por Mario Sales, FRC,SI,CRC
A URCI, a Universidade Rosacruz Internacional, com o apoio
da Grande Loja da AMORC para a Língua Portuguesa, está envolvida, fazem alguns
anos em um projeto de estudo ligado a busca de diálogo, por seus organizadores
chamado Interdisciplinar, entre a Religião ou, mais especificamente, o
Misticismo, e a Ciência.
Considero, desde o início, este esforço improdutivo e
inviável, por várias razões, que tentarei descrever e explicar abaixo.
Imaginem o primeiro contato entre duas tribos que nunca se
viram antes e que falam idiomas diferentes.
Toda vez que duas linguagens e formas de representação
conceitual do mundo diferentes se encontram, reza a história, os primeiros
contatos são baseados na mímica, que expressa através de gestos a nomenclatura
das coisas em cada linguagem.
Assim, se uma flor chamar-se "flor" em uma língua,
e "bolor" em outra, e houver uma flor por perto de dois
representantes, um de uma tribo e outro de outra, um deles apontará para
a flor e dirá "flor", tendo o cuidado de mostrar que se refere a
planta e não ao dedo apontado, pois até os gestos que consideramos óbvios não o
são em um encontro desta natureza. Mesmo os gestos de uma mímica qualquer
seguem os costumes daquela cultura que faz a mímica.
Então, neste hipotético encontro, um apontará para a flor e
dirá "flor", tentando associar a coisa à palavra que a designa em sua
linguagem. O outro, espera-se, em resposta, considerando que o interesse em
aprender um com o outro seja mútuo, (outra variável que precisamos considerar),
apontará para a mesma flor e dirá "bolor", indicando que, na sua
língua é assim que se denomina aquele vegetal.
Todos hão de concordar que, antes da palavra que designa a
flor, o mais importante recurso desta tentativa de harmonização de línguas e
culturas diferentes é a flor em si.
Sem algo concreto comum a ambas as
culturas, não se teria como estabelecer um padrão sobre o qual se trabalhar na
concepção de uma linguagem comum.
São precisos, pois, fatos e objetos palpáveis e concretos
comuns para depois iniciarmos a discussão teórica, verbal.
Como brilhantemente mostrou Foucault em As Palavras e as
Coisas, a linguagem conta uma história do mundo, descrevendo-o e , ao descrevê-lo,
transmite valores e compreensões. Mas antes de descrever o mundo é preciso que
exista o mundo em si, real, ("Lebens Welt", "O Mundo da
Vida", a expressão consagrada do mestre da hermenêutica alemão, Jürgen
Habermas[1]), a
ser descrito, uma experiência comum a ambas as tribos, mesmo que cada tribo
atribua a este mundo concreto valores e nomes diferentes.
Esta é uma questão radical ( ou seja, da raiz) na discussão
do tema Interdisciplinariedade.
Primeiro, como foi dito, para que duas comunidades ou dois saberes, A e B, procurem conversar e chegar a uma linguagem comum, tem de
haver interesse comum neste encontro.
E o interesse comum pressupõe que A veja
em B, e vice versa, algum lucro neste encontro.
Se a comunidade A supor que a comunidade B nada tem a lhe
trazer de interessante, manter-se-á distante.
Existem interesses que movem estas aproximações.
Assim, um outro aspecto, é que não é possível construir-se
linguagens comuns a não ser com interesses comuns bem definidos e específicos.
Outro aspecto é que o Todo não conversa com o Todo, mas apenas partes de cada Todo conversam entre si.
Eu explico. Vejo muita preocupação em estabelecer-se uma
conversação entre a religião e a ciência, por exemplo. Ora, tais coisas (religião
e ciência) não existem, são abstrações.
O que realmente existe de concreto são "as Religiões", cada uma mais peculiar que a outra, e "as Ciências" (física, química, biologia, antropologia, geologia, etc), com suas especificidades.
O que realmente existe de concreto são "as Religiões", cada uma mais peculiar que a outra, e "as Ciências" (física, química, biologia, antropologia, geologia, etc), com suas especificidades.
Quem imagina a possibilidade de um diálogo entre o Todo do Universo Religião e o Todo do Universo
Ciência, pressupõe que dentro de cada Universo se fale uma única e mesma língua comum,
o que não ocorre, nem dentro do Universo Científico, nem no Universo Religioso, ou mesmo no Místico.
Estamos ainda, e acho que sempre estaremos, na fase em que partes internas do Universo Ciência estão começando a conversar entre si, levadas a este diálogo por assuntos e interesses reais concretos e comuns.
Estamos ainda, e acho que sempre estaremos, na fase em que partes internas do Universo Ciência estão começando a conversar entre si, levadas a este diálogo por assuntos e interesses reais concretos e comuns.
Como exemplo, desde o início do século passado, por causa do
estudo da radioatividade, que levaria ao campo da física nuclear, o "planeta"
Química e o "planeta" Física, dentro do Universo Ciência, estabeleceram
um diálogo que não para de crescer em intensidade e riqueza. Por motivos semelhantes,
de interesses comuns, o "planeta" Química, através de uma de suas
"luas", a farmacologia, estabeleceu um rico diálogo interdisciplinar
com o "planeta" Biologia.
Do que vimos, e até Foucault concordaria, é preciso haver
interesses comuns concretos, acerca de uma realidade concreta, para que nasça
depois o desejo de realizar este encontro e este diálogo.
E lembrando nossas hipotéticas tribos citadas acima, no
encontro entre os "planetas" Química, Física e Biologia, muitas
coisas concretas já tinham nomes definidos em comum com as três linguagens, além
da simples "flor", que foi o meu exemplo. Os átomos são os mesmos,
os elementos químicos são os mesmos, a mesma tabela periódica a unir três mundos
diferentes no Universo Científico.
Podemos concluir que:
1. É impossível e inviável um diálogo entre Universos,
considerando a diversidade e complexidade interna de cada um ( seja o Universo
da Ciência, seja o da Religião);
2. Desta forma, é preciso que pequenas partes
de cada Universo ("planetas") conversem com pequenas partes de outro
Universo ( a biologia, por exemplo, tentando um diálogo com as religiões de
fundamentação bíblica, no quesito específico Criacionismo X Evolucionismo
Darwiniano);
3. É necessário que, para que esse diálogo comece, exista um
campo de interesse concreto comum (como o estudo Físico, Químico ou mesmo Biológico,
do comportamento dos mesmos elementos químicos), e não apenas uma intenção,
fruto da vontade ingênua da tribo A ou da tribo B.
Por causa de todos este argumentos, penso que não há nenhuma
esperança para o diálogo entre o Universo Ciência e o Universo Místico, que em
si já é um Universo diferente do Universo Religião. Primeiro, pelo aspecto
falta de interesse comum. Não há elementos concretos que motivem esta intenção.
O interesse neste diálogo é eminentemente do lado da tribo Mística a qual,
falando francamente, busca neste encontro algo que sempre ambicionou mesmo tentando ocultar, desde
os textos de Helena Blavatsky: uma validação cientificista de suas espantosas
afirmações. Meus caros, convenhamos, o Universo Científico não tem interesse neste encontro, não
necessita desta validação que já possui, e que não outorgará a nenhum outro
campo a não ser que este campo se mostre apto a receber esta outorga.
E esta aptidão se ocorrer, só se dará nos moldes e nas condições do próprio
Universo Científico, ou seja, é preciso que os interessados nesta validação
apresentem fatos concretos sobre os quais possa-se tecer considerações,
elaborar teorias e experimentos, ou seja, fundamentar-se como saber científico.
Um Universo, como o Universo Místico, que se baseia apenas
em afirmações vagas, a maioria das vêzes não demonstráveis, em informações
colhidas de depoimentos de terceiros, e cujas experiências e evidências são
eminentemente pessoais e não compartilháveis, não tem como almejar ser
compreendido pelo Universo Científico, que trabalha em um diapasão
completamente diverso.
E se encontros eventuais entre "planetas" ou "luas",
de cada Universo ocorrem, isto não significa um diálogo entre os dois Universos
como um todo. São ocorrências localizadas e específicas que não ultrapassam as
fronteiras limitadas de sua realidade.
Interdisciplinaridade
entre "planetas" do mesmo Universo é possível e desejável.
Assim, as religiões buscam com algum sucesso diálogos entre si, como Islâmicos
e Cristãos, Judeus e Cristãos, Budistas e Xintoístas, e assim por diante.
E no Universo Ciência, como vimos, Física e Química, Química
e Biologia, Antropologia e Filosofia, como no caso da Antropologia
Fenomenológica, Filosofia e Economia, conversam de modo intenso e produtivo.
Estas são conversas interdisciplinares úteis e sensatas,
movidas por interesses concretos e objetivos, e com chance de produzir frutos
interessantes para o Universo da Ciência e para o Lebens Welt, o Mundo da Vida.
Tentar um diálogo entre Universos que não possuem dentro de
si mesmos uma mesma linguagem, além de inviável do ponto de vista operacional é
um projeto descabido e inútil, uma enorme perda de tempo e esforço material e
humano, um erro do ponto de vista prático e teórico.
Existem pois interdisciplinaridades, diálogos, viáveis e
inviáveis, aqueles que podem e produzirão bons frutos e outros, que por estarem
fundamentados em falsas premissas, não levarão a lugar algum.
O adiamento do Encontro da URCI sobre Interdisciplinaridade
na Saúde, para abril do ano que vem, por falta de número mínimo de
interessados, deveria servir de alerta à Grande Loja do equívoco deste caminho.
Pelo menos assim espero.
[1] Mundo da vida (em alemão: Lebenswelt, em inglês: Lifeworld) é um termo da filosofia ligado principalmente com a fenomenologia de Edmund Husserl, que assim o define: "O “mundo-da-vida” é o terreno a partir do qual tais abstrações [da ciência] derivam, é o campo da própria intuição, o universo do que é intuível, ou ainda, um reino de evidências originárias, para o qual o cientista deveria se voltar para verificar a validade de suas idealizações, de suas teorias, posto que, a ciência interpreta e explica o que é dado imediatamente no “mundo-da-vida”." O termo também está ligado à interpretação sociológica de Jürgen Habermas, como sendo a esfera privada onde os sujeitos chegam a um entendimento sobre as outras esferas do sistema social através do processo comunicativo.
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