Por Mario Sales
Gosto muito do estilo das crônicas de Inácio de Loyola Brandão
no Estado de São Paulo, pela simplicidade e tranquilidade com que descreve coisas,
épocas e pessoas. Como sempre digo, o bom escritor é um bom descritor. Embora
não tenhamos um passado semelhante, reconheço em suas recordações algumas
imagens comuns. Hoje, no seu texto semanal, ele fala dos mitos que nos cercaram
na infância.
“Ler e comer ao mesmo tempo faz mal”, dizia sua mãe.
E a minha também.
Ele compara esse mito àquele do perigo de envenenamento se misturássemos leite com manga, também uma memória comum, tanto aqui em São Paulo
como era no Rio de Janeiro.
Loyola argumenta com
perspicácia que, pior que comer e ler ao mesmo tempo, deve ser comer e digitar
mensagens no iPhone e não há, que se saiba, relatos de mortes frequentes por
causa dessa prática amplamente difundida.
Mitos são assim. Às vezes desaparecem com a mesma rapidez
com que surgiram. Se não fossem os guardiões da memória, os narradores-escritores, nem saberíamos que um dia tivessem existido.
O problema, entretanto, não está no mito, mas na sua natureza.
O mito do mal que faz ler e comer, em si não expressa
nenhuma restrição que não possa ser quebrada ou um perigo para quem nele crê ou
não crê.
O que assusta é quando uma parcela da sociedade e não uma
parcela carente, mas com uma vida material confortável, que teoricamente têm acesso a informação de qualidade, começa a difundir mitos
como aquele que diz que a Terra é plana ou que vacinas são perigosos para
crianças.
Isso me assusta.
Pode-se rir da ideia da Terra plana a esta altura da
história da ciência e da civilização, mas não se pode rir do fato de que alguém
esteja disposto a aceitar tal disparate como verdadeiro. Carl Sagan alertava
desta bomba relógio que estávamos montando, aquela que combina tecnologia
avançada com ignorância e preconceito.
E isso porque o ser humano hodierno não entende o que a ciência faz. Só que o fato de a maioria das pessoas serem incapazes
de acompanhar o que a ciência faz é culpa da própria comunidade científica,
que jamais fez um esforço como o de Sagan, para traduzir os feitos científicos
em linguagem compreensível para a sociedade leiga, nem preocupou-se em explicar para os
não iniciados o que estava estudando.
Como narciso e sua imagem no espelho, cientistas em geral
falam de ciência para outros cientistas e não para as pessoas que, em última análise, são as mesmas cujas vidas serão modificadas de modo dramático por este trabalho
científico e pelos avanços tecnológicos.
Sem esse esforço fundamental de alfabetização em ciência que
Sagan iniciou com a série para a televisão “Cosmos” (trabalho que hoje é
continuado pelo diretor do museu de história natural americano, o físico Neil Degrasse Tyson , nos EUA, e aqui no Brasil por outro físico, Marcelo Gleiser) não
teremos como evitar que ideias descabidas e fantasiosas além de perigosas,
ganhem força.
Todo terreno abandonado está sujeito a invasão.
Mentes vazias de informações confiáveis tendem a ser
ocupadas com informações não fundamentadas, às vezes completamente absurdas
como essa história do leite com manga, ao mesmo tempo que rejeitam fatos
consolidados, comprovados.
Por exemplo, repassei em minha linha do tempo do Facebook
recentemente uma informação antiga, de 20.11.17, sobre o interessante trabalho
de pesquisadores da Universidade Federal de Minas Gerais, no qual foi elaborada
uma substância cuja molécula é capaz de se ligar com a molécula da cocaína,
tornando-a identificável pelo sistema imunológico do indivíduo. Uma vacina
contra o vício.
Não costumo repassar notícias descabidas, mas mesmo assim uma
amiga, com formação universitária, ao ver o post ironizou, insinuando que se
tratava de uma notícia falsa.
O que me espanta é que trata-se de uma profissional de saúde,
em princípio capaz de pensamento científico crítico, perfeitamente habilitada a
buscar a confirmação da notícia que lhe parecia tão inverossímil. Alguns
cliques e ela chegaria a fonte da notícia, o site de uma grande empresa
jornalismo e lá, a matéria estaria mais aprofundada e seria fácil confirmar sua
veracidade.
Não, nada disso.
Preferiu desdenhar de uma notícia séria apenas por preguiça
mental. Este é outro lado dessa perigosa moeda. Estas pessoas não acreditam,
apenas, em coisas absurdas; além disto, também duvidam de fatos reais,
como minha amiga fez com uma simples notícia de um trabalho científico em
andamento em uma universidade brasileira.
Como muitos que me lêem devem saber, muitas pessoas duvidam
que o homem tenha pisado na Lua, acreditando que tudo não passou de uma
encenação de estúdio. Duvidam da ciência e do conhecimento científico consolidado
ao longo dos anos e ao mesmo tempo acreditam em fantasias descabidas, como a absurda
ideia da Terra plana.
São sintomas de um perigoso obscurantismo que ronda tudo de
bom e útil que a ciência produziu nos últimos anos, nas últimas décadas.
A profecia de Sagan aos poucos vai se materializando e me
parece que se quisermos reverter essa tendência nefasta teríamos que investir
pesadamente no trabalho de alfabetização científica da sociedade, no esforço de
resgatar as pessoas em geral das garras da ignorância.
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