Multi pertransibunt et augebitur scientia (Muitos passarão, e o conhecimento aumentará).

sexta-feira, 21 de janeiro de 2011

O Papel da Filosofia como Instabilizadora de Certezas e Paradigmas e sua Importância na Luta contra o Dogmatismo no Misticismo

Por Mario Sales, FRC.:,S.:I.:,M.:M.:

Minha filha mais nova, Nathalia, é dada a reflexão. E falou-me entusiasmada, hoje, sobre as conseqüências da entrada da filosofia, o ano passado, no currículo de seu colégio.


Relatou-me a perplexidade dos colegas quando o professor encarregado da disciplina respondia várias perguntas com outras perguntas, na intenção de instabilizar as certezas dos alunos.


Expliquei então que instabilizar certezas com perguntas aparentemente simples, mas extremamente perturbadoras, como por exemplo, “Será mesmo?”, ou, “Será que apenas esta explicação é suficiente?”, etc., tinha a finalidade de dinamizar o pensamento dos jovens e fazer com que suas mentes aprendessem a pensar esfericamente. E pensar esfericamente era como contemplar uma bola, rodando-a, devagar, sobre a palma da mão, ao contrário de olhar um quadro, bidimensional, com altura e largura, e com uma profundidade virtual apenas proposta pelo artista com técnicas de perspectiva.



Uma esfera não só é tridimensional como precisa de vários ângulos para ser devidamente contemplada. Isto sem levar em conta que quando eu contemplo um de seus lados, se é que podemos usar este termo, não poderei ver ao mesmo tempo os outros. São limitações humanas da percepção.



Enquanto conversava com ela sobre isso, minha imaginação me levou a fazer considerações sobre o pensamento habitual dos místicos, e claro em especial os maçons, os martinistas e os rosacruzes, e sua relação com os ensinamentos do misticismo.


Já comentei e acho que não há problema nenhum em repetir, tradição não significa estagnação, mas fundamento, fundação, o nome de um dos pilares do templo do Rei Salomão.



A palavra Fundação nunca fez muito sentido para mim em português como tradução de Jaquim, pois tem um som mais arquitetônico do que filosófico e mítico. A palavra Tradição, no entanto, faz muito mais sentido como uma das colunas, no sentido de sustentação em bases imutáveis de um conhecimento que transcende as eras e sem ser conhecedor de hebraico arrisco-me pretensiosamente, admito, a dizer, que esta, embora não pareça ser a tradução correta, seria com certeza a conotação mais adequada pra o que Salomão tinha em mente ao colocar este nome em uma de suas colunas.


A outra, a Força, não demanda mais explicações.


Só que, como eu lembrava, Tradição é sustentação em bases estáveis de uma visão da realidade e de um conhecimento que, por si, é instável, e se modifica como um caleidoscópio ao longo das eras e da mudança de valores de cada cultura.


Usando uma categoria aristotélica para melhorar a idéia, a essência é imutável, mas a aparência é totalmente plástica e flexível, adaptável, enfim.


Em minha opinião, o trabalho de adaptação do conhecimento esotérico a cada era é a maior e mais importante responsabilidade dos preservadores desta Tradição, idéia que também, em si, não é original.


Basta ver o esforço de Spencer Lewis na tradução e contextualização contemporânea das monografias e pergaminhos que lhe foram transmitidos por Sir Hyeronimus. Não seria possível que a AMORC existisse, hoje, sem que esta transição de forma fosse realizada.



Sim, de forma, já que o conteúdo foi preservado.


E “será mesmo” que isto foi suficiente? Não, pois a história humana prosseguiu em seu curso.


A sociedade evoluiu e hoje, o mistério pelo mistério já não tem o apelo quase romântico que tinha antigamente.


A mentalidade de nossa época, arrisco-me a dizer, tornou-se mais pragmática. Quer algo mais profundo, sim, mas também operacional, de maneira verificável.


Reflexões éticas, hoje em dia, para pessoas equilibradas ou intelectualmente diferenciadas, devem ser feitas dentro de um contexto objetivo, sob o risco de simularem apenas um discurso moralista e presunçoso.


O grande charme do conhecimento rosacruz como AMORC o disseminou no século passado sempre foi este: existe um sentido e uma aplicabilidade dos conhecimentos ao cotidiano de forma objetiva, e esta é a base, a fundação, o sustento de seu sucesso.



A AMORC não discute valores individuais, mas valores ligados a nossa condição como seres humanos e membros de uma sociedade. A expressão desses valores, seja na religião (expressão particular da religiosidade), seja na cultura (expressão particular do amor ao conhecimento), são opções privadas e ligadas ao contexto social de onde provém as personalidades envolvidas. E claro, modificadas pela idade espiritual de cada um.


A busca por algo maior e mais duradouro, dentro de nós (religiosidade, espiritualidade), ou fora de nós (conhecimento intelectual, arte), é comum a todos os seres humanos.


E as duas coisas estão ligadas por uma única palavra: auto-aperfeiçoamento.


Descartes
Nem tudo que fazemos é em busca da felicidade, como dizia Frater Descartes, mas tudo, absolutamente tudo que realizamos, visa a melhoria de nossa condição humana. Estamos dispostos a muitos sacrifícios para aumentar nossa cultura e qualidade de vida, termo recente em nosso discurso, mas não acredito que trocaríamos todo o conhecimento acumulado sobre nós mesmos e sobre o universo por um estado de alegria ignorante e estúpida.


Tudo que fazemos, como lembrava Richard Bach em “Ilusões”, possui apenas duas motivações: diversão ou aprendizado.



Aprender sempre, se possível com alegria: este é o significado da vida.


E aí se encaixa o início de nosso raciocínio.


Uma das ferramentas que nos foram deixadas para levar a bom termo esta missão cósmica é a racionalidade, a arte e a ciência do pensar.


A outra é a sensibilidade. Só que dessa ferramenta, não falaremos agora.


Pensar já é um instrumento bastante complexo e que requer habilidade no manuseio para que o trabalho seja produtivo. E todo operário sabe que a mesma ferramenta em mãos diferentes tem rendimentos absolutamente diferentes, de modo diretamente proporcional a habilidade de quem a manuseia.


Por isso os místicos precisam aprender a pensar de modo flexível e não do modo aristotélico.

Aristóteles


Explico: lembro-me que em uma das vezes em que tive o privilégio de assistir uma aula de José Américo Mota Peçanha no Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IFCS-UFRJ), ele comentava sobre a dificuldade no ato de pensar.
Instituto de Filosofia e Ciências Sociais(IFCS-UFRJ) Rio de Janeiro

Retruquei que realmente ainda pensávamos como Hegel, atribuindo um caráter tri-polar as coisas, (TESE-ANTÍTESE-SÍNTESE). Ele me corrigiu: “Não é bem assim. Na verdade ainda pensamos como Aristóteles, em camadas fixas, uma superior, outra inferior, ascensão por degraus, em verdades perenes e outras não perenes, em interior e exterior, todas categorias estáticas. Em Hegel, concluía ele, já existia algum dinamismo.”

Geoge W.Hegel


Ele não se referia aos místicos, mas hoje este comentário que já tem 25 anos, cairia como uma luva. Eu cito alguns textos místicos, muito conhecidos, que são estudados e decorados por estudantes dedicados, sem que exerçam sobre ele nenhum questionamento crítico, nenhuma instabilização. Como por exemplo, a “Hierarquia Angélica” de Dionísio, o Pseudo Areopagita.



O esforço de Dionísio na época deve ser louvado, o que não nos exime de burilar seu texto e fazer certas colocações sobre ele que expandem seu alcance e melhoram a sua compreensão.


A se tomar como correta e fixa a existência de uma Hierarquia entre os Anjos de Deus, consideramos que sempre Serafins serão superiores as Potestades e estas aos Arcanjos. Que nunca veremos Querubins manifestarem-se na Criação, dado seu alto comprometimento com o Altíssimo, bem como os Tronos.


E não é dessa forma. Todos os que se dedicam ao estudo dos textos bíblicos, principalmente a Torah ou Pentateuco, sabem que a presença dos Anjos na História Judaica, quanto a sua importância hierárquica, (como proposta por Dionísio) obedece a um critério ou misterioso, ou inexistente.


 Arcanjos, inferiores aos Tronos, são personagens chave em batalhas em que os céus decidem seu Destino. Anjos, o mais baixo dos mensageiros de Deus na Hierarquia Dionisíaca, são pessoalmente enviados para destruir duas cidades inteiras, Sodoma e Gomorra. E se passamos ao Novo Testamento, na anunciação do Cristo a Virgem Maria, uma mensagem simples a qual poderia ser trazida por um Anjo, é um Arcanjo em pessoa o responsável por sua transmissão.


Concluindo, se pensarmos sobre estes aspectos, se olharmos com uma mente atenta todos os lados da questão, veremos que o modelo de Dionísio é como o nome diz, apenas um modelo, não conseguindo capturar a essência da organização divina, levantando-se ainda a questão de que, se isto fosse possível, compreender a estrutura administrativa dos céus, em nada ajudaria a melhoria de nossas almas.


Existem, portanto, informações que vêm da tradição que ocultam, com sua forma pomposa e complexa, idéias imperfeitas e às vezes inúteis, sem nenhuma consistência interna.


No entanto é comum encontrarmos pessoas sérias dedicadas a estudar estes ensinamentos.


Se aplicássemos um pensamento esférico, e contemplássemos todo tipo de conhecimento que nos trazem a consideração, quaisquer que sejam, de natureza profana ou iniciática, saberíamos de um relance perceber os que são fundamentais, os que têm consistência interna, e os que não a tem.


Talvez uma das frases que mais admiro em Saint Martin seja um de seus comentários mais prosaicos, mas que denunciava um rosacrucianismo latente naquele que foi um dos pilares da Tradição Martinista.

Louis Claude de Saint Martin


Ao ver os complexos esforços e palavras recitadas por Martinez de Pasqually para realizar suas invocações teúrgicas, durante dias, questionava ele aos seus acompanhantes: “Será que isto tudo é realmente necessário para ver Deus?”


Não por outra seu codinome foi o “Filósofo”, dito “desconhecido”.


Seu questionamento e sua dúvida deveriam estar presentes em todos os místicos, de forma a fazer a forma do Misticismo evoluir sempre, e não tornar-se um discurso empoeirado, impedindo a visão da “Arca Dourada da Sabedoria” por baixo dele. Fundamentos perenes são o espírito da Tradição. Formas imutáveis são a essência do Dogma, do Obscurantismo religioso, do qual todo místico deve fugir.


É preciso que tenhamos claro para que e por que estudamos Misticismo e usarmos nosso intelecto como instrumento de triagem e crítica de todos os matérias que nos caírem nas mãos, de forma a não perdermos tempos com informações desnecessárias e abrir espaço para o trabalho da nossa ferramenta mais importante, a Sensibilidade.


Mas este é um tema para outro ensaio.

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