Multi pertransibunt et augebitur scientia (Muitos passarão, e o conhecimento aumentará).

sábado, 16 de fevereiro de 2019

O SEGREDO DA ETERNIDADE É O AMOR


Por Mario Sales




“Há uma loja no sobrado
Onde não há comerciante.
Há trastes partidos na loja
Para não serem consertados.
Tamborete, marquesa, catre
Aqui jogados em outro século,
Esquecidos de humano corpo.
Selins, caçambas, embornais,
Cangalhas
De uma tropa que não trilha mais
Nenhuma estrada do rio Doce.
A perna de arame do avô
Baleado na eleição da Câmara.
E uma ocarina sem Pastor Fido
Que à aranha não interessa tocar,
Enorme aranha negra, proprietária
Da loja fechada.”

“Depósito”, de Carlos Drummond de Andrade,
In BOITEMPO I, Ed. Record, 1992, 3ª edição

Não sou eu que darei testemunho daquilo que vai na alma de todos os idosos.
Pelo menos para mim, que caminho a passos rápidos para lá, o que mais me incomoda é o medo de que minha vida seja como um depósito desse de Drummond.
Lembranças, resquícios de fatos já esquecidos, amontoados na memória sem nenhuma função ou utilidade, guardados apenas pela aranha negra do tédio.
Mais. Depósito que ninguém visita, que a ninguém interessa visitar.
Talvez Fernando Pessoa tenha lidado melhor com o problema. Já no inicio de A Tabacaria, ele vaticina:
“Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.
Janelas do meu quarto,
Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é
(E se soubessem quem é, o que saberiam?)”

É como se assim aceitasse essa condição inevitável de ser efêmero, transitório, passageiro, sem drama e sem apego, sem lamentos, mesmo que a vida tenha se tornado um depósito de um sobrado, “sem comerciante”, abandonado, cheio de lembranças inúteis.
Conheço muitas pessoas que se comportam mentalmente dessa forma, tristes e desanimados. Como médico, às vezes diagnostico uma depressão, tratável. Como ser humano, penso que pode ser uma decorrência inevitável do tempo, mas muito mais da errônea impressão de que somos, de alguma forma, especiais, ilusão que nos acompanha por toda a vida.
“Não sou nada, nunca serei nada”, diz o poeta com uma entonação budista. É isto realmente que somos, apenas sombras que são arrastadas pelo vento do tempo, involuntariamente.
Existem duas maneiras de lidar com essa situação.
Uma é sentir-se mal por que as coisas são assim.
Outra é entender que as coisas são assim, sempre foram assim, e tudo bem.
Não há forma de conciliar estas posições.
Existem pessoas que se adaptam à finitude, mas a grande maioria aposta suas cartas na remota e incorreta possibilidade da eternidade no mesmo corpo, este corpo que despreza nossa vontade e contra ela, se desgasta, envelhece, e pouco a pouco vai desaparecendo, como a fumaça que se espalha pelo espaço.
Como envelhecer de maneira digna, sem angústia, sem receio de desaparecer como se nunca tivesse existido?
Esta sempre foi uma aflição tipicamente humana, pois animal nenhum pensa no futuro ou na morte.
Os animais, sábios, estão sempre no momento presente.
Não que não tenham memórias. Só que não são aprisionados por elas.
Seus barcos estão sempre no mar, navegando e navegando, sempre.
Humanos, ao contrário, sonham com um porto, anseiam por jogar a ancora e parar. O movimento e o balanço constantes lhes causam enjôo. Crêem que é possível a estabilidade e que a terra é firme.
Por isso, por causa de nossas crenças e de nossa educação, que se superpõem aos nossos instintos e aos fatos, supomos a eternidade no físico possível, mais que isso, desejável.
Dizemos que sabemos que as coisas não são assim, que é certo que morreremos, mas nos comportamos como se assim não fosse. Somos confusos como Aurora que em sua paixão por Títono, (filho de Laomedonte e irmão mais velho de Príamo, rei de Tróia) pede a Zeus que conceda a ele, Títono, a imortalidade e esquece de pedir também a juventude eterna. E assim Títono persiste, vivo, mas entrando gradualmente numa decrepitude física cada vez maior.
O que queremos? Não existe, no corpo, estabilidade ou duração infinita. Sabemos disso.
E porque desejamos a eternidade? Para que queremos ser eternos? As vezes dizemos que precisamos mais tempo para aprender a viver melhor, que quando aprendemos algo sobre a vida, já é hora de morrer. Que a vida é aparentemente longa, mas que é insuficiente para que nos tornemos seres humanos melhores.
Será verdade? Será que se tivéssemos mais tempo para nos aperfeiçoarmos, nos aperfeiçoaríamos verdadeiramente? Ou a busca pela perfeição seria deixada de lado em troca do deleite, da inação, da preguiça mental e física?
Talvez exatamente porque temos um tempo determinado é que sintamos o apelo da urgência em realizar mais, em amar mais e melhor, em dar aqueles que nos cercam e com os quais nos encontramos na existência o que tenhamos de mais perfeito.
Talvez perfeição seja exatamente isto, habilidade cada vez maior de compartilhar o que pudermos e receber, na mesma moeda, ininterruptamente, durante este aparentemente breve período de existência.
Talvez nos sintamos mais velhos porque olhamos apenas para nosso próprio umbigo e não para a paisagem fora do trem em que viajamos. Todos os que importam para nós estão no mesmo vagão, viajando junto conosco, envelhecendo, juntos, forçados a esta solidariedade cronológica inevitável.
E como olhamos para eles aqui ao nosso lado, todos nos parecem os mesmos, nem mais moços, nem mais velhos, apenas os mesmos, e choraremos pela sua ausência quando chegarem a suas estações e descerem deste trem. Aqueles que amamos não parecem envelhecer da mesma forma que aqueles com os quais não temos um envolvimento afetivo tão intenso.
O amor torna eternos quem amamos, pelo menos enquanto estiverem conosco. O vínculo que nos une nos sustenta e diminui a preocupação com o futuro. O importante é que estamos juntos, fisicamente por um certo tempo, mental e emocionalmente, aí sim, para sempre.
Não, não é de tempo que precisamos.
Precisamos é do amor e de alguém para amar, estas sim condições de imortalização.
Precisamos amar, desesperadamente.
Só isto nos garantirá a permanência, não como uma memória, mas como um sentimento, o mesmo sentimento que determina o momento de devoção ao ser amado seja sempre presente.

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