e do karma, a lei de ação e reação. Estes três são alguns pressupostos esotéricos e místicos que não podem ser demonstrados, e que portanto, não são científicos. Mesmo assim, repito, são fundamentais para a perspectiva mística do universo e podem sim conviver com uma atitude cética e prudente diante dos fenômenos considerados prováveis e evidentes.

É possível, pois, conciliar duas posturas diferentes, como crer e duvidar, sem que haja conflito interno.

Alguns cientistas que pensam dessa forma, quando questionados, respondem que crer em coisas improváveis e trabalhar baseado em provas não são atitudes necessariamente excludentes e que reservam dentro de si espaços para cada uma destas posições.

Quando crêem, crêem; quando duvidam, testam.

Talvez o que não tenha sido explicitado é que existe um grau de crença que não afeta a possibilidade de praticar o ceticismo científico, crenças que não interferem com o procedimento racional.

As três crenças que citei, a crença em Deus, na reencarnação e no karma, trazem conforto espiritual e psicológico e fortalecem nosso mundo interior.

O problema com as crenças não é o crer, em si, mas no que se crê, e acima de tudo, em deixar que a crença sobrepuje os fatos da existência. Aí mora o perigo, a semente do fanatismo e do obscurantismo.

Ao contrário de radicais da racionalidade, e eles existem, podemos sim trabalhar, enquanto pessoas racionais, com um certo grau de fé em valores não demonstráveis.

E aqueles que tem fé não devem arrogantemente supor que a ciência é sua inimiga e que o bom senso e o ceticismo devem ser banidos do trabalho de investigação da vida. Isto seria um retrocesso imperdoável e inútil, que só traria caos e sofrimento.

De parte a parte, existem excessos a serem contidos.

Devemos ser prudentes, orar e vigiar, principalmente vigiar a nós mesmos.

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