Comenius: Gotas de óleo na água, Bernardo, é o que somos.
Bernardo: Em que sentido?
Comenius: Somos todos transparentes e algo semelhantes ao meio em que estamos mergulhados, mas nossa densidade é maior.
Bernardo: Sim, entendo.
Comenius: E talvez evolução seja apenas isto, um refinamento progressivo da densidade, uma diminuição da incompatibilidade entre nós e o meio em que estamos mergulhados.
Bernardo: Mas se eu acompanho sua analogia, a conseqüência final da evolução é a mistura entre gotas de óleo e a água, de forma que se tornará impossível separar uma e outra.
Comenius:Sim, é verdade.
Bernardo: Então a personalidade desaparecerá como individualidade. Eu aceito isso, todo místico pode aceitar isto, mas o que me incomoda é a construção de uma individualidade e de uma ilusão de separação para depois destruí-la. Não vejo no que isto pode ajudar a experiência na carne.
Comenius: Não me parece que construamos uma ilusão. O que me vem à cabeça é que não poderíamos dar conta deste mergulho nesta densidade sem esta sensação de individualidade.
Acredito que tudo não passa de um fenômeno meramente físico.
Na verdade, ao sair de uma densidade menor, e mergulhar nas águas de baixo, como afirma o Cabala, a emanação do Ain-sof passou por uma região de mudança que causou esta dispersão de gotas de uma substância, que era uma, em múltiplas partículas.
É como se derramássemos óleo no mar. Notamos a formação de ilhas de óleo aqui e ali na superfície, que se fossem reunidas, voltariam a se agregar.
Essa dispersão das partículas de óleo é , para mim , um fenômeno físico, e não moral ou espiritual, como querem crer os pensadores místicos, ou como deram a entender aos seus seguidores, porque talvez achassem assim mais fácil a aceitação.
Eles partiram provavelmente da premissa de que a verdade não seria compreendida e assim, começaram essa seqüência de mitos explicativos e simbolismos imagísticos, poéticos, até significativos, mas vagos e imprecisos, com o risco assumido de interpretações errôneas, o que ocorreu.
Quanto sangue não foi vertido por conta da dúvida entre se teria ou não existido um paraíso, se teria ou não Eva tentado Adão, se Deus deu ou não mandamentos pessoalmente a Moisés, se o povo judeu é ou não realmente eleito, se os sacerdotes cristãos são ou não verdadeiramente intermediários entre o todo poderoso e o resto da humanidade, etc,etc, etc.?
Bernardo: Você acha então que os mitos religiosos não ajudaram a compreensão da Verdade Mística?
Comenius: Eu acho que foram estratégias de época. Hoje, não nos cabe julgar aqueles que foram incumbidos, numa época de ignorância e superstição, de passar adiante um conhecimento de fundamentos morais e éticos altamente complexos. Eu mesmo estou aqui a dialogar com você falando em gotas de óleo, em dispersão no líquido, em densidades líquidas diferentes, etc. Estratégias didáticas, apenas isto. Nem me passa pela cabeça, por um segundo sequer, e sei que nem na sua cabeça passa, a idéia de que estamos falando de coisas reais.
Ambos sabemos que estamos nos valendo de exemplos comparativos para mostrar um ao outro o que queremos; mas em outras épocas não foi assim: mentes muito rígidas, compreensões muito primitivas.
Talvez se estivéssemos lá, contaríamos também histórias suficientemente ricas e simbólicas para atrair a atenção de mentes simples e , ao mesmo tempo, lhes passar valores e conhecimentos impossíveis de digerir em outro nível de linguagem.
Hoje, não podemos continuar assim , digo, você e eu, não podemos. Pessoas como nós, com um mínimo de discernimento, não podem. Essas estratégias perdem significados com o avanço do conhecimento.
Como não podemos mais crer serem reais histórias de princesas, príncipes e dragões, porque envelhecemos, da mesma maneira, ao atingir níveis mais elaborados de raciocínio, a mente se recusa a aceitar a troca do símbolo pelo real e começa a procurar níveis de compreensão menos simbólicos e mais próximos da linguagem científica.
Por isso, quando se fala qual teria sido a causa de nos tornarmos individualidades embora sejamos parte de uma entidade mais ampla, a resposta menos mítica seria : um simples fenômeno físico de adaptação a níveis de densidade maior. Não um erro ou problema moral, mas uma simples contingência física, energética, quase mecânica e com certeza, amoral do ponto de vista humano.
Expandir-se para este nível de manifestação tem sido para o Ser e para todos nós, que somos Ele mesmo manifesto, um esforço contínuo.
A luz avança progressivamente por frestas cada vez mais imprevisíveis da matéria, transformando-a, revelando-a, ampliando o conhecimento sobre ela.
E a substância revelada nos devolve conhecimento.
Bernardo: Esta substância, Comenius, onde a luz penetra, para você, é diferente de Deus?
Comenius: Se fosse diferente, nada mais faria sentido para mim. Não. A mim me parece que as coisas são parecidas com alguém que vai acordando e aos poucos vai se dando conta de seu próprio corpo e do meio que o cerca.
Deus desperta aos poucos para si mesmo. Este despertar leva bilhões de anos. A Luz é a AutoConsciência, Consciência de Deus sobre ele mesmo, Consciência nossa sobre nós mesmos, tudo junto, simultâneo.
Panteísmo é isto: identificação.
Ou somos manifestações de Deus, ou nada somos. Não somos individualidades, parecemos individualidades ao mergulharmos neste plano. Não somos criaturas de um Criador, somos extensões, emanações deste Ser, partes D´Ele, ou melhor, Ele mesmo. E enquanto Ele vai se apercebendo narcisisticamente de Si, simultaneamente nos damos conta de nós mesmos, porque tudo que percebemos, Ele percebe através de nós.
Uma corrente, Bernardo, é tão forte quanto o seu elo mais fraco.
Uma mancha de óleo é formada de várias pequenas gotas de óleo. Podem existir algumas gotas esparsas, mas aproxime uma gota de óleo da Grande Mancha, e ela a absorve, de imediato.
Identificação, meu amigo, a verdadeira identificação: fusão.
Frágil ou não, pequena ou não, esta gota é parte da Grande Mancha, temporariamente afastada dela, mas permanecendo com as propriedades físicas da Mancha Mãe.
Os elos de uma corrente também parecem processos fechados em si, são círculos ou elipses que se fecham em si mesmo, sem princípio ou fim, mas isto não muda o fato de que só têm algum sentido como partes de uma corrente longa e ininterrupta, da qual conseguem, em certos casos, divisar apenas o elo da direita e o elo da esquerda.
É preciso entender o ponto de vista do Elo, amigo Bernardo, bem como o ponto de vista da corrente.
Bernardo: Você tocou em um ponto importante: nosso grau de percepção da corrente. Ele é muito, muito imperfeito e incompleto. Um elo à frente e outro atrás de nós. E mais nada. Como ter a compreensão exata deste pertencimento a Grande Corrente de que você fala? Para o elo comum é difícil.
Comenius: Isto se a corrente fosse retificada, uma linha sempre em frente, sem curvas.
Só que , a meu ver não é assim.
A mim me parece que estamos sempre dentro de uma grande espiral que se espirala, como a molécula de ADN.
Com isto, em determinado momento, por contingência da curva que a corrente faz no espaço, contemplamos, não só nossos elos mais próximos, mas toda a seqüência, e para o alto e para baixo, num deslumbramento de percepção que nos ilustra nosso papel no todo.
Este tipo de disposição espacial é útil para compreender espacialmente aquilo que chamamos evolução espiritual.
Senão veja: o que acontece em uma espiral? Todas as partes se dobram sobre elas mesmas. Assim, embora em linha reta caminhemos um longo percurso, retornamos aparentemente para um local próximo de onde partimos ao completar um ciclo. Só que um nível acima daquele em que estávamos.
Não é assim na existência? Os extremos não são semelhantes? E mesmo assim, não são distantes? E às vezes não parece que perdemos tempo, e que pelo menos na aparência, não saímos do lugar?
Só que saímos. E muito.
Outra coisa sobre espirais é que ela faz com que pontos distintos em evolução convivam no mesmo plano. Porque não? Aquele que caminhou muito mais, ao curvar-se, encontra com outros que caminharam menos.
É por isso, Bernardo, que nós, almas simples, podemos às vezes conviver com semideuses, pessoas de um tal refinamento espiritual que chegamos a duvidar de sua realidade, pois são tantas as mazelas de estar vivo que dizemos: “- Não, isto não deve ser verdade, deve haver algum defeito que torne este ser mais próximo a mim mesmo.”
E o tempo passa , e cada vez mais percebemos que realmente estamos na presença de um ser especial, para vergonha de nosso espírito sem fé.
É, meu bom amigo Bernardo, a bênção , geralmente, caminha ao nosso lado. E nós, distraídos e incrédulos, nem nos damos conta.
A corrente, como um cordão, é uma seqüência de segmentos, cada um destes segmentos, um indivíduo aparentemente destacado. Só que todos os nós (e este termo, nós, em português também é dúbio, curioso) se entrelaçam e se relacionam. Ao se contorcer em espiral, contemplam-se, como se olhassem para o próprio ventre; como se olhassem seu próprio umbigo.
Bernardo: Concluímos, então, que nós somos nós de um cordão, ou gotas de óleo, que se espiralam e se contemplam, e são espargidas sobre esta terra, irrigando-a.
E há pouco você reclamando dos mitos de antigamente.
Comenius: Para você ver meu amigo, as armadilhas que a língua nos arranja. Sem simbolismos e representações, no entanto, estaríamos todos mudos.
O problema não está no símbolo, mas em como o utilizamos, ou seja, em confundir Real e Simbólico, como se fossem a mesma e única coisa. Este é o risco. Este é o problema.
Bernardo: Um problema que insiste em gotejar sobre nós, permanentemente, se me permite o trocadilho.
Comenius: ...............
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