Por Mario Sales
“Há uma
loja no sobrado
Onde
não há comerciante.
Há
trastes partidos na loja
Para
não serem consertados.
Tamborete,
marquesa, catre
Aqui
jogados em outro século,
Esquecidos
de humano corpo.
Selins,
caçambas, embornais,
Cangalhas
De uma
tropa que não trilha mais
Nenhuma
estrada do rio Doce.
A perna
de arame do avô
Baleado
na eleição da Câmara.
E uma
ocarina sem Pastor Fido
Que à
aranha não interessa tocar,
Enorme
aranha negra, proprietária
Da loja
fechada.”
“Depósito”,
de Carlos Drummond de Andrade,
In BOITEMPO
I, Ed. Record, 1992, 3ª edição
Não sou eu que darei testemunho daquilo que vai na alma de
todos os idosos.
Pelo menos para mim, que caminho a passos rápidos para lá, o
que mais me incomoda é o medo de que minha vida seja como um depósito desse de
Drummond.
Lembranças, resquícios de fatos já esquecidos, amontoados na
memória sem nenhuma função ou utilidade, guardados apenas pela aranha negra do
tédio.
Mais. Depósito que ninguém visita, que a ninguém interessa
visitar.
Talvez Fernando Pessoa tenha lidado melhor com o problema.
Já no inicio de A Tabacaria, ele vaticina:
“Não sou
nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.
Janelas do meu quarto,
Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é
(E se soubessem quem é, o que saberiam?)”
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.
Janelas do meu quarto,
Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é
(E se soubessem quem é, o que saberiam?)”
É como se assim aceitasse essa condição inevitável de ser
efêmero, transitório, passageiro, sem drama e sem apego, sem lamentos, mesmo
que a vida tenha se tornado um depósito de um sobrado, “sem comerciante”,
abandonado, cheio de lembranças inúteis.
Conheço muitas pessoas que se comportam mentalmente dessa
forma, tristes e desanimados. Como médico, às vezes diagnostico uma depressão,
tratável. Como ser humano, penso que pode ser uma decorrência inevitável do
tempo, mas muito mais da errônea impressão de que somos, de alguma forma,
especiais, ilusão que nos acompanha por toda a vida.
“Não sou nada, nunca serei nada”, diz o poeta com uma
entonação budista. É isto realmente que somos, apenas sombras que são
arrastadas pelo vento do tempo, involuntariamente.
Existem duas maneiras de lidar com essa situação.
Uma é sentir-se mal por que as coisas são assim.
Outra é entender que as coisas são assim, sempre foram
assim, e tudo bem.
Não há forma de conciliar estas posições.
Existem pessoas que se adaptam à finitude, mas a grande
maioria aposta suas cartas na remota e incorreta possibilidade da eternidade no
mesmo corpo, este corpo que despreza nossa vontade e contra ela, se desgasta,
envelhece, e pouco a pouco vai desaparecendo, como a fumaça que se espalha pelo
espaço.
Como envelhecer de maneira digna, sem angústia, sem receio
de desaparecer como se nunca tivesse existido?
Esta sempre foi uma aflição tipicamente humana, pois animal
nenhum pensa no futuro ou na morte.
Os animais, sábios, estão sempre no momento presente.
Não que não tenham memórias. Só que não são aprisionados por
elas.
Seus barcos estão sempre no mar, navegando e navegando,
sempre.
Humanos, ao contrário, sonham com um porto, anseiam por
jogar a ancora e parar. O movimento e o balanço constantes lhes causam enjôo.
Crêem que é possível a estabilidade e que a terra é firme.
Por isso, por causa de nossas crenças e de nossa educação,
que se superpõem aos nossos instintos e aos fatos, supomos a eternidade no
físico possível, mais que isso, desejável.
Dizemos que sabemos que as coisas não são assim, que é certo
que morreremos, mas nos comportamos como se assim não fosse. Somos confusos como
Aurora que em sua paixão por Títono, (filho de Laomedonte e irmão mais velho de
Príamo, rei de Tróia) pede a Zeus que conceda a ele, Títono, a imortalidade e
esquece de pedir também a juventude eterna. E assim Títono persiste, vivo, mas
entrando gradualmente numa decrepitude física cada vez maior.
O que queremos? Não existe, no corpo, estabilidade ou
duração infinita. Sabemos disso.
E porque desejamos a eternidade? Para que queremos ser
eternos? As vezes dizemos que precisamos mais tempo para aprender a viver
melhor, que quando aprendemos algo sobre a vida, já é hora de morrer. Que a
vida é aparentemente longa, mas que é insuficiente para que nos tornemos seres
humanos melhores.
Será verdade? Será que se tivéssemos mais tempo para nos
aperfeiçoarmos, nos aperfeiçoaríamos verdadeiramente? Ou a busca pela perfeição
seria deixada de lado em troca do deleite, da inação, da preguiça mental e
física?
Talvez exatamente porque temos um tempo determinado é que
sintamos o apelo da urgência em realizar mais, em amar mais e melhor, em dar
aqueles que nos cercam e com os quais nos encontramos na existência o que
tenhamos de mais perfeito.
Talvez perfeição seja exatamente isto, habilidade cada vez
maior de compartilhar o que pudermos e receber, na mesma moeda,
ininterruptamente, durante este aparentemente breve período de existência.
Talvez nos sintamos mais velhos porque olhamos apenas para
nosso próprio umbigo e não para a paisagem fora do trem em que viajamos. Todos
os que importam para nós estão no mesmo vagão, viajando junto conosco,
envelhecendo, juntos, forçados a esta solidariedade cronológica inevitável.
E como olhamos para eles aqui ao nosso lado, todos nos
parecem os mesmos, nem mais moços, nem mais velhos, apenas os mesmos, e
choraremos pela sua ausência quando chegarem a suas estações e descerem deste
trem. Aqueles que amamos não parecem envelhecer da mesma forma que aqueles com
os quais não temos um envolvimento afetivo tão intenso.
O amor torna eternos quem amamos, pelo menos enquanto
estiverem conosco. O vínculo que nos une nos sustenta e diminui a preocupação
com o futuro. O importante é que estamos juntos, fisicamente por um certo tempo,
mental e emocionalmente, aí sim, para sempre.
Não, não é de tempo que precisamos.
Precisamos é do amor e de alguém para amar, estas sim
condições de imortalização.
Precisamos amar, desesperadamente.
Só isto nos garantirá a permanência, não como uma memória,
mas como um sentimento, o mesmo sentimento que determina o momento de devoção
ao ser amado seja sempre presente.
Adorei. Também penso assim!
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