Multi pertransibunt et augebitur scientia (Muitos passarão, e o conhecimento aumentará).

segunda-feira, 14 de janeiro de 2019

DAS PERCEPÇÕES


por Mario Sales



Daqui a pouco irei para casa. O expediente aqui no posto se encerrará em 20 minutos.
Parado na porta, observo a rua à minha frente.
O casario, lado a lado, à perder de vista, à direita e à esquerda.
Casas sem acabamento, dois, às vezes três andares, construídos, percebe-se, sem nenhum rigor arquitetônico.
Apenas tijolos, um ao lado do outro, um em cima do outro, sem reboco.
Uma construção assim, tosca, mal-acabada, intensifica a sensação de materialidade das coisas, de solidez, de densidade.
Aqui parado, sem ter mais o que fazer senão esperar a hora de ir embora, contemplo esta solidez e reflito sobre meus ensinamentos de iniciado.
Somos doutrinados desde os graus mais iniciais, a não acreditar nesta aparente concretude.
O iniciado não pode crer, dizem nossos orientadores, nossos autores, no que enxerga a sua frente. A realidade, eles dizem, é plástica e tanto a mente se adapta ao que vê, como o que é visto se adapta ao observador.
Todas, absolutamente todas as escolas esotéricas afirmam esta instabilidade oculta naquilo que nos parece mais denso, mais estável: a realidade a nossa frente.
É difícil entender, ou melhor aceitar, que essas construções toscas, mal-acabadas, mas de aspecto por isso mesmo extremamente sólidos, sejam apenas projeções tridimensionais de nossa mente, e que além disso esta mesma mente participe destas projeções, fornecendo aspectos ao que vemos e não apenas vendo o que é visto.
Captamos e irradiamos, dizem os esoteristas, ao mesmo tempo, o que nos cerca, até nosso próprio corpo. É como se fossemos construindo com nosso olhar, no momento mesmo que olhamos, aquilo que contemplamos.
Algo difícil de aceitar. Muito difícil. Principalmente por que o iniciado é apenas um iniciado, não um iluminado, e o fato de saber que as coisas são assim não significa que ele consiga experienciar esta instabilidade perceptiva. 
Não. 
Para mim estas casas, essa rua, tudo que vejo a minha frente parece sim, extremamente sólido. 
O iniciado é apenas uma pessoa comum com crenças no mínimo exóticas acerca das coisas e do real. A diferença é que aquilo que ele crê, para ele, é um fato a ser percebido desde que sua mente se modifique, desde que sua percepção se aperfeiçoe. Neste momento, deixarão de ser crenças e passarão a ser fatos. O mundo inteiro a sua volta será apenas aquilo que sua imaginação decidir.
Eu não sou um iluminado, só um iniciado. 
Olho para as casas e digo para mim mesmo: “Estas casas não são sólidas, apenas parecem sólidas.”, mas isto não é suficiente para que o que está a minha frente se modifique, se metamorfoseie em outras paisagens, em realidades absolutamente diferentes, novas. 
Vejo a minha frente coisas que me parecem sólidas, embora saiba que não são.
Não falo estas coisas em voz alta. São assuntos delicados, que não podem ser discutidos com qualquer pessoa, em qualquer lugar. Assuntos de iniciados. 
Para que a magia da transformação se realize, entretanto, mais do que uma crença é necessária. Precisa-se de uma alteração neurológica, e de preparo psiquiátrico para lidar com realidades incomumente instáveis, em ebulição permanente.



E mesmo sussurrando da nossa boca para nosso ouvido, ainda resta a dúvida. Os fatos realmente parecem desmentir tudo que o ensinamento iniciático nos diz.
“Bata a cabeça em uma dessas paredes e sua cabeça sangrará!” diz o cético.
Fato. Quem pode desmenti-lo?
Porque cremos, nós iniciados nestas afirmações estranhas, esdrúxulas, que a realidade como percebida, desmente?
Eu mesmo não sei. Só me lembro de um argumento de Rousseau, que dizia que embora eu não tivesse provas de alguma coisa, se todo o seu ser gritasse que esta coisa era real, deveríamos prestar atenção a este grito.
Ah o Humanismo, esse hábito de pensar que o subjetivo prova o objetivo. Essa postura não se sustenta. 
Os fatos são os fatos, dizem de maneira coerente os homens que não estão doentes da metafisica, como lembrava o poeta português.[1]
Mas o que faz um iniciado? Olha para as coisas com um olhar educado para duvidar da aparente solidez de tudo. Embora todos os argumentos sejam contra esta compreensão, algo dentro dele grita que são apenas aparências, imagens, nada mais.
Ele, iniciado, não tem provas do que sente, mas sente. 
Como uma cólica de rim, que é real, perceptível, mas não demonstrável.
Aceita-se que eu tenho dor por que se crê na minha máscara facial de dor. Ninguém sente a dor que sinto.
É algo pessoal e intransferível. A dor é nossa e de mais ninguém.
Da mesma maneira a sensação de estranheza ao aparentemente estável, ao aparentemente sólido, é uma sensação pessoal, improvável a terceiros, mas não importa. 
Como a cólica renal, não posso simplesmente negar-me a sentir o que sinto. Minha dor e minhas crenças são impossíveis de desprezar, elas me mobilizam, impõem suas presenças. Embora eu as esconda, elas estão lá.
E então como Magritte, olho para o Ovo e vejo o Pássaro.



Mas se a realidade é a realidade de cada um, se ela é como dizem os esoteristas tão plástica, porque todos temos uma impressão de ambiente comum? Por que vemos, ao mesmo tempo, pelo menos aparentemente, a mesma realidade?
Talvez o que vejamos não seja uma realidade, mas a resultante de várias realidades, a síntese possível de várias maneiras de imaginar o mundo.
Como os aros de uma bicicleta que convergem todos para o centro da roda e são cada um, de uma posição diferente.
Todos vemos um único centro de roda, mas a roda não é apenas seu centro. Na verdade, na roda, aros, centro e o círculo que sustentam são uma única experiência, um único instrumento, cujas peculiaridades e particularidades desaparecem com o rodar da roda.
A roda não é homogênea. Muitas são suas partes e divisões. 
Apenas o movimento, o seu fluir no tempo, lhe dá um aspecto de unicidade. É, da mesma forma, o nosso tempo que nos une e nos dá a sensação abstrata do mesmo.
O tempo nos une. E impregna nossa percepção. 
Pensamos em passado e futuro, mas só existe o presente eterno.
Sempre é presente, e mesmo o passado é vivenciado no presente. É o passado possível no presente que temos.
Vemos, da mesma forma, o que podemos ver. 
Vemos o que é possível ver, dentro de nossas capacidades de percepção.
Não existe um mundo lá fora. Existe aquilo que podemos enxergar.
Se vemos tristeza e conflitos, eles estão lá.
Se vemos serenidade, calma, elas estão lá.
Uma percepção não é menos “real” que a outra.
São vivências intimas. Nossas percepções são reflexos de nossas concepções. Nada mais.
A estabilidade é uma falácia.
Nada é o que parece e essas casas a minha frente também não são.
Este bairro é apenas uma imagem, uma concepção, que desaparecerá da minha frente quando sair de dentro da minha mente. Não sou o que vejo; vejo aquilo que sou, aquilo que creio.
Nada disso posso demonstrar, como não posso demonstrar uma cólica renal. As pessoas crêem nas minhas informações sobre a minha dor porque tudo indica que estou sendo absolutamente honesto, e meu sofrimento é indiscutível.
Sinto o mesmo em relação a esta estranha forma de descrever o “real”. É uma sensação extremamente forte e real, mas sou incapaz de fazer com que outro sinta o que eu sinto, que creia no que creio.
É uma experiência intransferível. Como a dor.
As casas deste bairro para mim parecem sólidas. O bairro todo parece bem sólido. E tudo em mim diz que não é.
Só uma de muitas ilusões que nos acompanham ao longo de muitas encarnações.
Afinal o que é “real”?




[1] “Há metafísica bastante em não pensar em nada. O que penso eu do mundo? Sei lá o que penso do mundo! Se eu adoecesse pensaria nisso. Que ideia tenho eu das cousas? Que opinião tenho sobre Deus e a alma E sobre a criação do mundo? Não sei. Para mim pensar nisso é fechar os olhos E não pensar. É correr as cortinas Da minha janela (mas ela não tem cortinas)” Fonte: https://www.mundovestibular.com.br/articles/617/2/POEMAS-COMPLETOS---Alberto-Caeiro-Heteronimo-de-Fernando-Pessoa-Resumo/Paacutegina2.html

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