Por Mario Sales
"Senhor, a obra fica e o homem passa.
Mas a obra é o homem. Só estas canções
no fundo incerto e oceânico da raça..."
Fernando Pessoa, "Ao infante", poema de 1921
in Poesia 1918-1930, 2007, Companhia das Letras
Que objetivo temos para nossos próximos dez anos?
Quais são nossas expectativas de mudança e de transformação
pessoal?
Não me refiro ao corpo. Este, caminha célere e resoluto para
a decrepitude e depois de alguns anos, para a cessação definitiva de atividades.
Refiro-me ao nosso espírito imortal, a verdadeira razão de
estarmos neste corpo.
Digo isso porque não percebo mudanças entusiasmantes em
minha própria personalidade; não noto que as inseguranças da adolescência tenham
todas se dissipado com o passar dos anos.
Olhando para mim mesmo vejo ainda transformações inexpressivas.
Ouço dos que estão fora de mim críticas positivas e
negativas. Meus defeitos, confesso, são mais fáceis de constatar.
Quanto às qualidades, considerando as experiências que
atravessei e o tempo que duraram, poderiam ter deixado em mim traços de
sabedoria mais significativos na minha modesta opinião, um pouco mais de
serenidade em minha personalidade que, com sinceridade não percebo.
Só o tédio e a fadiga me fizeram errar menos, não a
consciência. Ainda me vejo tomado de desejos e insatisfações que possuía na
juventude.
É bem verdade que algumas coisas, poucas, se modificaram,
mas reputo como irrisórias estas mudanças, mesmo que significativas.
Talvez a transformação mais importante tenha sido a
diminuição do meu orgulho, diante das limitações que esta encarnação e suas
peculiaridades determinaram. Minhas limitações intelectuais e físicas me
fizeram muito mais humilde, menos vaidoso.
Isso, em si, já foi um progresso.
Repito: mudanças ocorreram, mas não sou capaz de classifica-las
como importantes.
O que é uma pena porque, se o tempo é como diz Mario Quintana
(pisca-se os olhos e passaram 50 anos) mesmo assim tive tempo suficiente para
me aprimorar mais, espiritualmente ou em alguma habilidade que me trouxesse
gratificação.
No fim das contas, por óbvia e evidente, esqueci de uma
capacidade que se aperfeiçoou, sim, ao longo destas décadas. Falo da própria
capacidade de escrever, com mais leveza, clareza, conforto.
Lembro alguns anos atrás a luta com os textos, o conflito de
imagens e conceitos. Hoje, meu texto flui mais fácil, já que não procuro mais
descrever objetos demasiado metafísicos e acho que, por isso mesmo, minha
escrita é mais fácil e gratificante.
O ensinamento de tantos grandes escritores, entre eles o
saudoso Jorge Amado, de que para ser universal, devemos escrever sobre nosso
próprio quintal, foi, por mim, finalmente absorvido.
Hoje sei que falar dessa sala em que estou, do jeito como a
luz do sol entra pela janela, dos objetos diante de mim, os papéis, o
ventilador e seu som monótono, característico, tocam mais a alma e a imaginação
de quem lê do que se eu discutisse o sexo dos anjos. Talvez por isso, textos de
caráter naturalista, eróticos e violentos prendam tanto a atenção dos leitores
e sejam sucessos de vendas.
Reflexões sobre coisas sutis não são nem podem ser
consideradas apaixonantes.
A sensibilidade humana é, de certa forma, rude e primitiva,
e responde mais intensamente a imagens mais concretas e mundanas. A descrição
de seduções românticas e lutas corporais são absorvidas com rapidez e
facilidade.
Isso, de modo geral.
É bem verdade que existem alguns sucessos literários que
falam da busca pela perfeição espiritual ou pelo menos, por um equilíbrio
psicológico mais sólido.
Nesse quesito podemos incluir a trilogia de Herman Hesse
(Sidarta, Demian e o Lobo da Estepe); os livros de Kalil Gibran, principalmente
“O Profeta”; e mais recentemente os dois primeiros livros de Richard Bach, duas
indiscutíveis obras primas, “Fernão Capelo Gaivota” e “Ilusões”.
Recentemente, um brasileiro entrou no grupo de livros de
caráter mais reflexivo muito bem-sucedidos comercialmente, um trabalho
criticado mais por inveja e despeito do que por ter reais defeitos. É a
história simples de um buscador no ambiente do deserto do oriente médio, que
sai a procura de um tesouro, metáfora para sabedoria, passando por várias
situações e locais.
O autor, pasmem, foi acusado de ter feito um texto demasiado
simples, e alguns mesmo, mais agressivos, chegaram a falar de “literatura
medíocre”.
Só que este livrinho despretensioso foi traduzido para
dezenas de línguas e vendeu milhões de cópias.
Claro, refiro-me, já devem ter percebido, ao livro de Paulo
Coelho, “O Alquimista”.
Escrito em 1988, tornou-se o livro brasileiro mais traduzido
do mundo, com 70 traduções, vendendo em torno de 150 milhões de cópias.
Pelo Livro Guiness de Recordes, é o livro mais vendido da
história por um autor ainda vivo.
O texto narra a saga de Santiago, um pastor que tem um sonhe
recorrente, o que o leva a procurar uma vidente.
Esta interpreta o sonho como uma profecia de um tesouro no
Egito, que deverá ser descoberto por ele, por causa do qual ele deverá realizar
uma longa viagem de busca.
Santiago parte, e logo no inicio de sua jornada encontra
outro personagem, com o sugestivo nome de Melquisedeque, que o introduz ao conceito
de “Lenda Pessoal” expressão que representa a descoberta daquilo que sempre
quisemos realizar e que é na verdade a realização de nosso verdadeiro objetivo na
vida.
Santiago vai agora, não só em busca do “tesouro” profetizado
pela vidente, mas também de sua própria “Lenda”, marcado pela afirmação de
Melquisedeque de que “quando você quer algo, todo o Universo conspira para ajudá-lo
a alcançar seu objetivo”.
Com este enredo simples, Paulo Coelho produziu um magnífico
sucesso literário, lido por donas de casa e presidentes (é famosa a foto de
Bill Clinton, com seu livro nas mãos ao descer do avião presidencial), e
tornou-se ele mesmo seu próprio personagem, já que, a partir da publicação do “Alquimista”,
ele Paulo achou a sua própria Lenda Pessoal e viu todos os seus sonhos mais
banais se realizarem. Ou melhor, o que ele descreveu no texto, na sua
imaginação, tornou-se sua própria realidade o que configura, apenas isso, um
feito impressionante.
Existem outros sucessos literários que não recorrem ao tripé
sexo-violência-morte, e que focam nas modificações íntimas psicológicas que
todo ser humano deve atravessar.
Destaco a obra de J.K.Rollings, Hary Potter, que narra, de
modo extremamente feliz, através das peripécias de três bons amigos, a aventura
da adolescência, esse período mágico em que nos tornamos indivíduos.
Não é apenas o corpo, portanto, que incendeia nossa
imaginação. Existem outras abordagens possíveis, bem-sucedidas, o que nos mostra
que o narrador é mais importante do que a narrativa em si.
É quem conta a história que torna a história mais atraente e
interessante.
Em função disto, concluo que eu mesmo não encontrei ainda
minha Lenda Pessoal, e talvez seja isso que tem me incomodado, nos últimos
anos.
Aliás, como lembrava Maquiavel, fenômenos literários como os
descritos são uma combinação de “virtú e fortuna”, habilidade profissional, técnica,
e sorte.
Até o fenômeno de Paulo Coelho costumava-se dizer que
Machado de Assis não tinha sido reconhecido mundialmente porque não escrevia em
inglês. Esse argumento, embora tenha lá sua pertinência, não se sustenta mais.
Talvez, isso sim, o que falte aos escritores brasileiros e
de qualquer outro país, sejam temas realmente universais, que falem de
problemas atávicos da humanidade. Realização pessoal é o mais importante deles.
Nada é mais universal e comum a todas as pessoas do planeta,
estejam aonde estiverem, do que primeiro descobrir qual é seu verdadeiro
talento, seja ele qual for, e depois levá-lo a um alto grau de excelência.
Textos que discutam, de modo simbólico, este importante drama
humano sempre atrairão as mentes de todas as pessoas que vivem e respiram, que
dia após dia, às vezes, arrastam-se da manhã até a noite, em funções
profissionais para elas não gratificantes.
Não há maior tortura e sofrimento.
Todos nós, sem exceção, temos um papel relevante a
desempenhar no teatro da vida.
Descobrir que papel é esse e expressá-lo com plenitude é
nossa principal missão na existência.
E é dentro de nós mesmos que se escondem as chaves para
estas descobertas, essas respostas a verdadeiras questões fundamentais, que são
quem somos realmente e o que viemos fazer aqui.
A satisfação de se fazer o que se gosta é enorme, e aí,
chego à uma conclusão evidente: escrever é a minha vida. Escrever, escrever e
escrever.
Não sinto que sou importante em mais nada, mesmo redigindo
ensaios inexpressivos ou demasiadamente pessoais. É nesse exercício diário que
minha vida ganha sentido.
Procurar a palavra correta, juntá-la à outras, dar uma
correta descrição dos meus sentimentos mais particulares é a minha verdadeira
alquimia.
Ao escrever produzo mais um pedaço de minha pedra filosofal,
meu Elixir, que me cura do cansaço e me diverte. Além disso, escrevendo, sirvo
a sociedade, já que cabe ao escritor explicitar emoções e impressões
subjetivas, o que auxilia a quem lê organizar suas próprias emoções.
Esclarecer o mais íntimo e oculto, esse é o papel de todo
escritor, seja na prosa ou na poesia.
É exatamente para isso que servem os escritores.