por Mario Sales
“Nenhum
igual àquele.
A hora
no bolso do colete é furtiva,
A hora
na parede da sala é calma,
A hora
na incidência da luz é silenciosa.
Mas a
hora no relógio da matriz é grave
como a
consciência.
E
repete. Repete.”
“O Relógio”,
Carlos Drummond de Andrade,
in
Boitempo II, pág 45, Ed. Record, 2ª edição, 1990
“E se
um dia ou uma noite um demônio se esgueirasse em tua mais solitária solidão e
te dissesse: “Esta vida, assim como tu vives agora, terás de vive-la ainda uma
vez e ainda inúmeras vezes, e não haverá nela nada de novo, cada dor e cada
prazer e cada pensamento e suspiro e tudo o que há de individualmente pequeno e
de grande em tua vida há de te retornar, e tudo na mesma ordem e sequência e do
mesmo modo esta aranha e este luar entre as árvores, e do mesmo modo este
instante e eu próprio. A eterna ampulheta da existência será sempre virada,
outra vez, e tu com ela, poeira das poeiras.”
O Eterno
Retorno, aforismo 341, Friederich Nietzsche,
in A Gaia
Ciência, Ed. Hemus, 1976
É estranho, mas verdadeiro: tudo se repete. Talvez não com
esse detalhismo da “mesma aranha” ou do mesmo “luar entre árvores”, mas com
certeza, algo semelhante, provocando os mesmos sentimentos, as mesmas considerações.
O tempo “se repete, repete” e nos traz de volta tudo
aquilo que em outras épocas não podemos resolver, ou engolir, ou digerir, e que
vomitamos antes que pudéssemos absorver.
Mesmo o veneno deve ser provado, a cicuta deve ser bebida,
para que mortos, possamos renascer.
Não existe uma sucessão de instantes, mas o desfile ante
nossos olhos dos mesmos cavalos deste carrossel, que sobem e descem,
mecanicamente, enquanto giram a nossa volta. Aqui, neste parque de diversões
abandonado, somos os contempladores, enfadados, dos mesmos objetos que passam
por nós, giro após giro.
Quanto mais voltas testemunhamos, mais monótona se torna a
contemplação, mais meditativos ficamos, a mente vazia de preocupações pois que
tudo que vemos já é conhecido, já foi visto antes.
A sabedoria é reconhecer a natureza cíclica das coisas,
perceber que a estranha oscilação do pêndulo, antes de se constituir um
problema, pode ser também um mantra para nossa meditação.
Olhar a vida como uma técnica auxiliar para conseguirmos
estados mais refinados de consciência, tal qual o incenso, ou um Mandala, é uma
estratégia interessante.
Nada a ver com aprender pela dor. Para o meditador, não
existe dor, como não existe o prazer, porque não existe apego, pelo menos
enquanto dura o estado meditativo.
Sem apego, sem uma vida parcial, polar, ou como dizem
outros, vivendo, ingenuamente, apenas em busca da felicidade, nosso destino só
pode ser o sofrimento.
Em um mundo impermanente, fugaz, querer o bem e negar o mal
ou vice-versa, é um erro tático.
É preciso aprender a contemplar sem se envolver, ensinam os iogues;
contemplar sem julgar, com sábia indiferença.
Esta mudança de qualidade no olhar muda o próprio mundo.
Se supomos o mundo mau, erramos; se o julgamos bom, erramos
da mesma forma.
O mundo, toda a criação, é o que é, sem adjetivos, sem
classificações, regular, monótona, como o relógio da parede, mas sempre em
movimento, o tempo sempre em fluxo ininterrupto, inexorável, inabalável, implacável.
Como seres humanos temos duas opções: caminhar pela margem,
e nos sentarmos em “terra firme” para contemplar da margem, o rio que flui, desfrutando
da ilusão de estabilidade; ou colocarmos nosso barco no rio, e descer com ele
na correnteza, e nos deixar levar, fluir juntamente com o rio, rápidos,
contemplando a margem de dentro do rio. Aqui precisamos dar o salto de fé e
depositarmos nossa confiança na correnteza, internamente crendo que ela sabe
para onde deve ir.[1]
Nesse caso, é como se olhássemos pela janela de um trem em movimento,
paisagens e margens passando por nós céleres, e até pessoas, de modo tão
acelerado que os detalhes se perdem, tornam-se imperceptíveis. Casas, estações,
animais no pasto, surgem e desaparecem no mesmo ritmo frenético do trem em
fluxo, veloz, tornando tudo aos poucos um mesmo borrão na paisagem.
Todas as estações, todas as casas, todos os animais e as
pessoas parecem iguais neste ritmo vertiginoso; sem detalhes, o que antes era
heterogêneo torna-se homogêneo.
E para nossa surpresa, esta monotonia, essa ausência da
diferença, nos acalma o espírito.
Este é o primeiro descolamento, o descolamento entre
observador e observado, entre quem contempla e aquilo que é contemplado. Já não
mais nos identificamos com as coisas que surgem e desaparecem ligeiras, ante
nossos olhos.
É então que surge a pergunta: quem é este Eu que observa em
mim? Quem é este que observa?
Já não contemplamos apenas, mas conseguimos nos ver, vendo;
observar a nós mesmos observando o observado.
Esse é o segundo descolamento. A separação entre o Eu e o
Ego, entre o ser verdadeiro e sua personalidade temporária, entre o artista e o
seu personagem teatral.
Não temos mais nome, sexo ou cultura. O Eterno olha para o
mortal, o infinito para o finito.
Entramos no que se chama Samadhi, o Nirbikalpa Samadhi, e o
que começou com um tímido tic-tac de um singelo relógio transformou-se em
fluxo, em um estado de graça, de bem-aventurança, de completude.
É preciso fazer a escolha, aonde queremos ficar? No rio ou na
margem.
Manter o nosso aparente controle sobre as coisas estáticas,
ou entregar nas mãos da sagrada e dinâmica correnteza o controle sobre nós?
É preciso aceitar que não é uma escolha fácil. Exige coragem,
fé e confiança em coisas invisíveis.
Mergulhar no fluxo demanda uma capacidade mental compatível,
para a qual todos caminhamos, vida após vida, encarnação após encarnação.
Viver sem a ilusão de estar “vivo”, implica em romper laços,
apegos, sentimentos e convicções. E romper laços e abandonar apegos não é
exatamente tornar-se feliz. Estamos realmente prontos para isso?
O despertar da consciência espiritual leva a divina
indiferença.
Estamos realmente dispostos a fazer esta opção?
Só nosso próprio coração pode responder a isso.
[1] “Estou farto de me agarrar. Mesmo que meus olhos não vejam o que há pela frente, confio que a correnteza saiba para onde vai. Vou me soltar e deixar que ela me leve pra onde quiser. Se eu continuar aqui, imobilizado, morrerei de tédio!” As outras criaturas riram e exclamaram: “Tolo! Se você se soltar, essa correnteza que você venera o lançará, aos trambolhões e o fará em pedaços, contra as pedras. Ela o matará mais depressa que o tédio.” Mas ele não lhes deu ouvido. Inspirou profundamente e se soltou. A correnteza lançou-o com violência contra as pedras, mas a criatura, embora machucada, estava decidida a não se agarrar novamente. E então a correnteza o trouxe à tona e ele não mais sofreu nem se lastimou.” “Ilusões”, de Richard Bach, cap. 1
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