Multi pertransibunt et augebitur scientia (Muitos passarão, e o conhecimento aumentará).

domingo, 13 de janeiro de 2019

TEMPO, TEXTO E TERNURA






Por Mario Sales

“Sentados à soleira tomam sol
Velhos negociantes sem fregueses.
É um sol para eles: mitigado,
Sem pressa de queimar. O sol dos velhos.
Não entra mais ninguém na loja escura
Ou se entra não compra. É tudo caro
Ou as mercadorias se esqueceram
De mostrar-se. Os velhos negociantes
Já não querem vende-las? Uma aranha
Começa a tecelar sobre o relógio
De parede. E o sagrado pó nas prateleiras. (...)”

“Tempo ao Sol”, de Carlos Drummond de Andrade,
in Boitempo II, Ed Record,1986

Estou aqui sentado, tentando escrever e recuperar o tempo perdido no silêncio e na inação literária. Mas as idéias (ah! As idéias) não estão muito comovidas com meu esforço. Trata-se de um jogo.
Escondem-se de mim na floresta da mente, rindo, zombando da minha falta de assunto.
Ouço suas risadas por trás dos meus neurônios, mas não as vejo.
São idéias em fuga lúdica, divertindo-se em me ludibriar, por 10, 20 ou 60 minutos que sejam.
São impiedosas como crianças. Parecem mesmo ter prazer em ocultar-se, como em uma brincadeira infantil.
Súbito, um vislumbre: são idéias infantis, portanto, sem importância para reflexões adultas e profundas.
Já sei como ganhar este jogo. Basta jogar a toalha, desistir de caçá-las, largar a mão de tentar achar quem não quer ser encontrado.
Melhor esforço é ficar aqui, calmo, nesse domingo de sol e tranquilidade embora, às vezes, esse mesmo sol me lembre o sol da citação em epígrafe.
Não é a idade, no poema, que me incomoda, mas a falta de “fregueses”, a carência de interesse de outros no que temos para vender.
De repente percebi que, como com as idéias, ando perseguindo afetos e mendigando atenção de “fregueses” desinteressados.
Não sei de onde vem essa minha carência tão intensa que me faz ser gentil e solícito até com estranhos, talvez na esperança de receber algum gesto inesperado de carinho, um sorriso, um abraço.
Pensei que com a maturidade tivesse superado esta sequela da infância de precisar ver outras pessoas, encontros que sustentam meu humor, que me obrigam a dizer coisas espirituosas ou discutir tolices para provocar risadas; ou falar sobre assuntos sérios e profundos, essas conversas que ajudam a “matar o tempo” que se arrasta, e que a imagem da aranha que faz a teia no relógio, no poema de Drummond, descreve assustadoramente tão bem.
Meu tempo, às vezes, tem semelhanças com essa imagem.
A mesma rotina que me dá uma vida equilibrada, me aterroriza com alguns sinais do tédio, do vazio de intenções e desafios.
Como os velhos comerciantes do poema, nesses inquietantes momentos, quietos demais, ninguém entra ou mesmo quer entrar na loja do meu espírito; ninguém se interessa pela minha “mercadoria” especulativa.
Nesses momentos sou desnecessário, inútil, obsoleto.
Aqueles que “compram” alguma coisa, compram aquilo que gostam quando vêem.
Nos dias de calma excessiva, com o tédio a espreita, cresce meu receio de não ter atrativos para os que me cercam, de não ter mais nada interessante para vender, para oferecer àqueles que me procuram ou que encontro pela vida.
Se estas sensações são ilusórias ou não, nestes momentos, não discuto. Não importa se essas percepções correspondem ou não à realidade.
Procuro apenas descrever essas inoportunas sensações que chegam sem convite à minha mente, e como essas visitas indesejadas, invasivas, me atormentam com comportamentos piegas e pensamentos tristonhos.
Alguém talvez classificasse essas considerações como ridículas, o que me lembra um outro poeta, Fernando Pessoa, que decretava que “todas as cartas de amor são ridículas”. Porque não são apenas as cartas de amor, mas também nós que as escrevemos somos ridículos.
A começar por esses chistes, esses atos falhos que escapam de nosso inconsciente como pensamentos incômodos e lamurientos.
São como malas que esquecemos nos armários e que reencontramos cheias de mofo pelo desuso, mas estão lá, ocultas por outras coisas. São idéias e emoções que denunciam nossa fragilidade psicológica e afetiva sempre de um modo perturbador. E mesmo assim, tais idéias insistem em desfilar pela mente nos momentos mais tranquilos, nos quais nos permitimos uma sinceridade maior em nossas reflexões, uma honestidade incomum no nosso cotidiano.
Nesses instantes percebemos que por trás das personas, por trás das máscaras, como as do teatro grego, os atores são apenas crianças assustadas com o medo do abandono, físico ou psicológico.
Talvez a idade nos remeta à infância por ser uma época de fragilidade semelhante, onde a necessidade da ajuda de terceiros volta a se manifestar. Bebês e velhos precisam ambos do mesmo tipo de carinho, do mesmo tipo de atenção, às vezes do mesmo cuidado físico.
E isso nos expõe, nos desarma.
Nossas antigas fragilidades retornam como fantasmas nos assombrando como a aranha sobre o relógio, lembrando que até o tempo está velho e que a teia do tédio começa a envolver nosso tempo, nossas horas.
É verdade que todas essas reflexões adultas e profundas podem não passar de meras tolices e delírios de um domingo quieto. Mesmo assim são as minhas tolices, moram em mim, e por mais que eu as esconda com discursos racionais e um comportamento social adequado estão lá, à espreita, junto com a nossa ridícula condição humana.
Se são idéias ridículas são exatamente o que deveriam ser, já que os sentimentos mais profundos em nós são sempre ridículos.
No fundo, bem no fundo, ainda precisamos como crianças, do prazer de quaisquer gestos de ternura, que salte por cima das defesas do Ego e nos atinja a face em cheio.
Um beijo, um alisar de cabelos, um olhar mais amoroso. Todas essas coisas quando percebidas no outro, nos enche de bem estar, relembrando a época em que coisas assim eram grande parte de nossos dias.
A verdadeira solidão não é estar só, mas a ausência de carinho, não só com palavras, mas principalmente com gestos.
Se todas essas linhas são apenas desvarios ridículos de domingo não importa. Pelo menos agora são um texto. O invisível tornou-se visível.
O interessante é que a fuga das idéias foi inspiradora.
O resto não tem nenhuma importância.

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