Por Mario Sales
“É a confiança por parte do Homem interior nos altos ideais do Homem exterior, que leva o Homem
interior a ouvir e concordar com as sugestões ou solicitações do Homem exterior;
é a CONFIANÇA do Homem exterior no Homem interior que faz com que o homem
exterior deposite toda a sua esperança, toda a sua fé, no reino psíquico e se
liberte de seu antigo ceticismo.
Compreende agora, o que significa o
estabelecimento de tal CONFIANÇA? Vê quão diferente é dos conceitos de Fé e
Crença?”
De um texto secreto rosacruz
Em 10 de janeiro de 2011, aqui no blog,
publiquei um texto intitulado “O Rosacrucianismo e o Martinismo : alguns
conflitos doutrinários ocultos.”
Ali eu começava uma análise
que ainda não terminou e que se apresenta de modo sub-reptício para rosacruzes, e
talvez para os martinistas da TOM, tão óbvia que passa despercebida: as duas Ordens tem caminhos e prioridades diferentes.
Enquanto os rosacruzes são
um grupo de pessoas provenientes de várias religiões, o Martinismo se
autonomeia uma ordem essencialmente cristã.
Mais: naquele texto de oito anos atrás eu lembrava que,
depois de séculos dedicados a estudar os meandros da magia, os rosacruzes “literalmente
desencantaram-se com o Ocultismo. E por quê? Porque aperfeiçoaram suas técnicas
e entenderam que muito, mas muito deste aparato metodológico era desnecessário
à sua finalidade primordial, qual seja, a elevação de seus espíritos como seres
humanos a um nível de excelência. Rosacruzes, ontem como hoje, querem ser cada
vez melhores como seres humanos, e servir mais intensamente a mesma humanidade
da qual fazem parte. Esta é a verdadeira alquimia: a transformação do ser humano
chumbo, homem ou mulher, em ser humano ouro. A Magia pela Magia, o Ocultismo
pelo Ocultismo, entre os Rosacruzes modernos, digamos assim, saiu de moda.”
Com o risco de ser repetitivo, lembro que a “magia” rosacruz
hoje é interna e mental. Porque como todos os saberes, histórica e
metodologicamente o rosacrucianismo também evoluiu.
A TOM, a Tradicional Ordem Martinista, ao contrário,
referencia-se em práticas do século XVIII, nos ensinamentos da Cabala Cristã, e
representa um somatório de tendências as mais variadas, desde o apaixonado
ocultismo de Papus até a erudição do Marquês Marie Victor Stanislas de Guaita,
aliás, o mais rosacruciano de todos o grupo de restauradores do Martinismo
daquela época. Homem extremamente culto e refinado, com um espirito cosmopolita
e plural, Guaita era uma luz entre seus pares. A TOM, no entanto, arrasta
consigo uma sequência de perdas humanas, geralmente de membros de importância significativa,
perdas estas que mergulharam a Ordem em caos administrativo.
Enquanto a Ordem Rosacruz, pela vontade de Deus, se mantém
uma tradição solida, que sobrevive as épocas e as diferentes mudanças sociais,
o Martinismo parece sobreviver com enorme esforço e dificuldade.
Assim foi em seu início, com a morte inesperada de Martinez
de Pasqualy; assim foi, no inicio do século XX, com a também estranha morte de Papus,
vitima de tuberculose, doença contraída quando médico na frente de batalha da
primeira grande guerra, em 25 de outubro de 1916. Gérard Anaclet Vincent
Encausse recebeu o cognome de Papus, (nome do gênio da medicina do Nuctemeron
de Apolônio de Tiana) por influência de Eliphas Levi, esoterista e escritor francês,
que junto com Blavatsky, embora em campos diferentes, estabeleceu as linhas do
esoterismo no século XIX.
Bom administrador, espirito inquieto e produtivo, Papus
centralizava o processo de restauração e sustentação do Martinismo. Sua morte
abalou a estrutura da Ordem de tal forma que, não tivesse sido, com muita
dificuldade, recolhida à proteção da AMORC, por Spencer Lewis, a Ordem
Martinista teria se dissolvido em várias pequenas facções. Pelo fato de
abrigar-se na AMORC, que lhe forneceu um know how de organização interna, a TOM
é hoje, entre as diversas denominações Martinistas, a mais bem estruturada e
sólida.
Mesmo assim, o Martinismo tem características próprias,
resultantes das muitas variáveis envolvidas em sua história. A principal delas
é que trata-se de uma ordem de forte cunho ocultista, caminho contemporaneamente
abandonado.
Esse, no entanto, não seria um problema importante, se seus
trabalhos não focassem tanto em aspectos religiosos.
A TOM preconiza a Fé, como base para o trabalho martinista.
Diz que esta Fé reflete o caminho do coração, a via cardíaca. Séculos atrás,
antes da TOM, os rosacruzes seguiam também a via do coração na busca pelo Deus
de seus corações, em um esforço que transcendia a simples Fé. Na verdade, as monografias
nas quais estudei, da qual extraí o texto que inicia este ensaio, fazem uma
clara distinção entre os dois conceitos. E isso é um fato histórico da cultura
rosacruz. Nós, rosacruzes, não baseamos nossa vida e prática apenas na Fé; fomos
e somos educados para CONFIAR, a partir da experiência, nos ciclos e mecanismos
naturais do universo e do “Deus dos nossos corações”. Portanto não cremos:
sabemos.
Não cremos, mas sabemos em nossos corações e mentes, em
nosso corpo e em nosso espirito, e este saber baseia-se na experiencia direta
de harmonização com Deus, pela oração silenciosa, pela inspiração intuitiva,
pelo treinamento de ouvir a “voz do silêncio” que nos orienta melhor e com mais
segurança do que qualquer elaboração intelectual pode orientar.
Isto apenas serviria para mostrar as diferenças metodológicas
e estruturais entre as duas ordens. O que assistimos, no entanto, é a tentativa,
nas ultimas três décadas, de fortalecimento dos valores martinistas em
detrimento daqueles típicos da tradição rosacruciana.
A ponto de as monografias mais recentes, segundo me relatam
membros mais novos, assumirem o conceito Fé como sinônimo de Confiança, e não
de Crença, numa tentativa de unificar discursos heterogêneos, o que gera não a
harmonia entre duas linhas esotéricas mas, isto sim, me perdoem os fratres, um
filosofia frankstein, bem ao estilo do Martinismo histórico.
E quando digo isso recordo a todos que Martinismo não é
Martinezismo, embora o discurso da TOM os confunda; que San Martin abandonou as
práticas dos Ellus Cohen em benefício de uma livre iniciação, protocolo que a
TOM- AMORC modificou, estabelecendo que alguns dos SI são livres iniciadores e
outros não.
A única linha de uniformidade entre os diversos períodos de
atividade martinista é geográfico: todos ocorreram em território francês,
França que, à época do trabalho de Papus e Guaita era o centro cultural do
mundo.
Poder-se-ia, maldosamente, dizer que a força do Martinismo
tem a ver com a ação de um Imperator francês. Isto seria, entretanto, uma
inverdade, já que quem captou a TOM e a colocou dentro dos muros da AMORC foi
Spencer Lewis, nascido nos Estados Unidos, trabalho que seria continuado pelo
seu filho e conterrâneo, também americano. Portanto, quando Cristian Bernard
assume o cargo de Imperator, encontra a TOM já estruturada, e apenas continua o
trabalho dos Lewis, pai e filho, como se esperaria de um sucessor.
Tudo isso é compreensível, mas o que não se pode entender é
como é possível tentar fundir duas tradições tão diferentes em suas
características, uma universal e internacional, a outra eminentemente francesa;
uma feita de espiritualistas de todos os matizes religiosas enquanto a outra ligada
apenas ao cristianismo; uma com uma história de milênios; a outra com apenas três
séculos de existência.
Essas considerações fazem parte de uma reflexão baseada no
espírito rosacruciano da mais perfeita tolerância, dentro da mais perfeita
liberdade.
Rosacruzes são livres pensadores, e não devem nem podem,
enquanto rosacruzes, abdicar deste privilégio da sua afiliação.
Pensando com liberdade, questiono se uma ordem tão jovem e
tão pouco internacional seja capaz de influenciar uma tradição tão poderosa
como é a tradição rosacruz, modificação que começa com a alteração dos
conceitos, pouco a pouco, fenômeno ao qual estou atento e estimulo outros
fratres a também ficar.
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