Por Mario Sales, FRC.:;S.:I.:;M.:M.:
Existe no You Tube um vídeo da BBC sobre Nietszche, ao que parece parte de uma série intitulada “Humano, demasiadamente Humano” (Human, All Too Human: Nietzsche). Lá estão descritos detalhes biográficos do eminente pensador alemão. Entre eles a mudança brusca de rumo ao abandonar o curso de teologia na Universidade de Bonn. Por causa disso, Nietzsche mandou uma carta a sua irmã, Elizabeth, explicando suas razões para a troca pelo curso de filologia das línguas clássicas.
Diz ele: “Te escrevo isso, querida Elizabeth, só para contar as verdades mais comuns para os crentes. Toda verdade na fé é infalível; ela cumpre aquilo que o crente espera encontrar nela. Porém não oferece a mínima base para estabelecer uma verdade objetiva. Aqui os caminhos do homem se dividem. Se queres alcançar a paz e a felicidade, então crês. Se queres ser um discípulo da verdade, então busca.”
Essa fala me pareceu elucidativa sobre um tema que discuti quando escrevi sobre a morte do polemista Christopher Hitchens, antiteísta como se definia.
Para Nietzsche, havia uma oposição irreconciliável entre fé e busca, como se a busca também não fizesse parte do processo de crença.
Esta oposição é, do ponto de vista místico, absolutamente falsa.
Eu sempre comento que se os filósofos conhecessem o misticismo, fossem iniciados nas colunas do verdadeiro esoterismo, mudariam sua concepção sobre a presença de Deus no mundo e não combateriam mais ao Todo Poderoso, mas sim as instituições que se arvoraram em suas representantes e procuradoras, as religiões, aquelas que estabeleceram normas e leis em nome de uma intimidade com o Altíssimo que jamais possuíram.
Este equívoco está presente nos pensadores mais brilhantes. Tomam a experiência divina como sinônimo de crença e de religião. Não é, qualquer místico sabe disso, mas eles não são místicos, nunca buscaram dentro de si, e se o fizeram, não foram fundo o suficiente. Atingiram no máximo a mente e não o espírito.
Busca interior é algo mais profundo. Minha sóror e saudosa amiga Diva Ogeda sempre comentava que misticismo era uma coisa pra se tomar na veia. Não permitia meias verdades. Pessoas que não experimentaram interiormente a presença de Deus não podem discuti-lo, falar sobre ele, ser a favor ou contra a idéia de sua existência. É um discurso vazio, já que não é baseado em fatos. Sim, fatos, já que a experiência interior, a epifania verdadeira, não é uma impressão ou uma crença, mas uma vivência. Tenho lido pensadores os mais variados e exatamente por não terem vivenciado a presença em seu interior, discutem a Divindade de forma banal, superficial e imprecisa. Debatem a autodeterminação como se Deus os tolhesse; debatem a importância da liberdade como se Deus os acorrentasse; enfim debatem o pecado como se Deus os julgasse ou os condenasse.
Tudo bobagem.
Qualquer místico sabe que quem tentou tirar nossa autonomia filosófica, moral e científica foram as religiões; que quem aprisionou e torturou, física e mentalmente milhares de pessoas foram as religiões, e por último, quem julgou , condenou, e criou tábuas da lei como o próprio Nietzsche mostra em Genealogia da Moral, foram as religiões.
Deus? Deus não tem nada a ver com isso. Aqueles, no entanto, que se arvoraram em Seus representantes, esses falsários do espírito, esses seres arrogantes que se auto intitulam possuidores de uma revelação qualquer que lhes autorizaria torturar, julgar e escravizar multidões de mente fraca mundo afora, esses tiranos de várias denominações, esses são os verdadeiros inimigos da liberdade e da experiência direta de Deus, e não a fé.
O massacre dos Cátaros
Lembremos dos Cátaros, no sul da França e norte da Itália. Cátaro em grego quer dizer puro. Foram dizimados por uma única razão: acreditavam na auto determinação e que cada homem deveria ter um contato individual com Deus, e não através de intermediários. Vejam a transcrição que se segue : “A resistência às sucessivas tentativas de reconversão da população local provocou a organização da Cruzada Albigense. Iniciada em 1209, a cruzada durou cerca de 35 anos. Foi comandada por Simon de Montfort sob ordem do Papa Inocêncio III. Seus enviados estampavam uma cruz em suas túnicas e tinham como meta a absolvição de todos os pecados, a remissão dos castigos, um lugar a salvo no céu e, como recompensa material, o produto de todos os saques. A primeira cidade tomada foi Beziers, e o massacre foi quase que total. O abade de Citeaux, representante papal, ao ser questionado sobre como seriam reconhecidos os cátaros e os católicos, ele havia respondido: " Matem a todos... Deus se encarregará dos seus..."”
É estranho que grandes pensadores não tenham se apercebido desta sutileza. Talvez estivesses tão encharcados de religiões que não conseguiam ver Deus por trás e acima delas.
Mesmo assim, se sou severo com os Inquisidores de plantão, que não morreram nem desapareceram, estão apenas adormecidos e perigosamente atentos, tenho uma dose de crítica reservada aos grandes pensadores.
A única coisa que explica que homens inteligentes e sensíveis intelectualmente não tenham conseguido perceber a diferença entre uma e outra coisa é a ignorância. E não a ignorância intelectual, pois todos eram soberbos intelectuais.
O que é triste é que com tanta sensibilidade nunca tiveram a capacidade de se deixar absorver no Todo. E a única explicação é o Medo. Este mergulho na experiência, a única forma de se conhecer diretamente aquilo que Espinosa chamava de a Substância sem Causa, implica também na perda parcial ou total, temporária, não definitiva, na noção de Eu.
Aquele que por alguns instantes se funde com o Todo, percebe a noção de Unidade, e a personalidade não resiste à experiência da Fusão.
É assustador. É revelador da mesma forma.
E de qualquer maneira, é a única forma de se chegar a este conhecimento que aos místicos é corriqueiro: Deus não é uma crença, não é uma imagem, não é um nome; Deus é uma experiência.
Quem morrer em meu nome terá a Vida Eterna, dizia o mestre.
Sim, trata-se de uma espécie de Morte. E o Ego não suporta tal idéia. Tudo faz e fará para permanecer, para não ver sua destruição, como se isso fosse possível.
A experiência de Vivenciar a Divindade não anula o Ego, flexibiliza-o, mostra que ele não é algo tão sólido e estável como possa parecer. Apenas isto.
Isso imediatamente nos transforma.
Torna-nos humildes e, ao mesmo tempo, felizes. Faz com que pela primeira vez entendamos a ligação que temos com todas as coisas da Criação e com as outras pessoas e os animais e a Natureza. Tudo acontece de uma única vez, mas não é ainda uma iluminação. É apenas o primeiro passo na direção da Luz, mas que passo.
Esta é a única e verdadeira iniciação, aquela que ocorre no coração, como lembrava Saint Martin. Lembremos disso quando lermos os filósofos que falam sobre, a favor ou contra a idéia de Deus. E nos apiedemos de suas almas. Pois uma experiência assim é uma bênção transformadora e quem ainda não passou por isso, não viveu. Nada na sensualidade, nos prazeres mundanos, equivale a intensidade desta experiência. É uma pena que alguns não tenham ainda vivenciado tal estado.
Verdadeiramente, uma limitação.
Uma triste limitação que produz discursos capengas e incompletos.
Paciência.
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