Comenius: Outra coisa que me preocupa sobremaneira, amigo Bernardo, é a capacidade das emoções de, ao mesmo tempo em que nos dão alimento para equilibrar a frieza do intelecto, serem um risco permanente para nossa objetividade.
Bernardo: Compreendo. Eu mesmo não confio em minha subjetividade.
Comenius: É estranho ouvir você, um iniciado, falar uma coisa destas.
Bernardo: Talvez porque eu não tenha feito a distinção entre emoções e sensibilidade. Quando falo em subjetividade falo em meus muitos sentimentos e não da minha sensibilidade, como conversamos antes.
Comenius: Entendo. Devo entender então que são coisas antagônicas, no seu modo de ver?
Bernardo: Antagônicas não, diferentes e interligadas. Veja, emoções são como o fogo, mas a sensibilidade é como a fumaça que emerge da fogueira; uma coisa alimenta a outra.
Ao contrário do fogo da emoção, que pode nos queimar, a fumaça passa por nós, e mal a sentimos.
Enquanto o fogo da emoção emerge do chão e ascende, mas permanece no local onde queima, a fumaça da sensibilidade oscila e sobe pelo ar sem um limite de altitude e percorre enormes distâncias.
Comenius: Imagem interessante.
Bernardo: Agora Comenius, pense em um motor que trabalhe a vapor. Observe que é o fogo que produz o vapor, mas é o vapor que o movimenta.
O corpo sólido da madeira é transformado pelo fogo em vapor e este vapor, de densidade imensamente menor que a madeira, é que move o monstro mecânico mantendo o aforismo que o invisível move o visível. O que importa é a sensibilidade, o vapor, mas sem o fogo da emoção, como obtê-lo?
Comenius: Precisamos da emoção, portanto.
Bernardo: Com certeza precisamos. O problema é a dose e a disciplina dessas emoções para que possam nos ser úteis.
Como no caso do motor a vapor, o calor do fogo é absolutamente fundamental para a produção de vapor, desde que disciplinado pela estrutura da caldeira.
Comenius: E o que poderíamos dizer que seria esta caldeira metafórica?
Bernardo: Eu não tenho dúvida: a Educação. Apenas a Educação canaliza nossas emoções e nos dá uma função definida para a força que lhes é inerente.
Comenius: E a madeira que queima?
Bernardo: As vivências do mundo físico, nossas experiências cotidianas, transformadas por nossas emoções em combustível para nossa sensibilidade. A vida, Comenius, foi feita para queimar, lentamente.
Comenius: Interessante. Posso supor então que em seu modelo explica-se também a necessidade de não deixar as emoções predominarem pois seria como fogo em excesso e a pressão interna da caldeira aumentaria de modo perigoso.
Bernardo: Exato. Tudo é uma questão de dose. Mesmo o artista que precisa alimentar sua caldeira de forma ininterrupta, sabe que a produção excessiva de vapor não leva a um funcionamento necessariamente melhor do motor em questão, digamos, de um navio hipotético que vai trilhar as águas hipotéticas da existência.
Comenius: A pressão interna do sistema deve ser considerada, portanto?
Bernardo: Sem duvida. Toda caldeira tem seus limites estruturais que devem ser conhecidos e respeitados e só quem os estudou, os conhece e pode tirar deste motor o seu máximo rendimento. Veja, continuando nesta imagem, é preciso lubrificar o sistema, com a polidez, para diminuir o desgaste natural, como conseqüências do uso do material. Outra coisa que não pode faltar à boa manutenção é a verificação sistemática de todas as porcas e parafusos que vão aos poucos se soltando com a vibração do funcionamento da “máquina”.
Comenius: A saúde do corpo?
Bernardo: Exato. Por isso acho tolice falar em mundo espiritual pra cá e mundo material para lá. Tudo é parte de um grande mecanismo pré-arranjado para conseguir determinado desempenho. Quando o faquir martiriza seu corpo se assemelha a alguém que batesse com uma marreta na estrutura da máquina, destruindo-a, danificando-a. É no mínimo, falta de lucidez e, além disto, um desrespeito ao Arquiteto que planejou e executou esta maravilhosa engrenagem.
Comenius: Tem razão. Agredir o próprio corpo é uma ignomínia. Que eu saiba, muitos nobres yogues repudiam esta prática.
Bernardo: A ignorância é democrática e internacional. Ela está presente em toda a parte. Precisamos persegui-la sem quartel, em todos os países. Esta é a função do verdadeiro intelectual místico.
Comenius: Isto não nos desviaria da nossa busca inicial, do nosso verdadeiro objetivo místico, que é conseguir a Iluminação, O Cálice Sagrado, também chamado “The Hole Graal” ?
Bernardo: Impedir, não. Talvez nem retardar. Porque nosso primeiro compromisso é com o Serviço, à Humanidade e ao seu aperfeiçoamento espiritual , combatendo “...o despotismo, a ignorância, os preconceitos e os erros, levantando templos à virtude e cavando masmorras aos vícios...”, principalmente através da educação, estaremos servindo e bem. Não é possível que este também não seja um caminho para a Luz.
Comenius: Tem razão. Com o detalhe de liberar nossa generosidade e permitir nosso próprio aperfeiçoamento espiritual.
Bernardo: Exato. Quando servimos altruísticamente, servimos também a nós, pois sem dúvida estaremos melhores como pessoas, após o serviço. Os Yogues chamam este caminho de Karma Yoga , o caminho da conduta correta. Todo serviço ao outro, visando o bem de outro, faz de nós emissários de Deus, ou, como vimos, o próprio Deus em ação na retificação de sua obra, como ensina o Cabala .
Comenius: Educar, portanto, é uma missão divina.
Bernardo: Sim, concordo, mas desde que guardadas as devidas características da educação iniciática. Aquela que estimula a criatividade, não nega a existência de uma inteligência que nos rege, não importa o nome que se dê, que permite a expressão da emoção para que a mesma possa ser canalizada através da educação, promovendo a sensibilidade e o refinamento espiritual e ético. Estas são as características de uma formação educacional mística verdadeira, se bem que todos os educadores sonhem com isto. Seu antecessor homônimo, eminente membro de nossa Nobre Ordem sempre defendeu o aperfeiçoamento do ser humano pela educação e acredito, embora não tenha lido nada que o confirme, que ele não discordaria de minhas condições para que a educação seja completa e enriquecedora.
Comenius: Também creio que não discordaria.
Bernardo: O coração de um navio a vapor era sua caldeira, seu motor. O centro de um ser humano, aquilo que o alimenta e o sustenta nas horas difíceis, é sua educação. Sem que se melhore a educação de todos os homens, dificilmente teremos funcionários públicos para cuidar da saúde e da segurança da sociedade no futuro. A única vacina contra a maldade é a educação. Não aquela educação baseada no acúmulo de informações mas aquela que nos enriquece a sensibilidade e, principalmente, nos ensina a pensar.Veja meu amigo, não é a toa que matam os sábios. Seu poder assusta os tiranos e intranqüiliza os patifes. Suas palavras são carregadas de força e sua influência atinge milhões em todo o mundo. Por isso são temidos pelas forças das trevas. Tais educadores são os verdadeiros cavaleiros da Luz.
Comenius: Concordo.
Bernardo: Seu poder não vem de dons especiais e sobrenaturais, mas da sua capacidade de disseminar o conhecimento.
Comenius: Na sua obra prima, Didática Magna, ele justifica seu interesse em escrevê-la de modo belíssimo. Você conhece o texto?
Bernardo: Agora ele me escapa.
Comenius: Pois eu me lembro, de tanto lê-lo. Diz ele:
“-Peço também e suplico, em nome de Deus, que nenhum douto despreze estas coisas, pelo fato de virem de um homem menos instruído que ele. Na verdade, às vezes, «mesmo um camponês diz coisas muito oportunas, e talvez o que tu não sabes o saiba um burrinho», como disse Crísipo . E Cristo disse também: «O espírito sopra onde quer; e tu ouves a sua voz, mas não sabes de onde ele vem, nem para onde vai». Juro diante de Deus que não fui movido a fazer estas coisas, nem pela confiança na minha inteligência, nem pela sede da fama, nem pela esperança de daí tirar algum proveito pessoal; mas o amor de Deus e o desejo de tornar melhores as coisas dos homens, públicas e particulares, estimula-me de tal maneira que não posso deixar envolto no silêncio aquilo que um oculto instinto me sugere constantemente. Se alguém, portanto, podendo fazer andar para a frente os nossos desejos, os nossos votos, as nossas advertências e os nossos esforços, em vez disso, lhes faz resistência e os combate, saiba que declarará guerra, não a nós, mas a Deus, à sua consciência e à natureza humana que quer que os bens públicos sejam comuns, de direito e de fato.”
Bernardo: Eu diria que estas palavras se aplicam a todo esforço nobre de fornecer subsídios educacionais a quaisquer pessoas. Este senso de comunismo cultural, não econômico, mas intelectual, escapou aos mais sábios e famosos pensadores de nosso planeta quando quiseram traçar um perfil do homem baseado em sua riqueza ou pobreza material. A verdadeira miséria é a ignorância e a verdadeira riqueza é o Conhecimento.
Comenius: Sim. Aqueles que pensaram em distribuir riquezas por igual deviam ter pensado em distribuir junto o conhecimento, e não só o pão. Mas para isto não houve coragem, pois nenhuma tirania seria possível numa terra de sábios, e o poder político, naturalmente, seria verdadeiramente democrático, já que a cultura daria, a todos, condições de desfrutar igualmente de uma sociedade tornada mais justa pela educação.
Bernardo: Sem dúvida. Aliás, a construção da democracia passa pela preparação de seus cidadãos para participar desta experiência, pois não existe democracia sem democratas e não é possível existirem democratas sem educação que os sustente.
Comenius: Concordo. Não pode haver justiça ou equidade sem que todos possam conhecer e conheçam seus direitos. E este conhecimento também advém da educação.
Bernardo: Portanto, em nossa imagem, podemos ver que em todos os lugares existe o fogo , e cada fogueira produz sua quantidade específica de vapor, mas caldeiras que o canalizem e transformem em força que movimente a nossa vida não são poucas. Isto sim é o verdadeiro desperdício da energia sagrada.
Comenius: Navios sem motor não precisam ser acorrentados ao porto. Estão imobilizados pela sua própria deficiência estrutural. Nada os acorrenta. Falta-lhes, no entanto, a força necessária para o deslocamento.
Bernardo: É verdade. Não tinha me apercebido antes, mas existem, concluímos então, correntes, amarras virtuais que nos impedem de navegar. São assim as correntes da ignorância, prisão invisível que tira nossa verdadeira liberdade , aquela do espírito e da mente, impedindo-nos ir aos limites de nossa imaginação.
Comenius: Mais difíceis de quebrar são as correntes que não vemos.
Bernardo: Sim meu amigo, bem mais difíceis.
Comenius: Mas já que falamos de meu homônimo, seria interessante lembrar do seu, Bernardo de Claraval , fundador da Ordem dos Cistercienses que seguiam as regras de São Bento além de ter conseguido o reconhecimento da Ordem dos Templários , cujos estatutos, ele mesmo redige .
Bernardo: Com que objetivo lembramos de São Bernardo agora?
Comenius: Não é dele um texto sobre O Conhecimento e a Ignorância? Algo sobre os diferentes saberes?
Bernardo: Não conheço tal discurso.
Comenius: Por acaso tenho um trecho aqui comigo, talvez o que mais importe. Ouça suas palavras na parte II do sermão:
“...SERMÃO SOBRE O CONHECIMENTO E A IGNORÂNCIA (Sermão 36 sobre o Cântico dos Cânticos)
de Bernardo de Claraval (trad. Jean Lauand)
O CONHECIMENTO DAS LETRAS É BOM PARA A INSTRUÇÃO, MAS O CONHECIMENTO DA PRÓPRIA FRAQUEZA É MAIS ÚTIL PARA A SALVAÇÃO ( [31] ).
Ia PARTE
Aqui estou para cumprir o que vos prometi; aqui estou para satisfazer vosso desejo; aqui estou, também, obrigado pela dívida que tenho para com Deus, a Quem sirvo.
Como vedes, três são as razões que me impelem a pregar: o compromisso assumido, o amor fraterno e o temor a Deus.
Se me abstivesse de falar, pela minha boca condenar-me-ia. Mas o que acontece se eu falar? Também neste caso, corro o mesmo risco, o de ser condenado pela minha própria boca: por pregar e não praticar o que prego. Ajudai-me, pois, com vossas orações, para que eu possa sempre falar o que é necessário e, com minha conduta, praticar o que prego.
Tinha vos anunciado o tema do sermão de hoje: a ignorância, ou melhor, as ignorâncias, porque, como lembrais, há duas ignorâncias: a de nós próprios e a de Deus. E vos aconselhava a evitar uma e outra, pois ambas são perdição. Hoje, procuraremos esclarecer melhor esse assunto. Antes, porém, discutiremos se toda ignorância é condenável. Parece-me que não, pois nem toda ignorância produz perdição: há muitas e mesmo inúmeras coisas que se podem ignorar sem problema algum para a salvação. Se alguém, por exemplo, desconhece artes mecânicas, como a carpintaria, a arte de edificação e outras que são exercidas para a utilidade da vida neste mundo, acaso tal ignorância constitui obstáculo para a salvação? Também são muitos os que se salvaram e agradaram a Deus pela sua conduta e com seus atos sem as artes liberais (e, certamente, são úteis e moralmente bons esses estudos). Quantos não enumera a Epístola aos Hebreus (cap. XI), que se tornaram agradáveis a Deus não com erudição, "mas com consciência pura e fé sincera" (I Tim 1,5) ( [32] ). E agradaram a Deus com os méritos de sua vida e não com os de seu saber. Cristo não foi buscar Pedro, André, os filhos de Zebedeu e todos os outros discípulos, entre filósofos; nem em escola de retórica e, no entanto, valeu-se deles para realizar a salvação na terra.
Não é porque fossem mais sábios do que todos os homens - como diz de si mesmo o Eclesiastes (1, 16) -, mas, por causa de sua fé e de sua benignidade, o Senhor os salvou e fez deles santos e mestres. Pois os Apóstolos mostraram ao mundo o caminho da vida, não com sublimidade de discurso, nem com palavras eloqüentes de sabedoria humana, mas pelo modo como aprouve a Deus: pela estultícia de sua pregação, aprouve a Deus salvar os que crêem, porquanto o mundo com sua sabedoria não O conheceu (I Cor 2, 1; 1, 17-21).
IIa PARTE
Posso estar dando a impressão de querer lançar em descrédito o saber, de repreender os doutos, de proibir o estudo das letras. Longe de mim, tal atitude! Conheço muito bem o inestimável serviço que os homens doutos têm prestado à Igreja: seja refutando os adversários dela, seja na instrução dos simples. Com efeito, o que li na Sagrada Escritura foi: "Como rejeitaste o saber, também Eu te rejeitarei, para que não exerças Meu sacerdócio" (Os 4, 6). E mais: "Os doutos resplandecerão com o brilho do firmamento, e os que tiverem ensinado a muitos a justiça, brilharão como estrelas em perpétuo resplendor" (Dn 12, 3). Mas, por outro lado, li também: "O saber incha" (I Cor 8, 1) ( [33] ). E, finalmente: "No acúmulo de saber, acumula-se a dor" (Ecl 1, 18). Vede que há saberes e saberes: há um saber que produz o inchaço e há um saber que contrista. Quero que sejais capazes de distinguir qual deles é útil e necessário para a salvação: o que incha ou o que dói? E não duvido que prefiras o que aflige ao que incha, porque, se a saúde pela inchação é aparentada, pela aflição é procurada ( [34] ). Ora, quem procura, acaba encontrando, pois "quem pede, recebe" (Lc 11,10). E é certo que Aquele que cura os que têm o coração contrito abomina o inchaço dos orgulhosos, pois a Sabedoria diz: "Deus resiste aos soberbos e dá Sua graça aos humildes" (Tg 4,6) ( [35] ). E o Apóstolo diz: "Exorto-vos, em virtude do ministério que pela graça me foi dado, a não pretender saber mais do que convém, mas saber com sobriedade" (Rom 12,3). O Apóstolo não proíbe saber, mas sim saber mais do que convém. E o que é saber com sobriedade? É cuidar de aplicar-se prioritariamente ao que mais interessa saber, pois o tempo é breve ( [36] ). Ora, ainda que todo saber, desde que submetido à verdade, seja bom, tu, que buscas com temor e tremor ( [37] ) a salvação e a buscas apressadamente, dada a brevidade do tempo, deves aplicar-te a saber, antes e acima de tudo, o que conduz mais diretamente à salvação.Acaso não dizem os médicos do corpo que parte da medicina é precisamente determinar a ordem dos alimentos: qual deve ser ingerido antes, qual depois e o modo de os ingerir? Ora, mesmo sendo bons os alimentos que Deus criou, tu os tornas nocivos se não observas o modo e a ordem ao ingeri-los. Aplica, pois, aos saberes, o que dissemos dos alimentos.”
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