por Mario Sales, FRC.:,S.:I.:,M.:M.:
O conceito de liberdade é muito caro ao homem contemporâneo. Ele o considera um bem precioso e defende-o de maneira intransigente em certas situações e, em outras, quando supõe que foi privado deste bem, mergulha em estado de melancolia.
Este comportamento tem suas raízes, como, aliás, quase tudo em nosso comportamento, na Grécia clássica.
Gerd Bornheim
Lá começou a busca da liberdade, marcada desde o início pela contradição pois o povo que defendia o sistema político que hoje copiamos, a Democracia, cultivava a escravidão de outros povos. Foi no Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, estudando o teatro grego, que aprendi um pouco sobre as movimentações do povo grego em busca de liberdade, principalmente aquela mais fundamental, a liberdade psicológica.
Fui aluno de Gerd Bornheim, no IFCS da UFRJ.
Era um homem respeitado no meio teatral, o que eu não sabia na época.
De qualquer forma, foi acompanhando suas digressões sobre o teatro na Grécia que comecei a fundamentar minhas reflexões sobre a transição entre um comportamento psicológico e outro, para gregos e para toda a humanidade depois deles.
E este comportamento psicológico dizia respeito às crenças religiosas em oposição à razão.
Ele sempre falava que a transição de modelo de peça teatral marcou também a transformação do homem amedrontado, aprisionado pela superstição e submisso à vontade dos Deuses para outro tipo de homem que, literalmente, tinha seu destino em suas mãos. E ele citava Medeia, no caso a versão de Eurípedes, uma tragédia importante da época, como marco desta transformação.
Medéia de Eugéne Ferdinand Victor Delacroix
Ali estão retratados sentimentos humanos, ou como diria Nietzsche, demasiadamente humanos, como ciúme, infidelidade, vingança. Só que o que chama atenção em Medeia é que, pela primeira vez, os erros de Jasão, o personagem masculino, e a sua traição à sua esposa, Medeia, desencadeiam eventos ligados única e tão somente aos sentimentos humanos envolvidos. Não há a intervenção de quaisquer dos deuses conhecidos nos acontecimentos. Quando Medeia envenena os filhos por vingança, ela o faz por sua vontade.
É curioso, mas a peça que mostra a libertação dos homens do jugo psicológico da vontade dos deuses é protagonizada por uma mulher.
Foi uma aula fascinante. Gerd falava calmamente, não tinha a característica teatral de outros professores na exposição de seus argumentos, mas eles tinham um peso e uma veemência própria, por si, e calavam fundo em todos nós.
Sábios não precisam gritar para serem ouvidos com atenção.
Livre dos deuses, o grego buscou guiar seu comportamento pelo pensamento racional, pela lógica, a partir de Sócrates, aperfeiçoada por Aristóteles. Por isso pensar era ser livre das superstições. Pensar e agir a partir de seu pensamento era ser livre. Pensar era ser livre. Ser livre era pensar.
Além disso, pensar significava romper com os deuses. Era uma atitude de oposição aos deuses. Essas reflexões já são minhas e não de Gerd.
Daí pra frente, romper com a opressão de deuses míticos tornou-se sinal de liberdade e o pensamento individual, os sentimentos humanos, um sinal desta liberdade.
Perante os deuses gregos ou perante qualquer idéia de divindade. Foi neste momento que jogamos a criança fora junto com a água da banheira.
Como já descrevi antes, crer em algo não é o mesmo que experimentar. Crer em uma determinada idéia de divindade não é o mesmo que experimentar uma espécie qualquer de contato com esta mesma entidade. E já que, nisto estamos de acordo, a mente nos prega peças, um contato desta ordem pode ser produto de delírio e ilusão psicológica e tão falso quanto crer na existência de Zeus ou de Apolo.
A Imaginação foi assim relegada a um plano de detenção, um ambiente mental prisional, aonde ela deve ficar detida para não causar problemas às partes sérias e confiáveis do cérebro, ou seja, a razão e o cálculo.
Por isso até hoje, os artistas são comparados aos loucos, dada sua imensa capacidade de imaginar e sua descontrolada felicidade em fazê-lo.
Ao contrário do que se concluiu ao longo de séculos, que era a razão que deveria nos libertar e que deveríamos manter sob vigilância a imaginação para que esta não nos confundisse, por causa de uma razão tirana mergulhamos em profunda tristeza da qual, na maioria das vezes, somos salvos apenas pela arte, a filha dileta da Imaginação, que com seus livros, esculturas e pinturas, com suas músicas e óperas, com seu teatro, libera-nos da opressão desmedida dos fatos e dá a estes mesmos fatos uma dimensão que vai muito além do que eles parecem ser.
Será esta, no entanto, a função da arte? Acalmar nossa angústia e nossa perplexidade? Ou por outra, a função da arte é causar exatamente esta perplexidade à qual os fatos, despidos de sentido ou beleza nos levaram?
Vamos por partes.
O primeiro impacto da Arte está na sua capacidade de materializar, no drama teatral ou em um objeto, nossas idéias de mundo e nossos sentimentos.
Sim, muitas das vêzes os artistas recorrem a referenciais cotidianos, a histórias mundanas e corriqueiras, mas apenas para discutir através do visível, o invisível, os sentimentos.
E também é verdade que a arte nos causa perplexidade, mas de forma positiva, porque instabilizando nossos horizontes ela permite que possamos expandi-los, além daquilo que a razão tinha nos assegurado e estabelecido. E nisto a arte pode nos tirar da zona de conforto, mas na intenção de nos mobilizar internamente em direção a valores mais refinados e elaborados do que os anteriores, a percepções mais complexas e ricas do que as que possuíamos antes.
A intensidade deste desconforto que a arte pode provocar vai depender, obviamente, do artista, que deverá ser capaz de dosar aquilo que produz para que, nem deixe de causar impacto emocional com sua obra, nem cause tanto impacto que em vez de perplexidade, gere sofrimento e aversão em quem contempla seu trabalho.
Sua liberdade em libertar a mente de quem o assiste é, portanto, limitada a capacidade de tolerância do espectador às cores, físicas ou psicológicas da obra.
Por isso existe um universo artístico tão heterogêneo, pois tal universo consiste tanto de diferentes tipos de expressão artística quanto de diferentes tipos de artistas, funis diferentes para o mesmo fluido. E, claro, este fluido que é o nome que daremos aqui para a Inspiração da Imaginação, será derramado nos mais diferentes tipos de recipientes, os quais serão então a forma final desta ou daquela obra artística.
Criar arte é aprisionar o fluxo livre da imaginação em determinado recipiente, seja um texto, um poema ou uma canção.
É como uma fotografia do movimento das ondas do mar, ininterrupto, mas que ficará congelado na foto, como se fosse imóvel, e será tanto mais bela a foto quanto mais perto estiver de sugerir o dinamismo destas ondas.
A imaginação é invisível para quem não está envolvido no processo criativo, e certas idéias não poderão nem mesmo ser percebidas por quem tentar imaginá-las se não tiver, como vimos no ensaio anterior, instrumentos intelectuais para isso. Só um matemático pode ver beleza em determinadas equações. Só um músico pode perceber de forma consciente as nuances de uma melodia. Seus cérebros estão aptos à fazê-lo, como nem todos os cérebros estão.
A Imaginação, portanto, tanto nos liberta da mesmice do mundo quanto não é livre totalmente, já que depende de quem imagina. Ela estará sempre, indissociavelmente, unida ao imaginador. E este deverá dar a esta Imaginação a forma que puder e tiver competência intelectual para dar.
Daí a importância de algo que caiu em desuso em nossos dias e que se convencionou chamar de “cultura geral”.
Num mundo que valoriza o especialista, em uma ciência que depende desta especialização para poder mostrar resultados, aqueles que forem capazes de conhecerem muitas coisas sobre muitos assuntos estarão, paradoxalmente, mais aptos a receber um sem número de inspirações em sua imaginação e compreendê-las, tornando-se um manancial de idéias fabuloso. É o caso de pessoas criativas ou que lidem com a criatividade não direcionada, como os publicitários.
Publicitários, por definição, não são apenas artistas que se expressam, mas sim artistas da expressão em si.
É da natureza de sua profissão dar imagem a idéias e por isso, seriam, se os salários compensassem excelentes professores. Quando transformam em comerciais de 30 segundos uma idéia ou uma informação, para que possam ser bem sucedidos devem fazê-lo com graça e capacidade de fixação na mente do interlocutor ou espectador.
E todas as idéias e fatos cotidianos possíveis serão convocados a participar deste esforço de representação, deste teatro de meio minuto, aonde é preciso emocionar quem assiste com a mesma força de uma peça de hora e meia.
Qualquer publicitário sabe que, da mesma forma que não há como saber o que um cliente futuro trará para ser objeto de seu trabalho, não existe informação que ele possa desprezar no seu dia a dia dentro da sociedade, e por isso permanece atento a tudo que testemunha, desde o comportamento do balconista de uma padaria até as formas de música e estilos de dança que caem no gosto das pessoas de sua época. E isto sem desprezar aspectos tradicionais do comportamento humano, suas tradições e crenças mais comuns.
O Publicitário é um psicólogo de massas, como todos nós devemos ser, e tem obrigação por profissão de entender a natureza humana, sem preconceitos ou reservas.
Ele é o meu melhor exemplo da utilidade da erudição na função de dar um contorno às idéias provenientes da imaginação produtiva, no intuito de tornar visível e estático o que em si é, por natureza, invisível e dinâmico.
E assim, aprisionando o fluido da imaginação em uma forma, libertamos nossa mente de sua angústia de se expressar.
É isso.
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