Por Mario Sales
“...porque os costumes são tão
coercitivos quanto as leis...”
Roberto da Mata, antropólogo,
na sua coluna do
Estado de São Paulo,
16 de janeiro de 2019
Eu tenho dificuldade de convencer as pessoas de que não
existe tal coisa como o chamado “livre-arbítrio”.
Embora seja um conceito teórico proposto pela primeira vez
por Santo Agostinho em um livro do mesmo nome, a idéia está tão entranhada na
formação humana que para alguns é como a lei da gravidade. Na verdade, parte de
seu sucesso ao longo dos séculos vem do fato de ser um axioma agradável ao
narcisismo humano, que precisava afirmar-se diante de outras forças, divinas e
metafísicas, que por muito tempo trouxe dúvidas e receios aos homens comuns.
Por isso uma tese que propõe que temos a capacidade de decidir, livres de
qualquer influência, nosso destino, foi aceita de imediato e elevada à condição
de lei.
De tal forma que hoje, para muitos, é difícil e às vezes
impossível aceitar que em nossos arbítrios, nossas escolhas, não existe e nunca
existiu qualquer tipo de liberdade. Nesse mesmo espaço já falei dos três
filtros das ações humanas, as três forças determinantes do nosso comportamento,
porém não custa repetir.
Primeiro: em uma fase mais primitiva da humanidade, os
instintos determinavam nossas ações. Guiados pelo primeiro deles, a autopreservação,
os homens individualmente, e depois nas maltas, os primeiros grupos humanos que
se reuniam apenas para caçar, centravam sua existência em cinco condições
primárias, contra as quais não podiam se rebelar já que delas dependia suas
próprias vidas. Eram os cinco As que até hoje carregamos conosco: ar, água,
alimento, abrigo, afeto (inicialmente como desejo sexual).
Não importa em que região do planeta estivessem, seus atos
eram guiados por estes parâmetros irrecusáveis, ditatoriais. Quantos conflitos
ou mesmo batalhas foram travadas apenas para conseguir realizar estes cinco
comandos biológicos.
Depois, muito depois, a estes instintos que até hoje
comandam nosso comportamento, veio somar-se a lei, um conjunto de regras de comportamentos
e costumes que organizava a vida na sociedade.
A lei substituiu a vontade individual e o conflito entre as
partes passou a ser limitado por ela.
Quem julga, limita a ação dos que estão em julgamento, como
no célebre caso de Salomão, descrito no livro de Reis 1, no capítulo 3,
versículos 16 a 28, aonde ele julga a disputa de duas mulheres por um bebê que
ambas alegavam ser seu filho legitimo. Salomão, como se sabe, sugere para
resolver a questão, dividir com uma espada a criança em duas partes e dar
metade dele a cada uma.
Uma delas aceitou. A outra absolutamente não concordou e
para salvar a vida da criança, abdicou de sua reinvindicação. Assim Salomão descobriu
que esta era a verdadeira mãe e a ela deu a criança.
A lei funcionou, estabeleceu justiça na solução do conflito
e limitou a ação da impostora, tirando-lhe a liberdade de enganar. Até hoje é
isso que a lei faz, criando regras que limitam as ações de homens e mulheres na
sociedade.
Não há liberdade para matar outro homem impunemente ou para um
homem forçar uma mulher a relacionar-se sexualmente contra a sua vontade, como
nos tempos das cavernas. Não há liberdade nem para atravessar um cruzamento sem
respeitar o internacional sinal vermelho.
E então, estas duas
restrições e determinantes do comportamento humano vem se juntar uma terceira e
decisiva força, a consciência, a formação educacional ética, que nos obriga a
seguir um código de conduta, a fazer somente aquilo que nossos valores morais
permitam, valores estes que determinarão nossas escolhas, nossas opções diante
de dois caminhos. Usa-se mesmo a expressão “fazer o certo e não o fácil” para
evidenciar que este código de conduta pessoal dirige nossas ações, mesmo
considerando o alerta de Nietzsche quanto
a relatividade dos valores morais, que mudam de época para época, de país para
país, mas que determinam nossa atitude sempre que há um conflito entre nossos
interesses pessoais e os interesses de outros ou da sociedade.
Não bastassem esses poderosos inibidores da chamada liberdade
do homem ao fazer suas escolhas, esses fatores às vezes competem entre eles
mesmos.
A consciência moral impede que as todas as vontades do
instinto sejam satisfeitas sem controle, restrição fundamental a vida em
comunidade.
E a Lei às vezes vai contra nossa consciência como no caso
da escravidão aceita pela lei e combatida por alguns que viam o absurdo dessa
prática, mesmo em uma época em que era uma prática social comum.
Ser legal não significa ser correto, da mesma maneira que
por vezes a atitude mais correta não é uma atitude legal.
E mesmo o instinto de busca de afeto, que garante a
sobrevivência de nossa espécie e seu crescimento pela reprodução, mesmo este
desejo legítimo do corpo precisa ser reprimido de acordo com o contexto social
mais adequado.
Podemos desejar e desejamos pessoas com as quais jamais
consumaremos qualquer relacionamento, porque as coisas não se resumem mais a um
ato de violência sobre outro ser humano contra a sua vontade para satisfazermos
nossos próprios desejos.
O instinto insiste em um desejo que a cabeça negocia e julga
se é viável ou não. E como o desejo é instintivo, não desejamos quem queremos
desejar, mas sim aqueles que somos levados a desejar por características as
mais variadas que incluem o cheiro, o tom de voz, o modo de caminhar, e claro,
sua beleza física.
Nem nosso desejo sexual é livre pois obedece ao corpo e não
a mente.
Hoje em dia, isto não quer dizer que este desejo será
satisfeito e muitas vezes será relegado a área da imaginação, à fantasia, que
dará vida na mente àquilo que não pode ser vivenciado no corpo. Assim nascem os
problemas, segundo a psicanálise.
Fantasias não realizadas transformam-se em sonhos para
alguns e pesadelos para outros, fantasmas que nos assombram dia e noite, em
momentos de ócio mental.
A fantasia, esta sim é livre.
E mais uma vez não temos como evita-la.
Ela invade nossa mente em pedir permissão, sem pedir
licença, e nos traz, via de regra, imagens não compartilháveis, secretas,
pessoais, seja para nosso deleite ou sofrimento.
Contemplemos essa disputa das forças que nos determinam com
humildade e compreensão.
Fazemos o que queremos quando podemos e não quando queremos.
Não temos nenhuma liberdade para escolher aquilo que realmente desejamos.
Essa sim é a verdadeira lei das escolhas.
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