Bernardo: Nem todos os encontros são felizes.
Comenius: É fato. Creio que existem encontros felizes e infelizes, mas os infelizes podem ser produtivos ou improdutivos.
Bernardo: De que maneira?
Comenius: Noto que certos encontros desagradáveis são apenas isto, desprazer e desconforto, e podem e devem ser evitados já que não nos trazem nenhum ganho intelectual ou afetivo. Por outro lado, existem encontros infelizes produtivos; difíceis, mas desafiadores e estimulantes, como um adversário que nos combate sem tréguas só que , com tal habilidade que, embora sendo contrário a nós, granjeia nosso respeito, embora não nosso carinho.
Bernardo: E como separar um do outro?
Comenius: O melhor critério na minha opinião é o prazer que este encontro nos causa. Sim, é possível , ao mesmo tempo, contradição e prazer. Este é o caso da simpatia racional em oposição a uma antipatia emocional.
Ao contrário, no caso dos encontros infelizes e inúteis, temos antipatia tanto intelectual quanto emocional pelo indivíduo em questão.
Bernardo: E isto é insuperável?
Comenius: Insuperável. Serve no máximo como guia. Afasta-nos de certas companhias e nos determina que busquemos outras. Somos prisioneiros de nossas afinidades e antagonismos instintivos e vibracionais.
Bernardo: Prisioneiros?
Comenius: Sim, prisioneiros. Certas vezes, e você vai reconhecer o que digo, estou certo disto, encontramos pessoas que, embora nos tratem extremamente bem e nada façam que poder-se-ia chamar de agressão, inspiram-nos extrema repulsa e antipatia, a ponto de não podermos ouvir suas vozes sem sentir irritação. Forças dentro de nós, mais fortes que nossa vontade, afastam-nos destes indivíduos de forma intransigente.
Bernardo: E esta repulsa é cármica ou biológica?
Comenius: Acredito que ambas as coisas. Primeiramente cármica e depois, por causa deste carma, condições biológicas se adaptam as necessidades evolucionais e estabelecem as bases da repulsa na realidade biológica, para que o drama cármico se desenrole. A matéria que constitui este Maya em que vivemos é, por natureza, muito plástica e se adapta com facilidade aos desígnios da evolução. Então, se procurarmos, provavelmente acharemos condições objetivas biológicas ou biofísicas, justificando a ojeriza entre as pessoas em questão: o odor, o tom de voz, etc. Acho, no entanto, como místico, que tudo isto é secundário. Existe uma condição cármica e o resto apenas a acompanha.
Bernardo: Entendo. Restam então os encontros felizes, aqueles que em princípio só nos trazem prazer e deleite.
Comenius: É verdade. São a glória de Deus estes encontros como se víssemos face a face o Altíssimo. Acho mesmo que são a própria face do Altíssimo, em alegria , tolerância e reflexões positivas, eivadas de amor e carinho.
Quando esses indivíduos, que protagonizam estes encontros felizes, e que costumamos chamar de amigos, se aproximam de nós, nunca mais se retiram, e deixam em nós um sinal de reconhecimento, como se marcássemos com ferro em brasa nosso espírito. Isto garante o vínculo, indelével, indestrutível, que não pode ser afetado pela distância física ou por qualquer tipo de obstáculo.
Acompanhamos estes amigos todo o tempo em pensamento e se passarmos anos sem com eles encontrarmos, no minuto em que os encontramos é como se tivéssemos parado de conversar um dia antes e a conversa flui, com uma seqüência e coerência, surpreendente para os padrões mundanos, mas não para os padrões místicos. Por que os vínculos telepáticos são assim.
Bernardo: Na sua opinião, então, todo encontro feliz é também telepático?
Comenius: Ah, sim, mesmo que seja inconsciente. Pessoas que se encontram porque têm de se encontrar não dependem de arranjos biológicos, apenas de circunstâncias, que podem e são manipuladas pelo carma de cada um. De forma automática, é verdade, mas com uma intenção clara de manter tais pessoas na mesma rota onde estes encontros felizes são possíveis, em sucessivas encarnações. Veja que os encontros que chamamos de infelizes e improdutivos, são úteis ao nos levar aos braços de nossos encontros felizes.
Todas as forças que se encontram geram forças resultantes deste encontro, que nos dirigem para um sentido e direção diferente daquele que antes nos dirigíamos. São como ventos inesperados que nos arrastam em direção a ilha onde um maravilhoso tesouro está enterrado e pela qual passaríamos, sem percebê-la, não fosse aquele incidente não acidental. Digo isto porque vejo nestes episódios a mão de Deus levando nosso barco a bom porto, pois são fenômenos do acaso, e Deus é o Acaso.
Bernardo: Interessante. Deus é realmente o inesperado. Pela magnitude das conseqüências destes acasos no entanto, se considerarmos o que os físicos chamam de “efeito borboleta”, só uma mente muito complexa, resultado da união de muitas mentes em sincronismo, poderia traçar estratégias tão sutis que desencadeassem efeitos tão notáveis e benéficos para nossas vidas. Considerando que essas pequenas e casuais mudanças de rumo possam desviar nosso barco tão significativamente em direção, não a um, mas a muitos encontros felizes, este fenômeno, por sua dimensão, realmente me assusta e encanta ao mesmo tempo.
Comenius: Isto porque sua mente é elaborada e complexa em formação e porque além de culto você é um homem de grande sensibilidade. O tolo jamais conheceria este terror e este encanto de que você fala, nem conseguiria ver as inúmeras implicações de certas circunstâncias banais e cotidianas. Ele é cego, do ponto de vista místico. Ele é um analfabeto simbólico e não consegue ver a sua volta os inúmeros sinais da presença de Deus. E como não vê, não crê. E não crendo, num círculo vicioso, menos ainda as verá.
Sua visão da vida é limitada às coisas mais superficiais. Talvez essa seja a maior punição possível: aquela na qual nem tomamos conhecimento do que perdemos e que nos priva de tanta beleza.
Não, Bernardo, com certeza, a ignorância não é uma bênção.
Bernardo: É fato. Por isso concordo com a idéia de que não a Vontade, mas a Curiosidade nos movimenta em direção ao Altíssimo, de volta para o ponto de origem para o qual inevitavelmente retornamos.
Comenius: Muito bem colocado, caro amigo, muito bem colocado. Todos os filósofos desde Shopenhauer , são unânimes em estabelecer a presença de uma força cega que nos empurra. Eu, entretanto, penso, como você, que exista uma força sim que nos arrasta para a evolução e que esta força se manifesta na Curiosidade, na vontade de conhecer, que de cega não tem nada.
Bernardo: É fato.
Comenius: Esta concepção é compatível com a concepção indiana de que toda a Criação sai de Deus e retorna a Deus, após o período de aperfeiçoamento de cada universo, de cada criação, sendo cada período de eternidade apenas um instante dos processos de aprimoramento da obra do Ser. É por isto que existem encontros que , embora difíceis , nos fascinam pela possibilidade de enriquecimento humano e emocional. Nestes encontros, pelo conhecimento, crescemos. Nos encontros felizes por sua vez, fortalecemos-nos e aumentamos nossa capacidade de conhecer pela multiplicação de nossa percepção através dos olhos do amigo. Já encontros infelizes e improdutivos nos ajudam a direcionar nosso rumo, já que por ali não iremos, e por isso, outro será nosso trajeto, nossa estrada. Somos empurrados, sim, mas em direção ao conhecimento e a felicidade, mesmo que lutemos contra isso.
Bernardo: Como as pedras em um riacho direcionam o fluxo da água que passa por elas ou o campo gravitacional dos corpos estelares e planetários desvia a luz que passa na sua órbita.
Comenius: Sim, da mesma maneira.
Bernardo: O que você sugere, se aceito como fato real, exemplificaria o que chamamos de Providência Divina. A mão de Deus todo o tempo, em nosso braço, afastando-nos de certas coisas e dirigindo-nos em direção a outras. Julgamos-nos independentes, mas ao aceitar esta concepção que você elabora , seríamos apenas seres guiados e não mais independentes.
Comenius: Sim.
Bernardo: O livre arbítrio, então ,seria uma falácia, uma mentira filosófica.
Comenius: Sim, de fato.
Bernardo: Meu Deus, Comenius, você então supõe que nada temos a ver com nosso destino e que somos presas de desígnios traçados do alto, para todos nós? Estaríamos aceitando voltar à época grega , ao destino trágico.
Comenius: Não. Não estaríamos. Na verdade, o que os gregos acreditavam é que estávamos , todos na mão de deuses, que ao sabor de seus caprichos, nos arrastavam para lá e para cá.
O que proponho é mais elaborado. Nós e Deus somos um e portanto esta caminhada é compartilhada em esforço e responsabilidade. Nós somos o próprio Deus manifesto e estamos agindo no Universo que nós criamos, juntamente com Deus, Todo Poderoso, que somos nós mesmos, um universo e uma criação pelos quais somos responsáveis.
Não existe este descolamento, nós aqui e Deus lá longe, produzindo uma obra independente de nós, a partir de uma Sagrada Vontade que não controlamos.
Estamos todos, envolvidos no projeto e na execução do projeto e é isto que faz da criação algo tão complexo.
Nenhum de nós, aqui ou em outros mundos, pode dizer que é a manifestação total da divindade, isoladamente, da mesma maneira que um único pássaro não resume em si toda a Natureza. Só no conjunto somos Deus inteiro. Todos , entretanto, somos partes de Deus, do mesmo modo que a célula encerra todas as características genéticas do corpo a que pertence. Lembre-se das palavras do texto sagrado:
“... o fez à sua imagem e semelhança”.
Quando geramos descendência, quando nascem nossos filhos, procedemos como na mitose das células, dividindo-se, multiplicando-se.
Lembremos do texto: “...crescei e multiplicai-vos...”
Somos um tecido vivo que se expande. E o que estou dizendo não tem nada de original, porque outros já intuíram esta semelhança. Apenas a confirmo e concordo com ela.
Ora, um tecido doente pode afetar e afeta todo o organismo ao qual ele pertence. Portanto este organismo tem mecanismos automáticos de regulação como temos nosso sistema imunológico.
No caso dos seres espirituais que compõem o tecido de Deus, este mecanismo chama-se Karma, a lei de ação e reação. À medida , entretanto , que o tecido se aperfeiçoa e se torna saudável, ele entra em estado de harmonia com o sistema e não tem mais necessidade de ser corrigido. É por isto que se diz que certos seres estão acima e além do Bem e do Mal. Sua consciência de cumplicidade com o organismo a que pertencem é tão grande, que o conflito desaparece e eles se tornam agentes perfeitos da mente deste corpo maior.
Sabem o que fazer e o que não fazer, independente dos valores de cada época e da moral humana. E é apenas isto que o alcançar desta Consciência de que falo representa: contato e cumplicidade com a Vontade Verdadeira do Grande Organismo. Por aí você vê que não se trata de estarmos, como na época dos gregos trágicos, sendo vítimas de caprichos de seres superiores a nós ou , ao contrário, de termos nossas vidas unicamente em nossas próprias mãos, (livre-arbítrio) sem que isto tenha repercussões. Na verdade, a realidade é mais complexa. Estamos todos em um mesmo projeto e participaremos melhor se conhecermos o desenho que está na mente do Grande Arquiteto que o elabora. E quando o conhecermos, estaremos comprometidos com o projeto, pois saberemos que ele é um bom projeto e que nossa satisfação depende de que ele seja levado a bom termo.
Consciência, como eu entendo, é a capacidade cada vez melhor e maior de contemplar com nitidez este desenho, este projeto.
Inconsciência é não saber da existência de projeto nenhum, e supor um mundo sem sistema e sem ordem , entregue ao sabor de forças caóticas. O Ser Consciente sabe que como é em cima, é embaixo, mas que também como é embaixo é em cima, numa via de duas mãos..Não só executamos o projeto, mas redesenhamos este projeto ao longo de sua execução, aperfeiçoando-o. É possível que alguns de nós alcancem, por esforço e merecimento, um alto grau de consciência e possam ver, por isso, grandes partes do desenho podendo até deduzir o resto, mas só a Mente Cósmica do Grande Arquiteto do Universo conhece o desenho inteiro, como realmente foi elaborado. Os encontros são os elos desta Corrente De Criação, como os nós de um cordão são elementos constituintes do mesmo e responsáveis pela sua integridade e extensão.
Bernardo: Sim, posso aceitar isto. Cumplicidade. E divisão de responsabilidades. Interessante, muito interessante.
Comenius: A humanidade caminha para um período de maior maturidade. Quando esta época chegar, ninguém mais terá como se queixar de quaisquer situações desconfortáveis a não ser ao seu próprio íntimo, como quem faz um relatório para a comunidade a que pertence , através de um e-mail.
Nós produzimos o que está aí, junto com bilhões de almas. É nossa prerrogativa modificar esta situação, se assim o desejarmos. Basta que queiramos e trabalhemos para isto, incansavelmente. Só assim nos libertaremos das correntes da irresponsabilidade cósmica e da lamúria gratuita.
Nenhum comentário:
Postar um comentário