Por Mario Sales, FRC.: ;S.:I.: ;M.:M.:
Férias.
Posso finalmente me dedicar a auto-escuta, eu que por profissão tenho que ouvir o outro.
Se bem que na escuta do outro é preciso também ouvir-se para poder compreendê-lo, enquanto outro aparente, já que este ser a minha frente não é mais do que a projeção de meus preconceitos acerca do que é ser um ser humano.
Todos nós temos, como formulou Emanuel Kant, categorias de julgamento a priori dos acontecimentos, que nos ajudam a compreendê-los, mas que, da mesma maneira, se interpõem entre o que vemos e como vemos.
Existem lentes, as lentes mentais da nossa possibilidade de compreensão pessoal, que intermedeiam este contato com a coisa a nossa frente, sejam uma pedra ou um ser vivo, e obscurecem nossa percepção.
Então, quando estamos a sós conosco, este tumulto de interação mental, normal no convívio social, cessa, e aí começamos um aparentemente solitário diálogo com nosso interior, aparente porque várias de nossas concepções, senão todas elas nos acompanham nesta conversa. E alguns dos nossos preconceitos acerca de pessoas e coisas apenas não estão presentes, às vezes, por não terem sido ativados pela contemplação de objetos externos a nós.
Quando vemos coisas as quais desencadeiam respostas psicológicas pré programadas em nós, estes preconceitos são ativados e antes que possamos nos controlar eles assumem parte de nossas reações, senão todas elas, e é preciso grande esforço intelectual para tomar de volta as rédeas do encontro.
Nem sempre conseguimos.
Às vezes, apenas se mantém o conflito enquanto dura o encontro. Aqui, no entanto, sem interlocutor, sozinho comigo mesmo, meus desejos e idéias de mundo apenas me dificultam o avançar do raciocínio, sem impedi-lo, canalizando-o da forma como está sendo redigido neste texto.
O paradoxal é que aquilo mesmo que garante racionalidade e encadeamento ao meu pensamento é uma camisa de força para minha imaginação, como o bico de modelar da confeiteira permite escrever com massa de açúcar um nome em cima do bolo, espremendo o creme pelo bico de metal.
Jatos de criatividade mental precisam de direção e ordem de liberação para poderem expressar alguma idéia, alguma imagem.
Só que a expressão só é possível pelo aprisionamento destas mesmas propostas de idéias no imaginário específico que as projeta no papel, ou na tela de pintura ou na escultura.
Para existir arte, o pensamento deve valer-se deste aprisionamento cultural que, como um corredor, conduz apenas em uma direção, aquela da compreensibilidade geral. Por isso a arte de outra cultura que não a nossa nos causa perplexidade.
Mesmo quando nossos artistas querem ser inovadores e revolucionários eles não conseguem ultrapassar o possível e imaginável de sua própria imersão na cultura que ele deseja chocar com sua manifestação.
Fala-se em estranhamento em arte, mas o que nossos próprios artistas, americanos, hindus, ingleses, terráqueos em geral, podem fazer é causar alguma perplexidade.
Estranhamento verdadeiro seria a não compreensão, a não capacidade de intelecção do objeto a nossa frente, de forma que não encontraríamos nenhum sinal de identidade cultural com aquela forma e, aí sim, estaríamos em conflito perceptivo verdadeiro.
Vemos com o cérebro, não com os olhos. Precisamos entender, mesmo que inconscientemente, aquilo que vemos, para desfrutar desta contemplação. O que o cérebro não entende os olhos não percebem, e a psicologia indaga mesmo à qual grau de profundidade podemos levar esta afirmação, e se existem coisas a nossa volta que não percebemos não por que não possamos ver mas porque não entendemos como manifestação.
O absurdo nos cega e incosncientiza, como se desmaiássemos por alguns segundos ao passar por imagens estapafúrdias e, pouco depois, mais a frente, recobrássemos a consciência.
Pesquisar meu imaginário não é em si uma aventura pelo desconhecido, mas pelo conhecido há muito tempo oculto e quase esquecido. Uma visita a quartos a muito não visitados da mesma mansão: nossa mente. Não é um passeio por uma nova casa. É a mesma casa, com seus porões antigos onde brincamos na infância e dos quais não nos lembrávamos mais.
Nosso imaginário é nossa casa. Precisamos vez por outra passear por ele, nem que seja para relembrar espaços e vivências supostamente esquecidas, mas ainda vivas nos sentimentos.
Quem sabe limpar alguma sujeira aqui e ali.
Consertar velhos preconceitos que rangem nas portas e que deixam toda a mansão com ares de mal assombrada.
Não devemos nos assustar em nossa própria casa, mas isto, às vezes pode acontecer.
Avancemos sem receio. São só portas velhas e dobradiças velhas que após uma boa dose de óleo, ficarão em silêncio.
Varramos um ou dois quartos de nossa mente, e de preferência recolhamos o lixo e levemos para fora da casa.
Queimemos em frente a nossa casa este lixo recolhido e contemplemos enquanto a fumaça se dissipa no céu, como num ritual, processando a transmutação do passado em cinzas.
Pode ser um excelente exercício para dias de férias como estes. Quem sabe?
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