por Mario Sales FRC.:,S.:I.:,M.:M.:
“Outro importante filósofo leitor de Espinosa foi Immanuel Kant (1724-1804). Sobretudo por três motivos. O primeiro deles está vinculado a uma divergência com relação à definição de Deus. Na interpretação de Kant, se Deus não é Providência[1], não tem intelecto nem vontade. De acordo com Espinosa, Deus age apenas conforme as leis de sua própria natureza, portanto, não haveria lugar nem para o dever moral, nem para a liberdade, já que tudo ocorre por necessidade.
O segundo motivo está associado ao primeiro. Para Kant, só podemos conhecer a realidade enquanto fenômeno - o que nos é oferecido pela experiência sensível e inteligível, podendo ser percebido e organizado por meio das categorias à priori do pensamento: o espaço e o tempo; mas não podemos perceber a realidade (que ele chama noûmenon, a coisa em si), que não é dada à nossa sensibilidade e ao nosso pensamento. Ou seja, Deus é noûmenon; logo, não pode ser conhecido, embora a razão possa afirmar sua existência. Assim, segundo ele, tudo o que Espinosa diz sobre Deus não poderia de fato ser demonstrado. Logo, Espinosa seria um dogmático.
A terceira objeção kantiana é a de que Espinosa seja um orientalista, isto é, afirmaria as mesmas crenças das religiões orientais (hinduísmo, budismo, taoísmo). Tal opinião também era partilhada por outros dois grandes filósofos: Hegel (1770-183l) e Schopenhauer (1788-1860). Na visão deles, ao afirmar Deus como única substância, Espinosa estaria dizendo que a realidade de fato é a própria substância. Assim, nós e todas as outras coisas da natureza, seríamos apenas maneiras de ser da substância infinita, ou seja, modos imanentes a ela, sem realidade própria, individual. Portanto, nessa condição, os indivíduos seriam absorvidos no Todo e suas personalidades se apagariam, tal como ocorre nas experiências místicas orientais.”
Trecho do artigo “Espinosa uma referência provocativa e necessária”, Revista Discutindo Filosofia, São Paulo, p. 35 - 37, 01 jun. 2007, de Marcos Ferreira de Paula, Professor adjunto de Filosofia da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e doutor em filosofia pela Universidade de São Paulo (2009), foi orientado pela filósofa Marilena Chauí. Na França, sob a direção do filósofo Laurent Bove, realizou estágio de pesquisa no ano de 2008 na Université de Picardie Jules Verne (Amiens). É membro do Grupo de Estudos Espinosanos desde 2003, revisor dos Cadernos Espinosanos (2007) e membro do Grupo de Estudos Spinoza & Nietzsche (2007). Suas investigações sobre a filosofia de Espinosa começaram já durante o mestrado em Sociologia, realizado na Universidade de São Paulo (2003), onde também concluiu sua graduação em Ciências Sociais (1999). Atualmente, além da atividade docente no curso de Serviço Social da Unifesp - Baixada Santista, desenvolve uma pesquisa de longa duração sobre o problema metafísico do amor intelectual na Ética de Espinosa, sob supervisão de Marilena Chauí.
As objeções de Kant ao pensamento espinosano são no mínimo curiosas. Para relembrar uma frase de Espinosa, se somos triângulos, Deus nos parece triangular e se somos círculos, Deus, para nós, com certeza será circular. Kant argumenta, segundo o artigo do prof. Marcos Ferreira de Paula em epígrafe, que se Deus não é providência, se não pode interferir na realidade a todo instante, sem se ater às limitações impostas pelo funcionamento da mecânica do Universo; se, em suma, seguir apenas as ações redundantes da necessidade, não deve , em sua concepção, ter intelecto ou vontade. O mestre de Konisberg, o decifrador da fisiologia do pensamento, do mecanismo da razão chamada “pura”, não poderia conceber um Deus que não fosse nada mais, nada menos, do que o Supremo Intelecto.
Como os triângulos e os círculos, a ingenuidade do grande pensador foi pensar que pensar representa tudo que existe.
E se não for assim?
E se o pensamento for como parece ser, um modo de perceber o mundo, mas não o único, nem o melhor?
E se, dadas as suas características, o ato de pensar como definiu tão bem o próprio Kant, em função de não poder ver ou perceber a não ser o fenômeno, a aparência dos corpos, em vez do noûmenon, a coisa em si, nos traga apenas as imagens e conclusões possíveis dentro de suas limitações?
Espinosa era antes de tudo, um homem de coragem, despido da teatralidade divertida de Nietzsche, mas tão sagaz e penetrante como filósofo quanto este. E foi com esta coragem que ele transcendeu os limites da visão religiosa que dominou o mundo até a publicação da Ética.
Bergson dizia que todo homem tem duas filosofias: a sua e a de Espinosa. E tinha razão. Em filosofia, como na História, deveríamos marcar os acontecimentos em AE e DE, antes e depois de Espinosa. Esta primeira objeção de Kant, portanto, não é filosoficamente falando, suficientemente livre, enquanto reflexão, dos entulhos e crenças bíblicas que impediram que o ser humano não só pensasse, mas antes de tudo sentisse seu Deus com seu coração.
A originalidade de Espinosa foi a fonte aonde ele procurou os fundamentos de seu sublime texto.
Espinosa, não à toa, é o filósofo dos sentimentos.
Dito isso, ouso arriscar a tese de que o nobre Bento de Amsterdã não apenas escreveu seus livros com seu intelecto, mas, antes de tudo, descreveu de forma intelectual os seus sentimentos mais profundos.
Alguém que tenha a capacidade de não tentar colocar rótulos no Incognoscível, com certeza tocou às Suas vestes, roçou os Seus Sagrados Pés.
E toda vez que isto ocorre, não estamos falando de raciocínios e textos, mas de descrições de experiências, do relato de uma vivência, tão marcante e profunda que se torna uma marca indelével em nossa existência.
A humildade e a aversão deste singular pensador ao luxo e a coisas humanas são conhecidas.
Não era uma humildade forjada, mas sim a expressão sincera de um estado de paz interior semelhante ao estado de bem aventurança dos Iluminados. Sua beatitude não religiosa era tão marcante que se refletia em seu comportamento tanto quanto em seus textos.
Bachelard, autor de "A luz de uma Candeia"
Gastón Bachelard, o maravilhoso escritor francês, dizia que um filósofo não tem nenhuma obrigação com sua obra, no sentido existencial, que uma coisa é o pensador e outra seu pensamento.
Na contramão desta afirmação está a vida de Spinoza. Tão rigoroso e digno foi em sua prática cotidiana quanto em seu esforço de síntese reflexiva.
Era um homem bom e provavelmente, não ao lê-lo, mas ao compreendê-lo, esperaríamos que, ao encontrá-lo pela frente, estaríamos diante de um homem forte e “de ombros largos” (que em grego se diz Platão) e não este homem discreto, com um paletó surrado, absolutamente satisfeito com sua condição terrena e aparentemente sem ambições materiais.
Kant estava errado. O fato de Deus não parecer ter intelecto no entender de Spinoza apenas demonstra a coerência deste pensador, que sempre advogou o equívoco de querer interpretar o Desconhecido através de parâmetros pessoais.
Quanto a estar sujeito às necessidades, isto em nada desdiviniza o Criador, a julgar pelo raciocínio mais óbvio de que, como lembrava Spencer Lewis, se os instintos e as necessidades de cada ser humano estão em nós e funcionam de modo automático, foram colocadas em nós pelo próprio Criador e, portanto, todo instinto e toda necessidade básica humana é tão sagrada quanto Aquele que a colocou em nós.
A segunda objeção de Kant é risível. Alegando a nossa incapacidade de conhecer o Altíssimo, já que somos limitados em nossa percepção da coisa em si, Kant conclui que as afirmações de Spinoza são indemonstráveis e, portanto, dogmáticas.
Ora, se Spinoza é dogmático ao não definir os contornos de Deus ou ao postular a existência de uma substância única e infinita, da mesma maneira Kant o seria ao negá-lo por motivos intelectuais, já que Kant pensa o pensar, enquanto Espinosa descreve o sentir.
O que é o Dogma? Aquilo que não posso demonstrar racionalmente, aquilo que não permite discussão.
Como discutir o Desconhecido? É impossível.
Só que não é impossível senti-lo, reconhecê-lo dentro de nós mesmos, como demonstraria Schopenhauer na introdução de "O Mundo como Vontade e Representação", o que estabelece a diferença entre o método espinosano e o kantiano.
Enquanto Kant pensa Deus e o classifica de impensável, mas possível e provável, Espinosa sente-O em suas entranhas e reconhece-O em seu próprio corpo e em outros corpos, em Sua própria obra.
Espinosa não é o filósofo do pensamento, mas sim o filósofo da paixão e do desejo. Não pensa o Divino enquanto humano, mas descreve a Divindade de nossa própria humanidade.
Isso, um intelectual como Kant não seria capaz de fazer. Se há duas coisas que faltam a Kant, e isto todos concordam, é paixão e desejo.
Não se trata de um defeito, mas de sua natureza.
No enfoque mais espinosano possível, não se deve criticar ou sofrer com isso, mas compreender.
Se Kant olhava o mundo através de um espelho, Espinosa usava Lentes, e as movimentava, aumentando ou não a imagem ao seu bel prazer. Não há dúvida que DE, depois de Espinosa, nossa visão da realidade melhorou.
A terceira e última objeção Kantiana é de que Espinosa era um Orientalista. Isto não é uma objeção, mas uma constatação, a qual foi também percebida por Hegel e Schopenhauer, a qual em nada tira de seu trabalho profundidade ou refinamento.
Para nós místicos, o Ocidente ainda tem muito a aprender com o Oriente, principalmente quanto à técnicas não intelectuais, mas mesmo assim, e talvez até por causa disso, mais eficientes, de percepção do Real e do Divino.
Isto, no entanto, já é tema para outro ensaio .
[1] Divina Providência, ou simplesmente Providência, é um termo teológico que se refere ao poder supremo, superintendência, ou ação de Deus sobre eventos na vidas das pessoas por toda a história. É a influência de Deus no futuro, onde ele decide o que irá acontecer no futuro e significa que nada acontece sem que Deus permita.
Muito bom! Gostei muito do artigo!
ResponderExcluirOlá Mário,
ResponderExcluirgostei do seu texto, mas Kant não é bem assim como você o está entendendo. Que Kant critica Espinosa e o chama de ''dogmático'', isso é verdade, mas ele tinha que o fazê-lo em virtude de seu sistema Crítico-Transcendental, que é: antes de afirmar algo sobre as coisas, devemos nos indagar sobre a nossa capacidade de conhecê-las.
Kant não nega Deus e nem o afirma, porém, isso para a Razão Teórica. O Homem, enquanto ente racional, também possui uma faculdade prática (de onde vem o sentimento moral). E é na Crítica da Razão Prática (Kritik der Praktischen Vernunft) que Kant tentará uma ''prova moral de Deus'', ao seu ver, a única possível.
Resumindo, Deus não existe porque a categoria de ''EXISTÊNCIA'' só tem seu campo de significação legítima nos objetos de uma experiência possível; e, por ''experiência'' Kant entende tudo o que ocorre no espaço-tempo e possui regularidade. Logo, Deus não pode nem existir e nem não-Existir. Nenhum predicado lhe é possível, devido à limitação de nosso aparato cognitivo (O ENTENDIMENTO). Já a RAZÃO não é uma faculdade de conhecer, mas uma faculdade de conceber ideias que, se não podem ser demostradas na experiência, ao menos ajudam a regulá-la, isto é, remetê-las a ua instância suprema que ajuda a nós compreendermos os fenômenos.
Onde Kant chama Espinosa de orientalista? Pode citar para mim, por favor? Não conheço.
Não tenho tempo agora (devido ao meu trabalho e obrigações diárias) para discutir isso mais aprofundamente com você, mas em outra momento eu gostaria de aprofundar. Paz Profunda.
Pedro Allan Portácio de Queiroz, 21 anos, graduando em Filosofia pela Universidade Federal do Ceará e recém afilidado à AMORC.
Paz profunda frater e obrigado por seu comentário. Como visto, meu ensaio é baseado no trabalho em epígrafe aonde a afirmação do orientalismo espinosano é mencionada. Procurei uma passagem acerca disso em Kant mas não encontrei realmente a não ser que ao pensar desta forma existe alguma semelhança. Há referências no entanto ao orientalismo espinosano em artigo da professora Marilena Chauí. “A estrutura retórica do verbete Spinoza” onde é feita uma análise do verbete “Spinoza” do “Dictionnaire Historique et Critique” salientando a estrutura retórica do texto, em cujo centro se encontra a nova figura do ateu , construída por Bayle, o ateu especulativo ou “o ateu de sistema”. Na página 325, último parágrafo, Marilena elenca algumas semelhanças do pensamento espinosano com escolas orientalistas. O artigo está na internet. Grande abraço.
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ESSES CAPRICORNIANOS!USE SEU APARATO COGNITIVO.
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